A celebração do Dia de Direitos Humanos – data da Declaração Universal
de Direitos Humanos, pela ONU, em 10 de dezembro de 1948 – faz pensar no porquê
a maioria da humanidade ainda vive em situações de violação de seus direitos
básicos e grande parte dela até os desconhece, pois não são referência para as
suas vidas.
Algumas questões preliminares se impõem aqui. Direito para
ser direito tem que ser igual para todas e todos, sem nenhuma discriminação de
classe social, gênero, raça, cultura, religião, país. A diversidade é própria
da condição humana e ela mesma um direito, desde que não seja negada a
igualdade na diversidade. Privilégio de alguma classe ou raça, por exemplo,
nunca pode ser considerado um direito, exatamente porque carrega em si a
negação de direitos para outras e outros. Direitos humanos têm a ver com os fundamentos
do pertencimento e do viver compartilhado, com as concepções e visões sobre a
comum condição humana de uma perspectiva de princípios e valores éticos
definidores do que é o viver humano no Planeta Terra, base da vida. Sem dúvida,
Constituições de países e leis sobre direitos são importantes, mas derivadas e
sempre limitadas pelas contradições sociais próprios dos momentos históricos em
que foram estabelecidas.
A própria natureza, como um grande comum, é um direito humano
compartilhado entre todos os seres vivos, humanos e inumanos. Estamos aqui
diante da natureza como sujeito de direitos próprios a ser cuidados e
preservados por nós, humanos, respeitando a integridade de seus sistemas e
lógicas como condições para todas as formas de vida, humana e não humana, em
sua maravilhosa diversidade. São raras as constituições e legislações de países
que de algum modo sinalizam o fundamental que é a natureza para a plenitude do
viver.
Assim posto a questão, as desigualdades e injustiças
ecossociais se refletem nas exclusões e destruições tanto na sociedade como na
natureza. Por isto são violações de direitos e denúncias das relações,
estruturas e processos que as criam. Em termos práticos, os territórios humanos
em que vivemos, com suas especificidades únicas, são expressões concretas e
singulares da indispensável relação entre vida humana e integridade da natureza,
mediada por relações sociais, culturais, políticas, econômicas e técnicas. E é
nos territórios humanos de vida, trabalho e convivência social – territórios de
cidadania real - que o “estado” dos direitos humanos se manifesta plenamente, como síntese de
direitos vividos, garantidos ou não pelo Estado, percebidos como consciência
social e onde as pessoas se organizam e lutam coletivamente por seus direitos[i].
É em tal quadro que importa situar a questão dos “direitos
humanos” e não se limitar no que pode constar de estatutos, leis ou
declarações, num país, em vários países, ou nos tratados e organismos
internacionais, como a ONU. Estes são
importantes como expressão de conquistas, mas longe de ser a única ou mais
importante referência para a complexa vivência, de lutas e de violações
concretas de direitos ecossociais pelo mundo. A Declaração Universal de
Direitos Humanos, por exemplo, não tem nada de universal e nem é base
suficiente para enfrentar desigualdades e injustiças ecossociais no Planeta com
a radicalidade que demandam as diversidades de cidadanias territoriais. Basta
lembrar aqui que a sacrossanta e intocvável propriedade privada, afirmada na Declaração
da ONU como direito – base de privilégios milenares e no centro do capitalismo –
é a fonte estrutural e principal causa de quase todas as injustiças ecossociais
pelo mundo. Quando se fez a declaração, no pós segunda guerra, foi uma importante
conquista, mas não dá para esquecer que ela carrega em si uma visão “universal”
eurocêntrica, capitalista, colonial, racista e patriarcal, ou seja, do satus quo das relações geoeconômicas e
políticas e seus imperialismos dominadores vencedores. Serviu e serve em termos
práticos, na falta de algo melhor, ainda mais que se desdobrou em estatutos
complementares, nas Assembleias anuais da ONU,ao longo de mais de 70 anos de
vigência.
Assim, vale a pena lembrar a data, ocasião para refletir
sobre a distância existente entre as desigualdades, injustiças, exclusões e
destruições ecossocias vigentes pelo mundo diante de regras e leis de direitos
que nem as reconhecem. Entendendo a emancipação social como vivência plena de
direitos ecossociais para todas e todos, sem discriminações, temos o tamanho e a
profundidade das transformações necessárias no modo como nos organizamos para
viver e nos relacionar com a natureza, base de vida para todos seres vivos.
Uma proposta já implantada como algo pensado e de grande
potencial transformador, mas que existe desde que existem seres humanos, diz
respeito aos “comuns”, bens comuns, direitos aos comuns. Numa época que ganha relevância a questão da
mudança climática do Planeta Terra é estratégico pautar tal debate como uma questão
de direito comum planetário violado.
Se a mudança climática está mudando por ação humana, importa identificar quem vem
ao longo dos últimos séculos provocando a mudança climática, uma ameaça para
todas e todos, para toda forma de vida. Para viver dependemos da integridade
dos sistemas ecológicos, que tem limites naturais dados para seu pleno
funcionamento. Os limites de sustentabilidade de muitos dos sistemas ecológicos
já foram ultrapassados pelo modo dominante predatório como tratamos a natureza
e pairam como ameaça para a vida de toda humanidade e o próprio Planeta.
Claramente, estamos diante de destruições e injustiças ecossociais, com causas
e responsáveis claramente identificados, algo em torno de uma percentagem
insignificante da humanidade. Mas as consequências são para todo mundo.
Essencialmente, a crise climática foi e continua sendo
causada pelo capitalismo dominante, pelos que detêm o controle do capital
global através de grandes corporações econômicas e financeiras, em busca de
mais e mais acumulação, impondo tanto modos de produção e apropriação de bens e
serviços, como modos de consumo. Assim, exploração de trabalho e extrativismo
natural para a acumulação de riquezas move o mundo em detrimento da humanidade,
da biodiversidade e da natureza em geral. A crise climática é a ponta mais
emblemática e ameaçadora de tal destruição.
Essencialmente, pode se dizer que é um comum planetário que
está sendo destruído. Mas temos consciência de que é um comum? Considerados o
comum e o enfrentamento das suas causas e injustiças que gera como violações de
um grande direito comum e na base de todos os demais direitos? Ou vendo por
outro lado, os que lutam para preservar a integridade natural de territórios que
ocupam, como sua base comum de viver – povos indígenas e tradicionais –, são
considerados por nós, as e os outros, no
nosso país e pelo mundo, como inspiração e condição para outro mundo?
Como nós consideramos a Amazônia e todos os outros biomas brasileiros? Um comum
gigantesco a preservar ou terras a conquistar, colonizar e explorar, no centro
da visão dominante ainda hoje? Como vemos os povos que vivem em ilhas deste
mundão ameaçadas de sumirem pela elevação dos oceanos, devido à mudança
climática e seu impacto nas massas polares do Planeta?
Estas são apenas pontas da grande questão que precisamos
pautar e enfrentar. Não há como só lutar contra desigualdades e injustiças
ecossociais nas nossas grandes periferias urbanas e rurais sem olhar para o
grande comum territorial ameaçado pelas forças estruturadoras de nossa economia
dependente de extrativismos em grande escala, que afeta o mundo todo, não só
nós brasileiros. Não basta olhar o que já está na lei como direitos que são
negados. Que a celebração do dia mundial de direitos humanos nos faça pensar no
que a Constituição e as leis nem veem como a causa profunda das injustiças e
destruições, com impacto num comum planetário, que nos cabe cuidar, em nome da
humanidade, hoje e de gerações futuras, assim como para nós mesmos no imediato.
[i] Aqui estou me referindo a uma discussão estruturada como concepção e testada em práticas de pesquisa e educação popular, que tive oportunidade de conceber. Hoje é um patrimônio teórico e metodológico do Ibase posto a serviço do potencializar de sujeitos coletivos em territórios de cidadania, tanto para a sua identidade e organização, como para as suas lutas por reconhecimento de direitos negados de algum modo, por políticas públicas garantidoras e, em última análise, por sua emancipação. Ver www.ibase.org.
Oi Cândido! O tema dos comuns me interessa muito. Estou aprendendo com seus textos sobre a importância de compreendermos seus vínculos a uma democracia com justiça e harmonia entre as diversas manifestações da vida (e sujeitos!). As investidas do neoliberalismo contra as formas de organização social que preservam a vida e a igualdade de oportunidades na vida são inúmeras e com abrangências diversas. Hoje mesmo assinei uma petição contra a privatização do Parque Marinha do Brasil em Porto Alegre.
ResponderExcluirFico pensando: como nos unirmos em torno da tarefa de reparação histórica das injustiças ecossociais, em um país como o nosso, compreendendo que o tema da fome está totalmente associado a isto?
ResponderExcluirUma bela e preocupante reflexão para uma mundo tão diverso,com cultura,costumes, educação, religiões,clima, espaço geofísico que encerram as maiores diferenças.
ResponderExcluirPrecisamos cuidar do planeta mas não sabemos nem cuidar de nós mesmos.
Obrigada querido amigo por nós fs er pensar.Quem sabe descobriremos como ser únicos nas tantas diferenças.
Aqui Nadia Cândido! Grata por reflexão tão necessária!
ResponderExcluirSalve Cândido, reflexão necessário neste país verde e com seu direito de existir tão ameaçado pela degradação.
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