domingo, 7 de abril de 2024

A Democracia Brasileira diante das Heranças que a Ditadura Militar Deixou

Mesmo não recebendo maior atenção do Governo Lula, os 60 anos do Golpe Militar e a implantação da ditadura foram priorizadas por intelectuais e ativistas de esquerda, com muito boas análises sobre aquele momento histórico, inclusive com reavaliações de análises passadas e levantando novas questões. Tive acesso a algumas de tais análises, especialmente aquelas que foram publicadas nos meios digitais alternativas, voltados às temáticas mais democráticas e de esquerda.[i] Mas meu foco é a atualidade e o como a ditadura militar nos afetou profundamente como sociedade, somando-se à muitas mazelas que vem desde a conquista e colonização.

É possível acreditar em dias melhores no amanhã, tanto para si e o núcleo familiar como para o conjunto da sociedade e até todos os povos do planeta Terra. Esperançar faz parte do ir levando a vida. Claro, sempre podemos optar por um caminho individual, de agir e vencer a qualquer custo, em busca do próprio interesse. Mas fazer isto é mergulhar na lógica de um sistema que aposta no interesse individual como regra dominante de viver, onde vencerão os mais competitivos, mesmo explorando e dominando todos os demais. Esta é a regra imposta pelo próprio do capitalismo eurocêntrico, com suas variantes específicas em função da história de cada um dos povos dominados e a seu serviço e sua centralidade de tipo imperial.

Na verdade, a vida se vive em coletividades, queiramos ou não, pois sempre dependemos de relações, estruturas e processos econômicos, sociais, políticos e culturais, forjados ao longo da história, que delimitam possibilidades e limites concretos, muito além de vontades individuais. Para mudar e sonhar com outro mundo, bom e saboroso para se viver, onde todas e todos caibam, precisamos mudar a lógica de exploração, dominação, assim como o processo de destruição sistemática da própria natureza, praticadas pelo capitalismo globalizado pelas grandes corporações econômicas e financeiras, dos 1% super ricos. A tarefa prioritária é plantar raízes democráticas transformadores a partir dos territórios em que vivemos. Isto não podemos esperar de outros povos ou transferir responsabilidades que são nossas em primeiro lugar.  Claro, dinâmicas e processos mundiais mais favoráveis  sempre são importantes, mas não suficientes. Temos que fazer a nossa parte, lá onde levamos a vida, com suas especificidades.  No entanto, nunca podemos esquecer que estamos diante de uma trama histórica coletiva, com raízes profundas e suas heranças.  Para mudar sempre  é e será indispensável saber o que fazer, onde  e como incidir.

Lembro isto tudo para situar o indispensável que é, para nós como povo ou a maioria dele, entender e nunca esquecer as malditas heranças, em particular as mais recentes,  deixadas pela ditadura militar de 1964 a 1985. Elas interferem no nosso cotidiano e são parte de nosso modo de viver atual, mais até do que comumente admitimos. Tal herança reforçou e aprofundou relações violentas de exclusão social, uma chaga que nunca foi enfrentada como prioridade política absoluta. A democracia que conquistamos com a Constituição de 1988 é uma proposta política institucional importante, mas o fazer a democracia vai além, pois se trata de disputar  no dia-a-dia, até hoje, em muitas frentes, tendo a ditadura e todo o passado como ameaça concreta, tanto para as conquistas de direitos de cidadania iguais na diversidade, como para as políticas públicas que deem conta de atendê-los. Basta lembrar aqui o que nos foi imposto recentemente, em contexto democrático, pelo golpe de 2016 e depois pela vitória do governo de extrema direita, que admitiu publicamente a sua inspiração  na ditadura, com propostas e políticas ecossociais mais excludentes e destrutivas ainda mais fortes. Aliás, o militar capetão, que nos governou recentemente, foi ativo nos anos 1980, quando se deu o vigoroso processo de mobilização cidadã pela volta da democracia. Mas, de toda forma, a ditadura deixou malditas heranças vivas, além de reativar velhas como o racismo, o patriarcalismo e o colonialismo, com muita violência e assassinatos, como política vinda de dentro do regime.

Neste ano de 2024, sessenta após o golpe militar, somos muitos mais numerosos que naquela época. Aliás, a grande maioria do que é a população brasileira atual não viveu aqueles 21 anos de ditadura. Éramos um pouco mais de 82 milhões de habitantes do Brasil em 1964 e 145 milhões no ano em que foi aprovada a nova Constituição, em 1988, e chegamos a 176 milhões em 2015. Pelos dados mais recentes, de 2023, éramos um pouco mais de 215 milhões. A própria definição de cidadania política mudou, pois desde 1945 até 1988 o direito de votar continuou limitado aos alfabetizados e com 18 ou mais anos. Só a Constituição de 1988 ampliou tal direito de votar a todas e todos a partir dos 16 anos, sem limites.

Então, por que lembrar e discutir a mais recente ditadura se a maioria de hoje não viveu aquele período autoritário? Simplesmente, porque convivemos com mazelas de todo tipo desde a conquista e colonização, mas a elas se somaram algumas novas formas de barbárie e as velhas foram radicalizadas no período da ditadura militar. A maioria de hoje  não merece continuar convivendo com elas. Não as extirpamos ainda, pois não fizemos um virtuoso processo democrático de diagnóstico e reparação, com pesquisa profunda de memória e verdade, condenando os responsáveis pela repressão, tortura e morte. Nem avaliamos plenamente a destruição ecossocial promovida, tanto em termos de geração da fome,  miséria e pobreza, como de conquista, colonização e destruição da integridade do grande patrimônio comum natural para a nossa vida. Tudo isto continua mais ou menos  sendo o nosso cotidiano nos dias de hoje: um modo de vida e produção sociamente excludente e destrutivo, aperfeiçoado pela ditadura militar. O tal “milagre econômico” da época, especialmente primeiros 10 anos, gestou uma “casta” de super-ricos, vivendo na abundância, com enormes periferias urbanas e rurais, composta por população pobre e excluída, submetida ao controle do crime organizado de traficantes e milícias. E depois, desde meados dos 1970 com as mudanças nas condições econômicas globais, mergulhou o país  numa galopante inflação e uma impagável dívida externa, enfrentadas prioritariamente pela democratização nos anos 1990.

Mas a questão que considero fundamental é a disputa de narrativas hoje. Não temos como avançar politicamente e construir hegemonia de democracia ecossocial transformadora, para cuidar de gente e da natureza, sem focar o projeto que a ditadura priorizou: alavancar o capitalismo dependente, assentado no extrativismo e no agronegócio, voltado à produção de commodities para exportação, de costas para o Brasil, lógicas dominantes e determinantes até hoje. A “recolonização” da Amazônia e do Cerrado brasileiros, que continua, contra Povos Indígenas e Tradicionais - uma das piores heranças de ordem ecossocial –, foi empoderada pela estratégia militar do “Brasil Grande”. A concentração da terra se ampliou escandalosamente, produzindo muitos  sem terra e expulsão do campo.  A isto podemos somar o modelo de geração de energia elétrica com as grandes barragens hidrelétricas, expulsando populações ribeirinhas inteiras, deixadas à própria sorte, como estamos vendo com Belo Monte em contexto democrático. Claro, o regime militar avançou na industrialização mas com dependência de capitais multinacionais e empresas estatais a seu serviço, valendo-se da mão de obra barata propiciada pela migração interna de zonas rurais, em grande escala e a empurrando para as periferias das grandes metrópoles. Basta lembrar que o salário mínimo – referência ainda hoje para uma maioria de assalariados – foi submetido a uma política de arrocho salarial. No final da ditadura era algo como um terço do que havia sido uns 40 anos antes.

Não podemos esquecer de jeito nenhum  que tudo foi implantado com o uso e abuso da mais pura repressão violenta sobre opositores, trabalhadores e populações periféricas que ousavam protestar. Também foi a ditadura que criou o tipo de Polícias Militares que temos, como forças auxiliares das Forças Armadas e com ação prioritária contra negros e pobres, com assassinatos, nunca para garantir o direito de segurança pública. Até hoje pouco avançamos sobre estas questões, pois parece que ficamos satisfeitos com uma democracia de baixa intensidade. É fundamental  mapear e enfrentar democraticamente tais questões  estruturais  vigentes, espécie de modo de viver para as gerações atuais, lógica aprofundado pela ditadura.

Ou seja, ficando no que venho insistindo de diferentes ângulos – a disputa de hegemonia de um modo de pensar, agir e viver democrático intenso, com base ecossocial – a ditadura militar continua sendo uma erva daninha no chão da sociedade, na cultura, nas vivências cotidianas, no caos social, nas milícias, na repressão policial, nos privilégios e corrupção, nos desmandos de poderosos e, ainda, nas ameaças autoritárias como a que abertamente foram praticadas pelo inominável  do governo passado. Aliás, as forças políticas que apoiam uma direita autoritária e excludente estão tendo maior iniciativa em termos de narrativas do que fazer do que as cidadanias ativas do campo democrático. E o fazem “sem medo nem  pejo”, até com orgulho e ações abertas, à plena luz do dia. A ameaça é real, porque o mal herdado da ditadura só não vê quem não quer. Ou pior, prefere dar as costas e deixa rolar. Até quando?

 



[i] Desculpo-me por não trazer a relação aqui, pois creio que existem muito mais autores e análises, a que não tive acesso e que merecem ser lidas e debatidas. Apesar dos limites e dificuldades que enfrentam os meios digitais alternativos ao nosso alcance, em geral sem apoio de fundos públicos, é neles que podemos encontrar o melhor do campo crítico e compromissado com a radicalização da democracia brasileira.

domingo, 24 de março de 2024

Por Que a Nossa Democracia Continua Encurralada?

 

Volto a uma questão central em minhas análises e reflexões sobre a democracia de baixa intensidade que temos. A conjuntura política atual me impõe tal questão. No início do Governo Lula 3 levantei a hipótese do desencurralamento da democracia brasileira como um necessidade e uma possibilidade, desde que...houvesse  tal objetivo estratégico e vontade política. Mas parece que estamos mais patinando do que avançando com determinação no enfrentamento de uma questão central para sonharmos com uma democracia ecossocial transformadora, em busca de direitos de igualdade na diversidade, como forma de cuidar de gente e da natureza.[i]

Já se foram um ano e alguns meses do Lula 3 e até agora não vejo sinais de desencurralamento a partir do Poder Executivo, que recebeu nosso voto vitorioso na última eleição. As maiores novidades ainda continuam sendo produzidas pelo Poder Judiciário, num lento mas virtuoso processo institucional, que cabe a ele mesmo, de desmonte e condenação dos responsáveis pela trama criminosa de golpe que vinha sendo armado desde o Palácio do Planalto, pelo governo da extrema direita. Seu papel é este mesmo, dentro da institucionalidade democrática. Mas isto tudo é pouco diante dos desafios que temos para voltar a acreditar e sonhar que “outro Brasil é possível”. Retomada de políticas sociais, praticadas no período dos governos petistas de 2003-2016, vem se mostrando importante, mas por si só é pobre para a reconstrução democrática necessária. Precisamos, sobretudo, voltar a pensar e construir estrategicamente um projeto de país de democracia viva, que supõe disputar e conquistar hegemonia democrática desde o chão da sociedade. Lamentavelmente, tal tarefa é adiada, em nome da governabilidade. É isto que queremos? Ficar patinando e se contentando com pequenos avanços aqui e ali? Deixar a extrema direta definir a agenda e o quanto dá ou não dá para avançar? Isto não é ter um projeto democrático!

Será que o Governo Lula tem alguma estratégia para romper com o que nunca foi rompido politicamente e que impede  a democracia brasileira de avançar? Afinal, se houve o golpe de 2016 e depois a derrota eleitoral, em 2018, e um governo de extrema direita com uma agenda autoritária e fascista entre 2019-2022 é porque nossa democracia ainda não conseguiu extirpar o câncer destrutivo que vem lá da ditadura. Os grandes avanços na Constituição de  1988 não foram capazes de impedir a “conciliação de interesses e forças” como regra institucional de governabilidade.  Ela se manifesta no imaginário poiticamente fraco, que não nos permite avançar em “memória, verdade e reparação”, no controle democrático das Forças Armadas, portanto na segurança cidadã, nem num elemento fundamental  que é ter um Congresso Nacional  com um genuína representação da diversidade do que somos como povo e nação.

Propor o “avançar com calma” é não romper o encurralamento da democracia. Pior do que isto, é não ter perspectiva de real mudança. Evitar o enfretamento político somente com composições caso a caso, cedendo sempre aqui e lá, em votações no Congresso é se entregando ao poder do Centrão conciliador, “das bancadas do agronegócio, da mineração, da bíblia e da bala”, não é uma estratégia de desmonte do mal antidemocrático. Pequenos avanços combinados com concessões só são vantajosos para a estratégia da extrema direita e suas bases, contando com o Centrão fisiológico em seu apoio. Isto é um sinal desmobilizador, que não nos incentiva a participar para romper correlações de forças na intensidade e determinação necessárias, sabendo que temos as estratégicas eleições municipais deste ano, nos territórios locais em que vivemos todas e todos.

Sem dúvida, como cidadanias ativas não estamos fazendo a nossa parte, pois também estamos encurralados e nem sabemos onde e como incidir a partir do chão da sociedade. Queremos  desencurralar o governo e livrá-lo das artimanhas que diariamente lhe são impostas para governar, mas precisamos de sinalizações de rumos possíveis. Nossas lideranças de movimentos sociais e de partidos de esquerda parecem estar esperando por algo, quando deveriam assumir seu papel com mais vontade e garra.  A disputa de ideias está como que adiada, apesar do pipocar de iniciativas as mais diversas entre nós mesmos, porém sem maior impacto no seio da sociedade civil.  O imaginário caldo de visões, análises e ideias, criado pela difusão sistemática de fakenews, articulada pela extrema direita através de redes sociais, penetra no cotidiano de grandes contingentes da população. Estamos diante de um desafio estratégico, que não é fazer o mesmo de nosso lado, mas fazer com responsabilidade, criatividade e determinação a disputa de ideias e propostas.

 O fato objetivo é que não vemos sinais e nem sentimos vontade por parte de nossos representantes lá na esfera do poder estatal em relação a tal questão estratégica. Creio que os setores mais organizados das redes de cidadanias ativas concordam comigo de que  não foram abertos verdadeiros canais de comunicação, participação social  e diálogo virtuoso para nos mobilizar nas ruas em torno a propostas que valham a pena. Não existem dúvidas, na minha análise, sobre o quão fundamental que foi a vitória eleitoral de 2022. Mas o 8 de janeiro de 2023 mostrou a cruel realidade política polarizada que temos. E o que nos é passado pela estratégia governamental é para ter paciência... que os bons resultados virão... algum dia. Virão mesmo? 

Celebrar algo aqui e lá é não ter estratégia de enfrentamento da disputa de propostas e de políticas para a nossa democracia encurralada há muito tempo. O trabalho político fundamental está longe de se limitar às necessárias  negociações democráticas no Congresso, que é parte da institucionalidade, mas não é espaço de monopólio da política capaz de fazer avançar as coisas. A disputa democrática para valer se faz no chão da sociedade e não lá no Planalto!

O que está sendo produzido e comunicado pelo Governo Lula não está sendo no tamanho e na direção necessária.  Os índices de aprovação do governo, em baixa, demonstram muito bem que algo fundamental não está funcionando.  Fazer bom discurso lá fora ajuda e aumenta nossa autoestima,  mas... não desencurrala a democracia aqui dentro. Também pouco ou nada ajuda a mera retomada de boas políticas, sem um verdadeiro desmonte das ruins e, sobretudo, sem inovações e novos horizontes. Pior de tudo, ficamos de fora e não temos  nenhum sinal virtuoso no desmonte  do cruel arcabouço fiscal feito sob medida para a “convivência” com o parasitário financismo dos 1% de especuladores, a maior demonstração que continuamos com uma agenda neoliberal antidemocrática, limitante fundamental para avanços em mudanças econômicas democraticamente necessárias.

A sensação que está no ar é que a estratégia do Governo Lula 3 é mais de composição com o Congresso e menos de composição com a cidadania que o elegeu e que precisa ser alargada, para realmente evitar que a extrema direita volte. Temos um inimigo claro a enfrentar para poder avançar com uma democracia  ecossocial capaz de realizar transformações: o bloco da direita autoritária, sua estratégia e seus apoios fortes entre empresários e até no meio popular, sobretudo pela estratégia das igrejas de teologia do empreendedorismo e sucesso individual. Apostar numa estratégia de “desmonte  da polarização” escancarada na sociedade e no ambiente político  é deixar uma avenida aberta para a direita antidemocrática e suas agressivas estratégias de comunicação, com muitas inverdades, mas eficazes na construção do ambiente político, como nos lembra o Altman. [ii]

Uma questão intrigante é já ter passado quase um terço do mandato de Lula 3 e ainda não termos retomado e renovado um pacto amplo entre as forças políticas democráticas com mandatos, as lideranças partidárias, especialmente da esquerda, mas também muitas do centro democrático. Temos necessidade de um potente projeto inspirador para o Brasil. Mas projeto que precisa reconhecer  o fundamental papel das cidadania ativas, suas redes e fóruns, verdadeiros celeiros de iniciativas e ideias, com elaboração e disputa de propostas. São as cidadanias ativas organizadas que se articulam virtuosamente com expressões territoriais e locais, nas cidades, periferias, campos, rios e matas. Um potente projeto de democracia só poderá ser inspirador e mobilizador se valorizar a vibrante diversidade e potencialidade das milhares de iniciativas territoriais locais, no enfrentamento das questões cotidianas, onde a vida real se faz. Afinal, penso que concordamos que a democracia que queremos precisa cuidar de gente e da natureza, como sua razão de ser.

Mas voltando ao mal-estar com a perigosa continuidade do encurralamento da democracia, como defino, não podemos esperar para ver no que vai dar. Ou assumimos de forma mais incisiva a tarefa da reconstrução com Lula e seu governo ou o deixaremos amarrado aos impasses do Centrão e das investidas da direita autoritária. Pior, vamos continuar tendo um governo que se vê obrigado a contemporizar com as Forças Armadas e nos pede para esquecer o que foi a ditadura. Mas, também, não podemos simplesmente nos render ao agronegócio, mineração e petróleo, porque daí nunca virá outra economia voltada ao cuidado de gente e da natureza.

Extraio uma indicação imediata de algo  a ser feito de conversas de conjuntura, de que participo, junto com um pequeno grupo de parceiros de várias décadas, verdadeiros cúmplices da empreitada por um outro Brasil. No grupo temos lembrado a necessidade de fortalecer nossos meios alternativos de comunicação, que funcionam como referência para cidadanias ativas. Mas são frágeis. Como combatemos os “donos de gado e gente” não podemos esperar daí financiamento necessário e que amplie  o impacto de nossos meios na tarefa de disputa de  ideias e propostas. Estamos dependentes dos fracos apoios solidários, fundamentais para a autonomia política, mas por si só são insuficientes. Para ampliar impacto dependemos da atenção e comprometimento estratégico de forças políticas democráticas, especialmente as que tem acesso ao Estado, pois do outro lado nada virá. São destinados importantes recursos públicos aos grandes meios de comunicação, especialmente TVs, em geral mais inclinados à direita e centro-direita, pouco ou nada sensíveis às iniciativas, agendas e propostas de cidadanias ativas. O pior é que os meios mais importantes para o ativismo democrático são ignoradas pelas políticas públicas. Mas estes meio voltando atenção às cidadanias ativas organizadas, com potentes narrativas e avaliações de quem está com a gente, são estratégicos para a questão que levanto nesta postagem.

Termino, lembrando que não se trata de submeter as iniciativas a uma determinação e orientação política governamental. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a potência democrática que brota da sociedade civil em termos de produção de análise de propostas de qualidade, muitas vezes até com críticas construtivas aos responsáveis políticos do nosso campo. Não conseguiremos desencurralar a democracia se tais iniciativas foram deixadas  na sombra, entregues à própria sorte. São estas iniciativas que privilegiam a investigação dos sinais virtuosos que brotam do chão da sociedade. Desconhecer isto é um grande risco para a tarefa do necessário desencurralamento e, sobretudo, de disputa de hegemonia democrática ecossocial de direitos iguais para todas e todos. Está dado o recado, para quem está disposto a ouvir!

 



[i] Nas minhas postagens mais antigas no blog desenvolvi com mais profundidade o que defino como encurralamento da democracia e indiquei pesquisas e artigos meus a respeito.

[ii] Lembro o Breno Altman aqui, pois foi ouvindo uma recente participação dele numa live (durante na sua viagem pelo Nordeste do Brasil, para lançamento do seu livro Contra o Sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista) ele enfatizou esta questão estratégica, mas de um modo muito mais adequado do estou fazendo. Infelizmente não tenho a referência exata. De todos os modos, me inpirou para retomar o veião do encurralamento democrático que venho explorando há tempo.

terça-feira, 12 de março de 2024

A Importância da Análise de Conjuntura Para Ativistas: um Saber Fazer Essencial

Tenho a sensação que, como cidadanias diversas, estamos atolados, literalmente. Não estou me referindo, no momento, às chuvas torrenciais em boa parte do Brasil, algo alarmante em si mesmo, pelos sofrimentos e estragos para muita gente, sinal evidente de mudanças na integridade do ecossistema climático. Meu olhar aqui, mais imediato, é ao perigo do atoleiro político, à falta de um claro protagonismo da ação política cidadã democrática ecossocial na atual conjuntura nacional. A vitória eleitoral de 2022 foi fundamental, mesmo apertada como foi. Mas as forças inimigas da democracia estão vivas e muito ativas. O 8 de janeiro de 2023, apenas uma semana após a posse foi um susto. Mas o fato essencial é a complexa rede de cumplicidades e financiamentos que foi criada pela extrema direita e que alimenta o ativismo político de seus seguidores.

O Judiciário, a Polícia Federal e a Procuradoria Geral estão fazendo a sua parte, demonstrando certa fortaleza das instituições que construímos democraticamente nos últimos trinta e poucos anos. Mas...,  democracia viva,  transformadora, de direitos ecossociais democráticos na diversidade,  só avançará e se firmará se as cidadanias ativas a agarrarem como seu projeto. As instituições políticas tem que fazer a sua parte, mas o farão se as cidadanias o exigirem, simples assim! E onde estamos? O que estamos esperando? Vamos simplesmente reagir aos atos dos que temos como inimigos a combater? Por que não buscamos uma agenda mais consistente, que nos empodere, ao invés de nos comparar aos que declaradamente são forças antidemocráticas e contra qualquer mudança substantiva, além de apoiados por criminosos.

Vou destacar alguns aspectos essenciais, que precisamos dar mais atenção, com análise e pressão política. Aliás, a diversidade de visões de tais questões precisa ser posta na mesa e discutida, pois todo mundo que busca transformação e justiça ecossocial é essencial para um vigoroso processo de elaboração de um pensamento estratégico. Não adianta ficarmos reclamando que o Governo Lula III precisa ser mais ousado, que está devendo transformações mais virtuosas aqui dentro, pois a boa performance lá fora ajuda e recupera a autoestima nacional, mas nada transforma aqui no país. Temos que reconhecer que, na institucionalidade política democrática que temos, está difícil para o governo romper a barreira – verdadeiro atoleiro político – que as forças do Centrão impõem desde o Congresso. Além disto, temos que ter presente o peso do financismo especulativo na definição da política monetária e fiscal do país, desde o Banco Central e seu Conselho Monetário, amarrando o Ministério da Fazenda. Estamos diante de uma espécie de câncer corrosivo da economia do Brasil, pois o financismo nada produz, só suga os recursos que seriam fundamentais para a construção de políticas transformadoras nas diferentes áreas da vida coletiva.  As muitas iniciativas governamentais não tem como avançarem esbarrando nas imposições e amarras do poder dos especuladores financeiros, das forças políticas do Centrão e da direita fascistóide.  

Poderes reais na sociedade se enfrentam construindo poder democrático e com inspiração transformadora. Como cidadanias com poder de voto, ganhamos a eleição em 2022 e elegemos Lula, mas numa margem bastante apertada. Mas isto não foi e nunca será suficiente, pro si só, para ampliar o poder político e para avançar em mudanças essenciais. Bem, basta olhar para ver: decididamente, nada de realmente transformador está acontecendo, apesar de retomada de muitas políticas virtuosas já implementadas no passado. Não penso que isto seja suficiente para nos livrar das ameaças fascistas, da violência, destruição, racismo, machismo e exclusão, nem da escandalosa desigualdade social.

Sei que as análises necessárias - histórica, antropológica, social, política e econômica - enquanto tais, não mudam nada, por melhor que sejam, pois só podem diagnosticar, apontar problemas e, nem sempre,  indicar algumas pistas para possíveis transformações. Mas quando associadas  e motivadas pela ação de cidadanias ativas – o caso de análises de conjuntura por ativistas, como o Betinho lembrava – tem a virtude de empoderar para ação. Análises produzidas de forma compartilhada, com intencionalidade democrática, emancipam o pensar de ativistas e, ao mesmo tempo apontam caminhos a seguir, tanto para ação no seio da sociedade –  na disputa de ideias, valores, princípios, propostas, buscando construir hegemonia -  como para participar de eleições, de espaços na implantação de políticas e para a pressão sobre as instituições governamentais e parlamentos. Isto é o que pode, e de fato faz, criar um pensamento estratégico voltado à ação, transformador. Daí a importância da análise de conjuntura, da situação concreta, num esforço coletivo voltado pra saber onde e como incidir. Ela precisa começar nos círculos de amizade, de proximidade,  de lazer, de trabalho, num ato prazeiroso de viver e compartilhar a vida. A análise de conjuntura vira  essencial nos grupos de ativismo cidadão, instituídos ou não, formando associações, redes, fóruns. Sem análise permanente nunca conseguiremos disputar e fazer a luta política que nos cabe – a disputa de hegemonia de um pensamento democrático transformador para garantir direitos ecossociais iguais na diversidade de cidadanias e de territórios do país que temos.

O fato é que está no ar uma sensação de espera, sem estar claro o que esperamos. Enquanto isto, o financismo impõe regras econômicas, monetárias e fiscais. O Centrão, por outro lado, avança com suas demandas das bancadas corporativas e de redutos eleitorais,  ganhando poder de controle sobre o governo federal.  E a onda fascista na sociedade mostra a sua capacidade de tomar as ruas. Além disto, os estrategistas do fascismo tem um plano claro para as eleições municipais deste ano, buscando  ampliar o seu  controle sobre  a base territorial onde vivemos todas e todos, que de certo modo organizam o nosso próprio cotidiano. Bem, territórios onde milicianos, criminosos e polícias cúmplices – aliadas de primeira hora do fascismo armado e destruidor -  tem um super poder real para afetar a vida de todos, matando muita gente no seu caminho. O que estamos fazendo a respeito como cidadanias ativas democráticas? Este chão é a base. Não podemos menosprezá-lo numa estratégica efetiva de construção e transformação democrática.

Reconheço que não faltam resistências e iniciativas cidadãs muito diversas e virtuosas a partir dos territórios. Em geral, se constituem para lutar por causas e direitos fundamentais na vida cotidiana: contra a violência, por  acesso à água e ao esgoto, habitação, saúde, creche e educação para filhas e filhos, contra tráfico de drogas e domínio de milicianos, por transporte decente, renda, direito à cidade, até para iniciativas de produção agroecológica em terrenos baldios nas periferias ou territórios de vida no campo, sempre para produção e acesso a alimentos de qualidade. E por aí vai a prática cidadã de resistência, quase sempre sob liderança de mulheres. Agenda concreta, tão concreta como a vida. Mas, em geral, algo um tanto “invisível” para os poderes instituídos estaduais e municipais, que agem mais como “bombeiros” em emergências – temporais e inundações, crimes escandalosos, etc. – quando não são eles mesmos os agentes dos vários problemas nos territórios da periferia, com ações policiais de extermínio, como vemos diariamente nos noticiários.   

Já temos conhecimento acumulado sobre as virtudes emancipatórias da multiplicidade de  resistências enraizadas no territórios locais, de um saber-fazer fundamental para a construção de práticas baseadas em princípios e valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, indispensáveis para uma sociedade de bem viver, de viver saboroso. E temos a inspiração do que nos propôs Paulo Freire como sendo isto a base da emancipação política e da construção de hegemonia democrática.

O que nos falta, então? Ouso dizer que não estamos valorizando estrategicamente e suficientemente a construção do tapete coletivo de tais experiências virtuosas, tapete grande e forte, que nos entrelace e dê força política diante dos desafios que temos pela frente. Precisamos “olhar mais para a planície, e menos para o Planalto”, mas sem descuidar dele. Nossa força está aqui, na planície onde levamos a vida. Está força só chegará lá com poder para influir politicamente se estiver forte aqui! Neste sentido, na tarefa da construção do tapete coletivo, destaco que o que temos de mais virtuoso e promissor são o MST e o MTST, junto com Povos Indígenas e Quilombolas, com sua história desde os territórios. O movimento sindical surgiu com vigor e foi fundamental na redemocratização, mas não soube se reinventar diante da avassaladora globalização e seu financismo parasitário, nem diante do extrativismo e do agronegócio de características coloniais, dada a sua prática de expansão pela conquista e destruição de nosso grande território.

Termino reconhecendo que, finalmente, surgiu um esforço de organizar um ato amplo de cidadanias de esquerda em defesa da democracia. Mas qual é exatamente a bandeira mobilizadora e unificadora? Qual é a nossa agenda? Não podemos simplesmente reagir à provocação feita pela direita fascista, o que será um desastre anunciado, no meu modo de ver a conjuntura. Precisamos dar as costas para eles e fazer o que até aqui não fizemos: retomar o protagonismo nas ruas com bandeiras que tem sentido agregador para a diversidade de identidades e vozes de cidadania pelo Brasil afora. Precisamos olhar mais para o chão em que vivemos e, talvez, menos para o drama que se desenrola nas instituições. O desempate se não vier do chão da sociedade, simplesmente não virá! Mas, de todo modo, é de louvar o despertar, a intenção de buscar caminhos, de agir como cidadanias, condição para uma verdadeira conquista de hegemonia. Antes tarde do que nunca!

A análise de conjuntura não substitui a ação cidadã, pois ela mesma é um momento de construção da ação, da incidência política, e, ao mesmo tempo, um momento de avaliação para nova ação... O ativismo cidadão é um modo de agir, viver em coletividade, em células democráticas. Quando tais células se agregam organicamente e com uma estratégia de conquista de hegemonia, tornam-se irresistíveis. As “redes sociais” podem ser um privilegiado espaço como território de disputa de ideias,  do modo de nos agregar e de adquirir força. Estamos fazendo o necessário?

  

segunda-feira, 4 de março de 2024

Momento de Perplexidades

Sinto-me sem visão clara para definir uma direção do que fazer nesta conjuntura. Claro, ação individual é apenas a expressão de uma atitude ética de viver e agir, pois o que conta, em última análise, é o processo coletivo, algo como uma onda que se move e arrasta tudo e todos. No entanto, como ativista e analista, que assume buscar sinais e apontar possibilidades que tenham sentido, nas mais diferentes conjunturas, é se sentir numa espécie de dever de  olhar com lentes afinadas o que se passa no cotidiano, pesquisar, auscultar, mapear ações e reações, examinar céus, rios e mares, florestas, o burburinho cotidiano das cidades, as oscilações dos mercados especulativos, o jogo incansável dos que estão exercendo o poder político, o vai-e-vem da vida,  sempre em busca de brechas sobre o que precisamos fazer,  onde incidir e como avançar. É o que o coletivo – a que a gente pertence de modo afetivo, solidário, e de proximidade territorial e afinidade política – espera de umas e uns, de outras e outros, cada qual fazendo a sua parte indispensável. É a aventura do viver lidando com perplexidades, sem saber o que fazer.

Sim, muita coisa está acontecendo ao mesmo tempo. Não é a falta de vida cheia de surpresas, do local ao nacional e ao mundial que está faltando. O que faltam são sinais mais potentes que não sejam de destruição, guerra e morte, mas  de propostas virtuosas, de esperança, de luz no horizonte. O que assistimos é um “desarranjo” de tudo: a economia predatória e excludente continua se refestelando; o clima com surpresas diárias e sempre ameaçadoras para contingentes populacionais das periferias do mundo; guerras de extermínio genocida; fome imposta a populações inteiras; governos que financiam tais guerras (falo especialmente dos EUA) e ainda, cinicamente, enviam alimentos de paraquedas para as populações sob ataque; malucos que falam e escutam conselhos de cachorros e destroem conquistas democráticas, como Milei na Argentina; fascismos que se assumem como tais, sem vergonha, e fazem encontros para se vangloriar de suas façanhas assassinas, como a direita mundial sob liderança de Trump; regimes autoritários com arsenais nucleares capazes de destruir o planeta; ou, ainda, como no Brasil, uma direita descarada que realiza manifestações apropriando símbolos nacionais e os associam ao genocídio praticada por Israel contra o povo palestino, tudo isto para sustentar propostas golpistas de destruição da nossa sofrida democracia e os direitos duramente conquistados. No meio de tudo, realizam  Fóruns oficiais, como o da última COP, para discutir mudanças climáticas, sob a presidência de alto executivo de petroleira do mundo árabe! Ou ainda, como  nas reuniões reservadas do G-20, das maiores economias nacionais do planeta, para celebrar entre si, num clube fechado, e para nada decidir de relevante para os povos do mundo.

Enfim, o que pensar e dizer disto tudo? Mais, o que fazer e como agir num momento assim? Sei que a pior solução é desistir, deixar para lá, ficar com seus  botões e meu jardim, levando a vida. Mas não dá, definitivamente! Viver é não se entregar e no meu caso, dada a idade, é não deixar o “velho tomar conta”. Mas a dúvida que teima em perturbar a consciência é sobre como contribuir com a palavra e a reflexão engajada para dar a volta por cima, desde aqui e agora. Sei e reafirmo com convicção que mudanças só podem vir de lá onde vivemos e levamos nossas vidas, dos territórios comuns, cada uma e cada um se engajando e fazendo a sua parte. Afinal, não existe uma fórmula ou solução mágica e simples para um mundo humano e um planeta comum extremamente complexo para o que a  vida proporciona, cuja especificidade é ser muito diversa. Mas estamos fazendo a nossa parte?

De onde olho, daqui da periferia rural da Região Metropolitana do Rio, sinto que estamos perplexos e paralisados. Todas e todos estamos esperando! O que exatamente? Claro, temos uma situação política mais aberta e de esperança, depois do desastroso governo do inominável, com aquele pacote de políticas destrutivas e ataque à democracia. Parece que até perdemos a própria referência do viver em coletividade, baseado nos princípios fundamentais que são de cuidado mútuo, de convivência e de compartilhamento, de direitos iguais na diversidade, entre todas e todos, condição de uma democracia ecossocial  necessária e virtuosa para um país onde cabe toda a sociedade,  sem exclusões, discriminações ou violência. Mas será que ficar esperando algum momento mais propício nos leva para algum lugar? O que podemos e devemos fazer em um contexto contraditório e de pouca luz?

Não descarto que, talvez, todas as perplexidades que estou apontando – e tem muito mais outras – sejam mais minhas do que coletivas, compartilhadas entre muitos ou ao menos de algum modo vividas por setores mais amplos de cidadanias ativas. O que sinto é a falta de sinais de inquietação no nosso seio, de mal-estar e de buscas consequentes. Talvez seja a falta de acesso à comunicação de qualidade, hoje realizada basicamente por redes digitais que invadem, com muita informação – muitas vezes falsa – mas que pouco ou nada de substantivo informam.

Porém, como tive uma vida toda de analista e ativista, está difícil de desistir agora. Tornou-se um jeito de viver. Mas não ter aquela roda acolhedora e de cumplicidades compartidas é um buraco na vida cotidiana. A análise de conjuntura compartida, feita  regularmente,  me faz falta, ainda mais em momentos de perplexidades como o atual. Afinal, o saber político é algo coletivo, nunca particular. Ele se faz em conjunto e em comunhão. Esta é a condição de análise de conjuntura ser feita para agir, cada uma e cada um, de onde está, do seu lugar único na sociedade, do local ao mundial. Como reconstruir espaços de busca de saber coletivo, um desafio permanente para analistas que são ativistas? As ideias e os argumentos criados na troca e no debate tem uma qualidade única. Trata-se de análise que funciona como poderoso cimento agregador de bloco social, de força política coletiva. Mas, parece, que estamos sendo atropelados pelas informações fáceis e abundantes das tais redes sociais digitais e estamos deixando de pensar estrategicamente. Sem dúvida, estamos juntos num certo sentido, mas não criamos consistência orgânica, que nos leve à ação, com os meios possíveis.

Tenho sinalizado nas postagens do blog a falta de protagonismo cidadão na conjuntura que vivemos. Acho que uma tal questão completa o momento de perplexidades sentidas. Mas protagonismo coletivo não surge espontaneamente. Precisa ser construído e com paciência. O que estamos fazendo a respeito? O ato convocado para o dia 23 deste mês tem alguma chance de expressar uma volta do protagonismo de cidadanias com nossa diversidade? Não estou vendo aquela troca fecunda de ideias capazes de dar vida e criar liga para um ato assim!

Assim, no meu caso, aumentam as perplexidades. Tomara que eu esteja enganado. Que precisamos reconstruir protagonismo cidadão democrático é indiscutível. Mas como? Pensei que a vitória eleitoral de 2022, com todas as merecidas emoções que propiciou, nos faria despertar aos perigos que nos rondam e nos levar a se engajar num processo de “desencurralamento” da democracia brasileira. Bastou uma semana desde a posse para acontecer aquele surto destrutivo e ameaçador do dia 8 de janeiro de 2023. Mas, já no segundo ano, vejo que ainda estamos esperando... O que exatamente? Não sei! Aliás, será difícil encontrar a resposta se não começarmos desde aqui e agora a assumir a tarefa de reconstrução democrática no seio da sociedade civil. É bom que o governo faça o possível e que Lula use a sua genialidade política para romper barreiras. Mas, de um ponto de vista de democracia intensa, somos nós – cidadanias ativas – que não estamos fazendo a nossa parte. Estamos deixando o governo entregue à lógica da institucionalidade política e jurídica, tendo que lidar com as demandas de um Congresso dominado pelas “bancadas do boi, da bala e da fé”, com seus currais eleitorais. Falando curto e grosso, falta pressão cidadã na conjuntura. Não confundir o que estou apontando com a volta da representação cidadã formal nos muitos conselhos de políticas. A questão que aponto é o ativismo no nosso território extremamente diverso, no chão da sociedade, onde podemos fazer a diferença.

Não estou simplesmente vendo aquela imagem de bandeiras do Brasil e da Israel juntas dos bolsonaristas. Todas e todos sabemos que a direita fascista tem espaço em nossa sociedade e voltou a não ter vergonha de se manifestar e carregar as suas bandeiras, emporcalhando os nossos símbolos. Estou falando do “vazio político” que nossa atitude coletiva, de cidadanias ativas democráticas, produz ao ficar calada, vendo e resmungando, sem ação inovadora. Não se trata de fazer o mesmo, pois não é simplesmente fazer grandes manifestações. O que precisamos é reconstruir o tecido cidadão, a vibrante diversidade que existe na sociedade brasileira, ativa no local, mas que parece não conectada nacionalmente no momento histórico crucial que vivemos. Precisamos assumir o protagonismo na disputa de hegemonia, entendida como um modo de ver, pensar e agir, guiado por princípios e valores democráticos transformadores, em busca de direitos iguais na legítima e fundamental diversidade do que somos como uma das grandes populações nacionais do mundo, extremamente diversa, mas que sabe produzir felicidade quando necessário, num território único e fundamental para a humanidade e o Planeta Terra, como um todo de interdependências vitais.

Não existem fórmulas para  resolver isto. Mas existem muitas pistas. Temos que olhar mais para as planícies da sociedade – os dramas vividos e enfrentados cotidianamente  nos territórios – mais do que para o poder lá no Planalto Central. A democracia se faz nos territórios ou não se faz como democracia intensa e transformadora. Se vamos superar as perplexidades ou não, ou então criar outras, não sei. Só sei que as perplexidades podem inspirar a reação. É isto que precisamos! Aliás, está talvez seja a única possibilidade de dar a volta por cima. O que estamos esperando?

 

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

É POSSÍVEL COMBINAR QUESTÃO ECOLÓGICA, EXTRATIVISMO PETROLEIRO E AGRONEGÓCIO?

 

De um ponto de vista político, combinar tais questões no exercício do governo é, talvez, uma “geringonça”[i] ao estilo brasileiro. Boaventura Souza Santos definiu como geringonça um governo passado de alianças esdrúxulas no caso de Portugal, mas que bem ou mal foi uma saída política engenhosa para a democracia. É esta a armação política do Governo Lula para a governabilidade e nos tirar da ameaça autoritária e  fascistizante que emergiu no Brasil? 

O Lula, como líder democrático habilidoso, reconhecido aqui e além fronteiras, está fazendo ver o Brasil como um potência emergente no enfrentamento da mudança climática. Gostemos ou não, o fato é que isto, no fundo, ajuda a criar um clima político de que, afinal, temos um líder de origem popular que recuperou a autoestima nacional. É bom e que seja assim! Afinal, chega de sermos tratados como uma grande “república de bananas”, para lembrar o modo como o país imperial, EUA, olha para o seu grande quintal de países latinoamericanos.

Mas, objetivamente, sabemos que a combinação de combater a crise climática e, ao mesmo tempo, continuar  com o agronegócio predador e tentar ser potência petroleira é se dar uma agenda econômica que nada muda e torna a economia ainda mais ameaçadora, para “cuidar de gente e da natureza”, como enfaticamente anunciado por Lula na posse. Sei que 99.9% dos economistas vão dizer que não há outra possibilidade, pois somos um país que precisa do desenvolvimento para combater a fome, a miséria e a pobreza, criando uma sociedade mais igualitária. Será que o tal desenvolvimento gera isto ou vai repetir o “milagre” que a ditadura produziu? Ou melhor, a nossa questão é “crescer” a qualquer custo ou mudar os fundamentos de uma economia capitalista estruturalmente marcada pela colonialidade e exportação de matérias primas para os polos capitalistas dominantes,  apostando no extrativismo destruidor da generosa base natural, a mãe comum de todas e todos nós?

Sei que a questão é espinhosa e que a estrutura de classes e a correlação de forças políticas é um limitante concreto para o governo e a sociedade como um todo. Mas, afinal, se a cidadania se engajou para dar a vitória eleitoral para Lula foi porque quer mudanças e que sejam substantivas e resilientes, para que ameaças de retrocessos que vem de dentro e de fora não tenham chance de voltar e continuar sua tarefa de destruição.

Aqui cabe esclarecer o centro da questão. Para mudar estruturalmente, em termos simples e concretos, precisamos de vontade política para tal. Aqui estou me referindo a buscar mudanças inspiradas  em uma perspectiva ecossocial transformadora e includente, em busca de direitos iguais na diversidade, mais do que índices de crescimento econômico. O PIB nunca foi e nunca será indicador de qualidade democrática e de direitos. Longe de mim dizer que não precisamos de economia, pois economia é a base, é o chão de qualquer sociedade. Afinal, viver é se relacionar com a natureza, em sua diversidade de territórios e possibilidades, e daí extrair vida, mas sem destruir. Também não penso que a questão seja  fácil, como se a  mera sinalização de uma direção democrática ecossocialmente transformadora seria suficiente e possível, sem um árduo trabalho político de construção de cidadanias ativas e relações de forças que a adotem e que disputem hegemonia de tais propostas na sociedade como um todo.

Voltando ao ponto inicial, claro que algo importante se está fazendo no Brasil. Afinal, o Lula e o Brasil não teriam o reconhecimento de possível potência ecológica só pelo tamanho do território. O desmatamento caiu e existe vontade política nesta direção. Mas está num impasse, por enquanto, a questão social e ecológica estratégica do direito dos povos das “das florestas, águas e campos aos seus territórios de vida, contra agronegócio, extrativismo energético e mineral. Aqui aponto a necessidade de derrotar a tese “marco temporal”.

Na questão de parar o extrativismo energético e manter a integridade de territórios, existem   outros países maiores até do que o Brasil, mas que não vem apresentando a mesma intencionalidade de mudar. Basta ver EUA, Rússia, Canadá. A China – grande em território e população – é hoje o maior país vilão nas emissões de gazes de efeito estufa, que provocam a mudança climática. Mas, ao mesmo tempo, a China é que mais avançou até agora em investimentos em energia renovável, liderando de longe nesta questão. E tem e fato real das emissões de gazes de efeito estufa acumuladas no tempo, onde a responsabilidade do Norte Global é de longe a maior. Ou seja,  todo mundo é responsável, mas de modo diferenciado. Isto não quer dizer que se trata de uma justificativa para continuar tendo uma economia insustentável em nome do combate à miséria e à pobreza, que é, sem dúvida uma questão central. Será que não existe outra forma? Ou é falta de vontade política?

Estamos diante de uma questão que é política e econômica  ao mesmo tempo, um projeto de país democrático, de direitos ecossociais iguais na diversidade e sustentável, fazendo a sua parte para outro modo de se viver. Assim, estamos diante de uma outra questão, talvez estrategicamente ainda mais fundamental, uma direção que combine democracia com busca de transformação ecossocial, que saia do convencional. Agronegócio, extração petroleira e, de forma mais abrangente, mineral, são um “pé de barro” no financiamento da transformação necessária que o Brasil e o mundo precisam, fazendo justiça social e evitando a destruição da integridade dos sistemas ecológicos do Planeta Terra, que nos dão a vida, para nós e gerações futuras.  Mas, mesmo para algo menos ambicioso, como criar condições de garantir bem estar e igualdade de direitos  aqui e agora para as grandes maiorias das periferias, rurais e urbanas, de nosso Brasil, o agronegócio e o extrativismo não tem como gerar, dado o modelo “colonial” e subserviente que carrega para abastecer os mercados centrais ávidos por matéria prima, que  movem suas economias voltadas à acumulação capitalista sem limites. Os dados de concentração de riqueza nas maõs de 1% da população mundial são cada vez mais absurdos e vergonhosos. Como defender a continuidade de uma economia assim?

O curioso entre nós é que o agronegócio e o extrativismo são mais vistos como indispensáveis para o Brasil, ao menos pelo modo como a grande mídia e os poderes políticos os tratam. E falar de seus problemas é correr o risco de ser taxado como contrário ao povo brasileiro. Na verdade a disputa de ideias na sociedade, para promover mudanças na lógica destrutiva embutida no agronegócio e no extrativismo, tende a ser genuinamente mais comprometido com o futuro do país e seu povo do que os argumentos e interesses dos arautos das classes dominantes. Os que defendem incondicionalmente o agronegócio e o extrativismo de todo tipo são os mesmos que não querem nenhuma interferência do Estado na economia e apoiaram a destruição da “Lava Jato” e o próprio golpe contra Dilma, abrindo o caminho para a ameaça autoritária que se abateu sobre o país.

O meu interesse estratégico, como analista e ativista, é alimentar o debate entre cidadanias ativas para que assumamos mais e mais o papel único que só cabe a nós, pela participação engajada em todos os espaços possíveis, do chão da sociedade:  na vizinhança e nas comunidades, local de trabalho, organizações e movimentos sociais, redes, coalizões e fóruns. Mas participação que deve buscar incidir estrategicamente nos os espaços do poder, ministérios, conselhos, legislativo, do local ao estadual e chegando no “planalto”. É neste processo de disputa política que se define a hegemonia, influindo nas propostas e formulações políticas para gerir a economia do país – dever do Estado em democracias intensas – chegando aos espaços sociais e políticos mundiais. Fazer propostas, debater e pressionar é tarefa nossa, gostem ou não  os detentores de mandatos conseguidos pelo nosso voto ou os poderosos “donos” da economia que destrói, voltada especialmente para alimentar o mercado capitalista sem respeito à integridade natural do planeta.  

Aqui só faço o alerta sobre uma questão contraditória, tensa entre nós mesmos que apostamos nas virtudes e possibilidades de construção democrática de um país de mais igualdade de direitos com respeito a diversidade, de cuidado, convivência e compartilhamento, tanto de gente como da natureza. Há, sem dúvida, o mantra do desenvolvimento – como já refleti em postagens anteriores – que contaminou e continua bloqueando muito do pensamos sobre economia. E há o tabu de que a agenda ambiental e climática é coisa de quem não sofre as urgências do cotidiano: trabalho decente, transporte renda, comida, casa, filhos, escola e saúde. Na verdade, quem ainda pensa assim, parece que não está vendo e sentindo o drama vivido por enormes contingentes de nossa população – especialmente dos mais pobres, vivendo em periferias urbanas e rurais – com os eventos climáticos extremos que vem se tornando cotidianos em nosso país tropical. No caso do Brasil, a principal contribuição em emissões que causam mudança climática vem do agronegócio,  sem dúvida um dos maiores produtores mundiais de grãos e carnes do mundo. No entanto, temos fome e miséria  no Brasil! E apostar em nos tornarmos  potência petrolífera é assumir mais responsabilidade pela mudança climática. É isto que queremos ou precisamos?



[i] Segundo Houaiss, trata-se de algo malfeito, com estrutura frágil e funcionamento precário.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Nova Indústria Brasil – NIB: Virtudes e Desafios

 

Já estava na hora do governo democrático vitorioso nas urnas de 2022 ser um pouco mais ousado em relação à economia despedaçada e reprimarizada que temos hoje. A NIB é, sem dúvida, uma demonstração política do Governo Lula III de mudar e regular a economia que temos, que só serve aos interesses do rentismo parasitário da classe dominante, contra a maioria da população brasileira. Mas a proposta política é ousada o suficiente? Será capaz de mudar a estrutura e os processos para que a economia seja a base para cuidar de gente e da natureza, como enfaticamente anunciado por Lula na sua posse há um ano e pouco?

Elegemos o Lula para que organize um governo que mude de rumo e possamos voltar a sonhar com um Brasil para todas e todos. Sabemos que a tarefa é árdua e longa, mas também sabemos que o que realmente importa é estabelecer processos com potencial transformador, contando para isto com a participação decisiva de cidadanias ativas. A tarefa de mudar necessita de intencionalidades e de pensar grande, sem dúvida, mas mais ainda de ação, de militância, de engajamento, de participação radical de cidadanias determinadas a partir do chão da sociedade civil, empurrando e sustentando as propostas na esfera política. As instituições do poder são o que são, mas só as cidadanias tem poder instituinte e constituinte pelo voto e pela ação permanente. Agora, se o olhar prioritário dos mandatados pelo voto para o poder estatal é prioritariamente voltado para as elites, a coisa toda muda para nada mudar na essência. Ninguém minimamente informado e atento ignora a dificuldade do governo Lula com o Congresso Nacional que temos, dominado pelo Centrão e as bancadas, sem compromisso com direitos iguais de cidadania na diversidade. O Centrão não passa de um acórdão entre verdadeiros lobbies em busca de vantagens para seus bolsos e redutos eleitorais, sem compromisso com cidadanias e o país. Mas, ao mesmo tempo, é de estranhar a desmobilização das cidadanias, como se não fossem de interesse da gente as propostas do governo. Por que tal fosso entre o chão da sociedade e o governo? De modo geral, por que votamos dando mandatos de representação nossa – cidadanias brasileiras em sua igualdade na diversidade -  nas instituições e ficamos esperando? Se não tentarmos de romper este fosso, nem que seja por improvisadas pinguelas, a democracia continuará encurralada e, pior, talvez o fascismo volte com força redobrada.

Mas foquemos um pouco mias na proposta da NIB feita recentemente. Antes de tudo, precisamos reconhecer o esforço de restabelecer o protagonismo estatal sobre a economia. Isto é o mínimo que se espera de uma democracia. É o Estado que deve regular a economia e não o contrário, a livre competição entre donos do capital, com seus recursos em busca de acumulação, explorando o trabalho, acima de tudo, acima até da produção de bens e serviços que sirvam para o bem estar da sociedade. Parece absurdo, mas o compromisso primeiro do capital é sua autovalorização, ou seja, ganhar e ganhar, quanto mais e de forma mais fácil melhor. Um cassino, sem dúvida! Há os que perdem, mas não há limite para o ganho. Até de impostos os donos de capitais sabem se livrar ou conseguem isenções, nem sempre tão legais, com paraísos fiscais, subterfúgios, benesses...

É virtuoso o anúncio do Governo Lula de propor uma política econômica industrial e usar os instrumentos do Estado para tanto. Mas, lembremos das “destruições” empreendidas também pelo Estado e, de um modo mais amplo, pelo imperialismo vigente, capaz de impor “regras econômicas mundiais”, a sua moeda e as instituições financeiras como BM e FMI. A OMC foi mais uma, mas quando o imperialismo foi confrontado pela maioria dos países, foi ela que perdeu importância, mas não os ditames do imperialismo. Este é o problema de fundo. A desendustrialização brasileira e de outros países foi uma imposição do “Consenso de Washington” na perspectiva da globalização, valendo-se do domínio do dólar nas transações internacionais. A reprimarização, de interesse de mineradoras e agronegócio, contou com a alavanca externa. E voltamos a ocupar um lugar parecido a uma colônia produtora de matérias primas. Saudades do Celso Furtado que, com sua notória capacidade e brilho, nos lembrava isto!

O certo é que, hoje, para grande parte dos empresários, vale mais viver do rentismo do que de investimentos concretos de risco. Como nos lembra insistentemente Dawbor, 30% do PIB brasileiro anual é apropriado pelos rentistas, aquele 1% de parasitas sociais, destruidores de qualquer projeto que possamos ter de um Brasil voltado ao cuidado com gente e a natureza. As fortunas do punhado de rentistas crescem no mesmo ritmo que a exclusão social, a miséria e a fome. Só que estas matam, enquanto que o rentismo floresce na sombra e água fresca, com apoio garantido do Banco Central e até com o compromisso público do governo de plantão. Afinal, o “arcabouço fiscal” desenhado por Haddad e equipe visa dar tranquilidade aos especuladores rentistas e não o bem estar ao Brasil, com uma economia em crescimento.

Não cabe detalhar aqui o que a Nova Indústria Brasil (NIB) propõe. Destaco enfaticamente a importância do governo sinalizar uma intenção de regular a economia em vista de um processo que seja capaz, no mínimo, de dar um novo rumo ao Brasil. Estamos há quarenta anos perdendo capacidade industrial e nos tornando dependentes da produção e exportação de produtos primários, minerais e do agronegócio. Enfim, ao invés de ganharmos uma economia mais produtiva, mesmo capitalista, voltamos a uma posição de dependência das exportações de commodities, de extrativismo subserviente aos interesses das potências capitalistas globais. Trata-se de um caminho de volta a uma economia colonial. Que tenhamos setores da classe dominante brasileira totalmente contentes com isto não estranha, nem mesmo a sua inclinação autoritária e fascista. Mas a continuidade de processos destrutivos da natureza, com grilagem de terras, ódio e violência a povos indígenas e comunidades tradicionais, desmatamento, extrativismo, contaminação das águas e mudança climática tem a maior responsabilidade por nos devolver a uma situação de país dependente e mero exportador de commodities.

Diante disto, o mínimo a esperar de um governo Lula é propor algo como o NIB. Mas, levando em conta o modo como foi elaborado e lançado tal programa, poderá mudar o rumo do nosso país no contexto das nações? Destaco aqui dois aspectos fundamentais que enfrentam a ortodoxia econômica, o que é muito necessário, sem dúvida. Trata-se de definir algo abrangente na forma de Missões/Objetivos por setores. Não é esta ou aquela indústria, mas processos de integração industrial por setores. Ao mesmo tempo, são estabelecidos Princípios Orientadores, carregados de sentido democrático includente. [i]

O NIB foi lançando com pompa, com presença de quase todos os ministérios (menos o ministro da Fazenda, F.Haddad – emblemático, dado o contexto) e o recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (criado no Governo Lula I, em 2004). Foi gestado por um grupo de trabalho liderado por Geraldo Alkimin, o vice-presidente e ministro da Indústria. Muitas pessoas qualificadas do mundo acadêmico participaram do processo.

Como é de esperar, a grande mídia reagiu com críticas. E a Bolsa caiu. Coisas a esperar, pois o plano tem a virtude de demonstrar que o Governo Lula está afim de reestabelecer o devido protagonismo do Estado Brasileiro, não aquele capacho e subserviente da banca. Chega de “Estado Mínimo” do neoliberalismo. Mas, atenção, estamos diante de forças nacionais e internacionais poderosas, dispostas a impedir qualquer aventura deste tipo pelo mundo, ainda mais num país de importância estratégia pelo tamanho da população e território, com imensos recursos naturais, como o Brasil. Este é o contexto e a ousadia. Como cidadanias, devemos saudar a iniciativa.

Porém, é algo que nasce um tanto velho, com inspiração desenvolvimentista – busca de crescimento de uma economia capitalista – e sem menção a nenhuma  transformação estrutural necessária, como se fosse virtude fazer o crescimento capitalista. Só são apontadas orientações gerais, atreladas a  princípios estratégicos com potencial democrático de inclusão social e sustentabilidade. Mas como em contexto capitalista?

Destaco também a questão estratégia da participação, para além das equipes de técnicos e ministérios. Considerar a Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial como participação da sociedade civil beira a agressão política. O CNDI esteve no lançamento, não sei qual foi a sua participação na elaboração. Mas parece inaceitável considerar o CNDI como grande representante da complexa sociedade brasileira. Afinal, são somente 18 entidades empresariais setoriais e três centrais sindicais que compõem o CNDI. E onde ficaram todas as cidadanias ativas do país, como MTST, MST, os Povos Indígenas, os Quilombolas e os Tradicionais, as Redes de Agroecolonia, os Movimentos contra a Mineração, os Atingidos por Barragens, os múltiplos movimentos de Favelados, os movimentos contra o racismo que combina com colonialismo, os potentes movimentos em torno à saúde coletiva, os movimentos de mulheres e contra a violência, os que lutam contra a fome e a miséria, o amplo leque de organizações de cidadania ativa por direitos, os movimentos contra a mudança climática e por justiça social, os engajadas na defesa e difusão da vibrante cultura popular, as igrejas (por que não?) ... Enfim, a lista dos que de algum modo serão impactados por projetos da NIB é a população como um todo. Claro, grande maioria só vota e acaba não tendo uma voz própria capaz de ser ouvida.

Toda a proposta do NIB seria algo mais virtuosa se ao invés de apresentar um projeto tecnocrático de industrialização, a cidadania ativa do país em sua diversidade ampla (ainda insuficiente para incorporar a todas e todos) tivesse sido envolvida, sua voz escutada e seu protagonismo convocado para se contrapor aos rentistas parasitas. Economia não é coisa de empresários interessados em acumular, é a produção das condições de vida, cada vez mais interdependente, que precisamos num gigante país como o Brasil. Economia é um campo de disputas e precisa ser politizado e fecundado por princípios e valores éticos de democracia ecossocial, coisa que só a multidiversidade e a pluralidade de cidadanias ativas pode gestar. Ainda há tempo, mas a vontade política do núcleo central do poder olha para este lado? Ou tem medo de enfrentar o Centrão capacho dos interesses corporativos que ameaçam a democracia?

 

 

 

 



[i] O melhor artigo que li a respeito é de Paulo Klias. Ver: P.BLIAS. “Nova Indústria e o desafio à ortodoxia publicado originalmente em Outras Palvaras. Acessado em Combate ao Racismo Ambiental, de 24 de janeiro de 2024.

sábado, 20 de janeiro de 2024

CIDADANIAS E TERRITÓRIOS EM SITUAÇÃO DE RISCO: O QUE FAZER?

Tal composição do título resume o que é viver como cidadanias consideradas periféricas, condenadas a viver em territórios urbanos e rurais entregues à própria sorte pelo domínio dos interesses do grande capital excludente, territórios comunitários com carências múltiplas e sem a devida atenção de políticas públicas, sujeitas à mudança climática em curso, tempestades e enchentes devastadoras, grileiros, garimpeiros, milicianos e traficantes, além de agressivas e violentas ações policiais, produzindo mortes. É difícil contabilizar a perda de vidas e de condições de viver nestas circunstâncias esquecidas, fora do radar, onde predominam a fome, a miséria, a negação de direitos iguais na diversidade do que somos, e as ameaças de morte no dia a dia. Aí, a solidariedade e a autoajuda comunitária é o que pode aliviar a dor e, sobretudo, salvar vidas em momentos de catástrofes.

Na disputa de ideias e direções com sentido de conquista de hegemonia democrática, de transformação ecossocial includente em direitos iguais na diversidade, esta questão, que atinge praticamente a metade da população do país, é um desafio central para cidadanias ativas em suas concepções e no seu que fazer. A barbárie do capitalismo, com sua exploração do trabalho, seu colonialismo, racismo e patriarcalismo, seu imperialismo, seus exércitos e armas, para acumular sem limites, se manifesta plenamente na criação sistemática de periferias, num processo que se estende dos vários territórios locais do para o mundo como um todo. O genocídio é visível e incontestável em situações como a da guerra de Israel contra o povo da Palestina. Mas o genocídio – é fundamental não perder de vista – é algo  presente, de forma permanente mas diferente, em praticamente todos os territórios  e países.

É próprio da lógica de exploração e dominação capitalista gestar permanentemente enormes contingentes de periferias espalhadas por todos os países do planeta. Basta olhar a “celebração” e debates anuais do grande capital no Fórum Econômico Mundial, dos 1% de donos do mundo,  nas montanhas isoladas de Davos, para se dar conta da “fortaleza”  que  protege a pequena parcela globalizada dos proprietários e gestores das grandes empresas e grandes fortunas.

Os grupos contingentes de pobres da população mundial não vivem em fortificações protegidas e nem tem acesso a elas. Os territórios concretos, com suas potencialidades e carências, é seu pedaço de chão, mas sob ameaça permanente praticadas por forças externas a ele. Claro, o risco de destruição por eventos climáticos ou então de expulsão a qualquer hora faz parte do cotidiano, basta que seu território seja avaliado como base de expansão de negócios por forças do capital em busca de valorização, tanto nas cidades, grandes ou pequenas, como nos campos, matas e águas!

O desafio político transformador de tal situação é construir coletivamente potência cidadã viva e múltipla no seu seio, pela própria população local, em seu território de vida. Por sinal, no mundo inteiro, as experiências mais poderosas e virtuosas de transformação criam raízes e se difundem a partir dessas populações em situação de precariedade. Não são obras de engenharia desenhadas sem participação local ou políticas monetárias compensatórios que podem mudar a situação de exclusão e risco. Sem dúvida, mudanças envolvem canalização de recursos. Portanto, sempre vão ser necessários governos e políticas públicas, pois o  capital que investe localmente estará sempre visando a sua própria acumulação, nunca as necessidades e o empoderamento da comunidade. Por mais precária que seja a situação da comunidade humana local a verdade é que para ela é seu território de vida, de cidadania. Ou ela é sujeita de sua própria transformação, ou a transformação será contra ela, nunca em seu benefício. Pior de tudo é que, as próprias ações do poder público podem levar à expulsão, como muitas vezes ocorre. É fundamental ter claro este ponto para não continuarmos cometendo os mesmos erros do passado.

Num situação como a de hoje, de domínio das grandes corporações econômicas e financeiras em escala global, de um lado, desigualdades, exclusões sociais, pobreza e fome, também globalizadas e em expansão, de outro lado, a mudança climática planetária vem avançando de forma cada vez mais acelerada e devastadora. Na avaliação de especialistas de centros científicos pelo mundo junto com movimentos e fóruns mundiais de cidadania ativa e muitos governos do Sul Global, estamos diante de implosão do planeta e da própria humanidade, das condições de viver para todas formas de vida, enfim. Os eventos climáticos extremos do ano que passou e que continuam neste são incontestáveis. Mas a fome e pobreza também são.

Minha intenção inicial não foi, mais uma vez, focar a estrutura de poder econômico, imperial e militar que domina o mundo e de onde só dá para esperar que nada mude ou, ainda pior, que a destruição ecossocial só se acelere. Para criar transformação  resiliente é necessário resistir, buscando saídas no contrapé da globalização capitalista, olhar o mundo de baixo para cima ao invés de cima para baixo. Ou seja, descobrir e fortalecer o que é específico, a grande diversidade ecossocial territorial, sua população, sua organização econômica, social e política, o poder de suas vozes, participação e culturas. A base é o  princípio da convivência com os sistemas ecológicos do território comunitário, não obras de engenharia, como a experiência da ASA e as cisternas para a conservação da água, no Semiárido do Nordeste do Brasil, demonstram cabalmente.

Neste sentido, trata-se transformar “carências” nos territórios de vida  em “potências transformadoras”, como muitas comunidades locais, urbanas e rurais, com suas organizações e redes de prática agroecológica, proteção comunitária, afirmação social, política e cultural vem demonstrando pelo Brasil afora. Esta é a fonte de inspiração básica para um irresistível movimento transformador ecossocial, com capacidade de trazer os direitos ecossociais iguais na diversidade do que somos e do que são as potências e comuns contidos no territórios, para nesta base começar a construir um outro Brasil e um outro mundo, onde todas e todos cabem e a integridade de todas as formas de vida e dos sistemas ecológicos sejam parte do viver humano.

Não podemos nos iludir com o “mantra do desenvolvimento” baseado na prioridade do investimento privado das grandes empresas e negócios, dos 1% de “donos” e seu poder. Daí só poderá vir mais extrativismo e destruição ecossocial, mas crescimento de seu capital, mais exclusão, mudança climática e morte, em última análise. Além de guerras, armas, muralhas e genocídios, numa combinação terrível como vemos no dia a dia. Desenvolvimento é o favorecimento da exploração do petróleo, das minas e do agronegócio, desmatamento, contaminação, doenças e “criação sistemática” de periferias em territórios de sofrimento e risco, de expulsões e migrações, além da ameaça de mudança climática. Desenvolvimento é favorecimento ao capital e limites de financiamento nos programas públicos potencialmente de cuidado de gente e da natureza. Desenvolvimento é política fiscal restritiva para tudo que é ecossocial, democratizador, transformador e garantidor de direitos iguais na diversidade.

Como afirmam os “Zapatistas de Chiapas” a solução é dar lugar a “muitos mundos num mesmo mundo”, o planeta Terra, para reencontrar e reconectar nossas vidas com as possibilidades dos territórios: sejam polos ou zonas equatoriais, tropicais, temperadas, Sul, Norte, Leste, Oeste, zonas costeiras de mares e oceanos ou rios, interiores profundos, planícies, vales, planaltos ou montanhas, grandes matas, campos ou terras semiáridas, desertos e seus oásis, com suas biodiversidade. Não há um modelo único por razões ecossociais – de dinâmica ecológica combinada com dinâmica social em todos os sentidos. A sustentabilidade depende do colar-se às potencialidades do territórios gerido como um comum compartido. É assim que se criam e desenvolvem as culturas humanas, parte da solução sustentável.

Mudar de perspectiva – na verdade de paradigma analítico e político – é necessário para ver, pesquisar e avaliar questões fundamentais que estão um tanto fora dos debates mundiais. Por isto a insistência na territorialidade das situações concretas. Mas isto não muda o fato também fundamental que somos uma mesma humanidade no mesmo planeta Terra. Como não dá para desconsiderar o fato que a mudança climática é de ordem planetária, mas de efeitos diversificados segundo os territórios,  mesmo olhando de outra perspectiva não podem deixado de lado ou ignorado tal dimensão. A verdadeira sabedoria está em entender e agir a partir do específico – a dinâmica específica da vida em territórios específicos – e construir a pluralidade do todo, do planeta terra.[i] Isto é algo por ser feito, mas que o domínio pela globalização capitalista, através da economia, do poder estatal e da ideologia/valores, impede. Temos que estar mais nas ruas, no chão da sociedade, do que em eventos globais nada consequentes pelos seus acordos simbólicos, sem força impositiva aos governos e corporações globais.

Precisamos mudar de perspectiva e ação. Claro, nas múltiplas formas que a crise climática afeta as periferias, precisamos cobrar urgentes ações de emergência para salvar vidas e um mínimo de conforto para quem tudo perde, sem esquecer da vergonhosa escalada de violência, emprisionamento e morte, focada especialmente nos jovens negros, por ações de milícias e polícias militares. Estas ações, contudo, não podem parar aí. Devemos exigir mudanças para valer, deste a contenção do capital imobiliário e milícias, e propostas de ações estruturantes concertadas com a população pobre e excluída que vive nos territórios periféricos. Chega de territórios de exclusão! Não basta de grandes conjuntos habitacionais longe das comunidades concretas e seus desejos, ou de obras de engenharia nos próprios territórios sem participação e respeito às visões, modos de viver e demandas das próprias comunidades. Existe muita vida, capacidade e criatividade apesar de serem territórios hoje de periferias em risco. Quem precisa de atenção e apoio não é a indústria de construção, mas a população do território concreto, visando fortalecer o seu potencial e resiliência. Para isto ela tem que ser a cidadania ativa e não mera população periférica ou favelada beneficiada. Estamos diante de construção conjunta de alternativas, entre as comunidades e os poderes públicos, onde empresas, quando necessárias, são apenas executoras do acordado com a cidadania local e mediação  do poder público.

Finalizo assinalando que a participação cidadã sempre faz a diferença em qualquer ação governamental que vale a pena. Mas não dá para confundir participação como ter um espaço e uma oportunidade de ser consultado pelo poder estatal sobre decisões já tomadas ou políticas já definidas por especialistas, nos reservados espaços do poder. A participação  fundamental é na concepção, na construção e na própria implementação de qualquer política democrática ecossocial transformadora, inspirada na igualdade de direitos de ser e viver como cidadania na diversidade. Daí, sim, podem vir ações  governamentais e de cidadania com virtuosidade, tendo no centro os comuns, o cuidado, a convivência e o compartilhamento como bases territoriais de resiliência ecológica e cidadã. Aliás, as transformações que ocorreram e podem ocorrer dependem do fortalecimento da cidadania local, suas resistências, propostas e ação coletiva. Nunca do capital ou da “boa ação estatal”, apesar de necessidade de investimentos e, sobretudo, da atenção e ação cuidadosa do Estado aos clamores da cidadania sujeita a viver no risco permanente no próprio território comunitário, com grandes necessidades.

 

 



[i] Aqui lembro a discussão feita em uma postagem anterior – “A Inevitável e Inadiável Transição” – quando destaquei a importância estratégica de participar e construir o “Tapete Global de Alternativas”. A respeito ver o site <globaltapestryofalternatives.com>.