A vitória na disputa eleitoral foi um ganho estratégico para quem
luta pela democracia, afastando temporariamente a ameaça fascista. Mas a
disputa democrática não acaba com as eleições e a institucionalidade que as regula, legitima e
confere poder estatal. Já entramos em um novo momento, uma nova conjuntura. E
as ameaças estão aí, com forças que não podemos ignorar, tanto na esfera
política, como, sobretudo no seio da
sociedade civil. O imaginário autoritário e fascista se revelou forte e está
entre nós, nem tão camuflado e envergonhado de pregar a sua visão de mundo,
seus valores e seus métodos.
As democracias se assentam em disputas e extraem virtude
delas, mas segundo regras instituídas. Isto implica em encontrar formas de
convivência entre blocos de forças divergentes e opostas, sempre com
possibilidades de novos arranjos. Assim, a normalidade democrática é disputar,
disputar..., negociando muito. No entanto, como cidadania somos os detentores
do poder último para, pelo voto, decidir sobre maiorias, mudando até a institucionalidade se necessário
for. É para isto que existem os instrumentos do plebiscito e do referendo,
assegurados em nossa Constituição. Também podemos, como cidadania, propor
iniciativas legais com a mobilização de um certo percentual de apoios formais
(assinaturas por quem ter direito de votar), estabelecido na Constituição. Mas,
aqui se impõe reconhecer, são instrumentos fundamentais, quase sempre ignorados pelos que obtiveram de nós o mandato
para exercer o poder estatal em nosso nome no Brasil, nas últimas três décadas
e meia de democracia conquistada. Na verdade, sua efetividade depende de nossa ação
cidadã, quase exclusivamente.
Uma tal introdução política um tanto conceitual, aqui no
blog, é para apontar uma questão que é o nosso maior desafio atual. Estou me
referindo às fortes forças que abraçam o fascismo no Brasil e negam a própria
democracia. Não podemos, de jeito nenhum, confundir o núcleo aglutinador do
fascismo como sendo composto por todas e
todos que votaram no “imbrochável”, mas sim reconhecer a sua capacidade de
obter votos de cidadania com pregação antidemocrática. Como conviver e disputar
com este bloco que se opõe à democracia? Nem temos uma qualificação completa de
sua composição e da sua real capacidade de pressão e disputa para além dos
espaços de poder. A primeira e maior constatação é que, nas últimas eleições,
esteve em jogo a democracia enquanto valor e projeto político social de
convivências de toda a sociedade. Estivemos sob ameaça de ruptura
democrática e, por isto, a vitória que demos
a Lula tem um peso estratégico, de contenção conjuntural da ameaça, mas não de sua eliminação.
Precisamos reconhecer, queiramos ou não, que o fascismo está
implantado no chão da sociedade e no nosso cotidiano, não só nas estruturas e
órgãos estatais. As forças no Executivo, Congresso e Judiciário de algum modo
podem conter a ameaça, mas tem limites institucionalmente definidos. Assim, destaco
aqui o fato que esperar daí uma saída é corrermos um grande risco, pois o
fascismo está implantado aquém e além das instituições democráticas. Tem raízes
profundas na sociedade brasileira, especialmente em certas classes e setores
sociais, e tem representação com poder de veto no Parlamento. Enfim, não
podemos baixar a vigilância e a determinação que nos permitiu ganhar em termos
eleitorais.
Temos muito mais com que nos preocupar associado a tudo isto.
Basta olhar pelo mundo para ver que estamos diante de uma onda emergente de
autoritarismo e de fascismo no interior de muitas nações. Não somos uma
exceção, longe disto. Claro que as histórias e as situações tem grandes
diferenças. Sempre precisam ser consideradas. Mas também existem alguns
processos que podem ser comparados. Não é o objetivo desta pequena reflexão.
Simplesmente, aponto a prevalência da “ditadura do mercado” a serviço das
grandes corporações econômicas e financeiras que está no centro da
globalização. Já há um debate instalado em alguns centros universitários
famosos sobre como o pacote de políticas e medidas da globalização neoliberal,
do respeito absoluto ao mercado (que denomino de ditadura do mercado), é
essencialmente destrutivo das conquistas democráticas e tem um viés fascista
excludente.
Bem, no Brasil, temos isto minando permanentemente a
democracia. Até parece que podemos tentar melhorar aqui e lá, com mais
políticas para garantir direitos, mas desde que respeitando a ditadura do “teto
de gastos”, exigido pelo tais mercados “impessoais”. Só sabemos quem ganha sempre
e acumula espantosamente, gerando o que temos: um punhado ínfimo de empresários,
banqueiros e grandes proprietários no
agronegócio vergonhosamente ricos como contrapartida de maiorias da população
escandalosamente miseráveis, famintas e excluídas. Bem, o espaço aqui não
permite ir além. Mas se buscamos uma causa para o fascismo prosperar e a nos ameaçar abertamente, aqui no Brasil, na região e no mundo, temos
que enfrentar tal realidade de poder de fato. Como desta vez o futuro Governo
Lula vai tentar extrair algo disto é uma grande questão a ficarmos atentos.
Damos legitimidade a Lulae o bloco de forças políticas que gravitam em sua
volta podem para, ao menos, tentar
buscar formas melhores de regulação dos mercados, contendo o seu poder em nome
da democracia enquanto tal.
O fato é que estamos numa espécie de momento de espera, de
alto risco, vendo as negociações para a efetiva composição do novo executivo na Planada dos Ministérios
com poder e habilidade de negociar, negociar e, talvez, ceder sem comprometer a
própria democracia! Bota desafio nisto. Já se formou um tecido protetor externo
de reconhecimento da vitória, que não pode ser desprezado, e as instituições
parecem abertas para negociação. No entanto, há o desafio de extirpar, na forma
das leis vigente, o fascismo de dentro de importantes instituições estatais.
E as cidadanias ativas enquanto isto? Volto ao início e
reafirmo que a disputa não acabou, mudou de patamar somente. Que poder de
participação esperamos ter no governo, sem sermos governo, e como vamos
exercê-lo? O engajamento amplo na disputa eleitoral, sobretudo segundo turno,
foi decisivo em minha avaliação. Mas a tarefa não terminou, pelo contrário,
precisa ganhar força e chegar a setores sociais e territórios em que vivem
cidadanias que, de alguma forma, foram contaminadas pelo antipetismo e deram
apoio eleitoral às propostas fascistas. Tal questão precisa ganhar relevância
no nosso ativismo pela democracia e nas análises daqui para diante, para criar
diques mais amplos às propostas fascistas, que continuam ameaçadoras, só não vê
quem não quer.
Aqui entro numa questão estratégica para o campo da disputa
política no seio da sociedade civil. Não me refiro a partidos, mas à questão de
construir hegemonia para a própria proposta de uma democracia de direitos
iguais na diversidade, democracia de justiça ecossocial, democracia com poder
de obter a adesão consciente de corações e mentes, para participar em todos os
espaços possíveis e imaginários de construção do seu próprio poder instituinte
e constituinte da democracia. Só assim vamos ampliar a construção de barreiras
sociais, culturais e políticas ao fascismo.
Só para lembrar, a disputa de hegemonia está aquém e além das
estruturas formais e institucionais de poder. Seu lugar é, essencialmente, no
seio da sociedade civil e suas instituições: territórios de viver e comunidades,
organizações, sindicatos, associações e movimentos sociais, coalizões, redes,
fóruns, com as suas diversas identidades, vozes e plataformas de ação, instituições
de cuidado das pessoas, espaços e práticas de cultura e comunicação, universidades e editoras, igrejas em sua
diversidade. Os partidos políticos, apesar de sua legitimidade institucional,
especialmente nas disputas eleitoras e representação no poder estatal, nunca
conseguem representar politicamente o tamanho e o poder de tal diversidade em
termos ecossociais e econômicos. No entanto, é neste plano da sociedade civil que
a diversidade ecossocial, que nos constitui, encontra o seu direito de reivindicar
pertencimento e reconhecimento como titular de direitos iguais, base da
cidadania em democracias que vale a pena viver.
As eleições nos deram um vislumbre do desafio que temos pela
frente desde, no mínimo, a eleição de 2018. Estou explicitamente apontando o bode de algum modo presente em tudo: a
propaganda fascista de visões, princípios e valores de grande impacto, pois usa
melhor que nós as novas tecnologias de informação e as redes sociais que
permitem construir imaginários. Ou seja, a “invasão” da pregação de tipo cruzada destrutiva, de apagamento, em
nome do lema fascista de “Deus, Pátria, Família”, com temas como homofobia,
misoginia, racismo, armamento e violência, liberdade confundida com o próprio
interesse acima de tudo, com fakenews,
e nenhum compromisso com a verdade. Está
invasão está ativa e já demonstrou capacidade de penetração em amplos setores
sociais. Ela tem tudo para continuar com força.
Precisamos agir ainda com mais determinação neste espaço da
sociedade civil e sua complexidade já e com determinação. Não podemos esperar,
pois esperar não é saber... como bem lembra a canção que foi nossa, sem
conspurcar mas disputando valores, princípios e até símbolos.
Sensação de sair do sufoco... pelo menos um pouquinho... bom te ouvir!
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