Esta é a questão fundamental para a cidadania decidir dentro de duas semanas. O problema é que ainda não temos de todo assegurada, no seio da sociedade civil, a hegemonia da própria ideia de que a democracia, como o modo de viver, divergir e lutar politicamente, é um valor estratégico comum a garantir para enfrentar nossos problemas em busca de justiça ecossocial e bem viver. Qualquer analista sabe que muita gente nossa conterrânea avalia ainda que o problema é a democracia em si, devido aos seus ideais e direitos de maior igualdade e liberdade para todos, sem discriminações. Trata-se de classes e setores que avaliam ser a própria democracia a causa maior dos seus problemas materiais, valores e crenças, que os leva a apostarem em soluções até autoritárias. O apoio ao golpe parlamentar de 2016, a eleição de 2018 de um defensor da ditadura militar, que, como governante, “ abriu as porteiras e deixou a boiada passar” sobre direitos e conquistas de políticas de combate às desigualdades ecossociais, até sobre vidas humanas, mostram que o câncer destrutivo da democracia tem raízes profundas na classe dominante e entre amplos setores intermediários. Ou seja, em nosso país, a batalha pela democracia em si, com soberania cidadã e popular, não foi vencida de forma duradoura. Ainda temos que lutar contra heranças estruturais, como o racismo, o patriarcalismo e a violência, profundamente enraizados entre nós. Temos uma atribulada história de país, com autoritarismos e exclusões sociais, baseada na colonização internalizada e subsidiária dos mercados globais, que muda para nada mudar nas estruturas econômicas, sociais e de poder dos donos de tudo. Desafio e tanto!
Colocada a questão com tal perspectiva, as eleições deste ano são as mais decisivas desde que entrou em vigência a institucionalidade democrática reconstruída com a Constituição de 1988. Ela é um marco em nossa democracia, sem dúvida. O potente marco constitucional de 1988, não é algo já acabado e garantido, mas um começo virtuoso, ainda limitado. A história democrática mais intensa e duradoura ainda precisamos fazê-la para celebrá-la, com lutas por novas conquistas e muita participação cidadã, a real força instituinte e constituinte legítima. As conquistas democráticas que tivemos neste período de pouco mais de três décadas não são desprezíveis. Mas, talvez, tivemos derrotas e retrocessos muito maiores, que hoje nos limitam e que precisamos superar.
Em todo caso, derrotar a proposta autoritária com viés fascista será um divisor de águas. Trata-se de condição fundamental para voltar a buscar caminhos baseados no potencial da democracia como modo de realizar transformações nas estruturas e processos para garantir direitos ecossociais com igualdade na diversidade. A vitória de uma volta à “normalidade” democrática está sinalizada no processo eleitoral como uma possibilidade real, levando em conta o que as pesquisas e os analistas independentes apontam. Porém, gostaria de assinalar a questão que mais me preocupa para o além das eleições: trata-se de avaliarmos onde estamos como cidadanias ativas e como agiremos para dar potência à democracia a ser revitalizada, evitando futuras derrotas como as que tivemos nos últimos anos, tanto nos Executivos Federal e Estaduais, como, também, no Congresso Nacional e Legislativos Estaduais.
O desmonte de direitos conquistados constitucionalmente e de políticas efetivas foi de monta. Exigirá um gigantesco processo de reconstrução. Aí aparece como a questão incontornável e de primeira ordem o enfrentamento da “ditadura” do mercado na economia, que não aceita regulação necessária paras atender prioritariamente ao bem comum de todos. Sim, antes de Bolsonaro, fomos derrotados pela busca de “conciliação” com os interesses de bancadas lobistas a serviço dos donos de terras, empresas e bancos, associados ou não de multinacionais, segundo as regras de um capitalismo global sem controle. A ditadura fundamental é a sua internalização, que não admite nenhuma regulação de mercado e nem a taxação de seus gigantescos lucros privados e vergonhosa concentração de renda. Isto nos fez retroagir em termos de capacidade autônoma e nacional na indústria e privatização das grandes empresas estatais. Voltamos a depender fundamentalmente da produção e exportação de commodities minerais e do agronegócio, assim como passamos a viver ao ritmo da especulação financeira e da liberdade de acumular sem limites e com fraudulentos paraísos fiscais de proteção aos ricaços. Tudo isto ajustado às tais demandas e regras dos mercados globais, de costas para o nosso país e sua gente.
Para a grande maioria, o que mais voltou a atingir foi o desmonte de políticas sociais como saúde, educação, combate à fome e miséria, assalto aos bens comuns naturais e culturais, especialmente pela redução orçamentária. A adoção de políticas econômicas de respeito irrestrito e prioritário ao pagamento de juros da dívida pública , com a tal “responsabilidade fiscal”, vem afetando direitos de todas e todos. Destacam-se a redução sistemática de direitos trabalhistas e a aposta na uberização e informalidade do trabalho para grandes contingentes excluídos; a destruição de territórios de povos indígenas, tradicionais e de conservação, para agronegócio e mineração; a violência com rearmamento liberado e incentivado, com periferias controladas por milícias e tráfico. As grandes periferias urbanas e rurais estão sendo privados do essencial para viver e total falta de perspectivas de dias melhores no amanhã.
Aqui estou preocupado em apontar dois grandes desafios incontornáveis para a democracia, além da institucionalidade em si: o mercado totalmente livre e as desigualdades sociais estruturalmente geradas. Neste segundo incluo todo o pacote de racismo estrutural, patriarcalismo e machismo, descriminações múltiplas, colonialidade, violência, desigualdade em renda, habitação, acesso a educação e saúde de qualidade, a centralidade dos bens comuns naturais e culturais para o conjunto. São duas facetas de uma “ditadura” real tanto nas relações de poder, como sobretudo nas relações e processos econômicas, sociais e culturais, que uma democracia intensa e potente tem que enfrentar para ter sentido no que promete: liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade, em busca de cuidado, convivência e compartilhamento, com reconhecimento e maior respeito mútuo. Tudo isto é uma condição indispensável para reestabelecer uma nova relação com a própria natureza, que dá condições de vida a todas e todos, e poder capacidade para enfrentar a urgente mudança climática e destruição da integridade dos sistemas ecológicos deste imenso território que precisamos cuidar como um comum.
O que defino como ditaduras do
mercado e das desigualdades sociais são
criações humanas destrutivas e só nós humanos podemos enfrentá-las com a
potência da democracia. Ou seja, pela ação cidadã, num processo virtuoso de
pressão e negociação segundo regras comuns institucionalizadas, que permitirá
avançar com transformações ecossociais para criar resiliência e novo futuro
para todos e todas nós, para a humanidade inteira, de bem com o nosso lugar no
planeta, desde os territórios em que vivemos.
O que estamos debatendo na atual disputa eleitoral é apenas um primeiro passo indispensável. O desafio que vislumbro é para muitas gerações e sempre poderá se defrontar com novos desafios. Mas temos que começar agora, antes que a barbárie nos destrua e torne a tarefa quase impossível. Dá para apostar! Ao menos sou parte de todas e todos que ainda acreditam, no Brasil, na região e no mundo. Afinal, a história é uma construção coletiva, sempre podemos nos inspirar nas derrotas e vitórias. Só precisamos olhar mais, com atenção e respeito, para a potencialidade democrática latente no nosso seio, desde as maiorias excluídas, pois é daí que pode vir algo novo e transformador.
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