domingo, 29 de janeiro de 2023

Os Sentidos do Viver e Conviver em Democracia

 A renovação democrática que o Governo Lula apontou tem, sem dúvida, uma dimensão política, institucional e legal que cabe aos poderes impulsionar. Tarefa difícil porque exige ação exemplar, dentro do estrito respeito às regras constitucionais, dos que receberam os mandatos pelo voto democrático. No entanto, os poderes devem mover-se tendo presente os blocos históricos de correlações de forças, que exigem muita sabedoria política, liderança, determinação e muita negociação. Isto Lula tem de sobra. O resultado não é sempre o desejável, mas o possível no momento. Assim são os governos democráticos. Mas cabe à cidadania com sua ação ser ator decisivo no resultado.

Nunca é demais lembrar que a força viva das democracias não reside nas instituições estatais, por mais necessárias e fundamentais que sejam. Para ser claro, lembro aqui os princípios e valores éticos que qualificam os direitos fundamentais da democracia: liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade de todas e todos. São direitos nossos, da cidadania constituinte e instituinte da democracia. O que esperamos e exigimos legitimamente é que as instituições estatais garantam tais princípios e direitos a todas e todos, sem discriminações. É com base neles que poderemos construir uma sociedade com sentido de viver e conviver que tenha lugar para todo mundo, sem exclusões e destruições ecossociais.

Contudo, a “cultura democrática de direitos” é, por si mesmo, algo vivo, em disputa e em construção permanente no seio da própria sociedade civil.  Nunca é possível considerá-la estabelecida e pronta! O nosso presente histórico é suficientemente eloquente para ver o quanto ainda são frágeis a nossa cultura democrática e suas bases. Uma potente estratégica de comunicação implantada no Brasil com difusão de informações falsas via as redes digitais, com articulação internacional, criou um ambiente corrosivo do sentido mesmo da democracia, seus princípios, valores e sua institucionalidade. No nascimento de tal esfera paralela, os grandes meios abertos de comunicação também contribuíram com sua pregação em defesa da criminosa operação policial e judicial da “lava jato”. Aí deu no que deu em termos de ataque amplo à democracia.

Não vale a pena lembrar toda a agenda de desconstrução sistemática de direitos e conquistas democráticas desde 2016, com o golpe parlamentar contra da Presidente Dilma. Mas para a questão da cultura democrática gostaria de destacar o ressurgimento em pleno cenário de uma direita autoritária que sempre tivemos e a estratégia de alimentar e difundir amplamente uma cultura de ódio e exclusão de viés fascista no seio da sociedade civil. Temos um câncer destrutivo de princípios e valores éticos da democracia ecossocial entre nós e bastante difundido para a gente ficar muito vigilante e ativa. O retrato do que aconteceu com o Povo Yanomami mostra o quanto de destruição tanto democrática e como ecossocial, com genocídio,  é capaz de produzir uma proposta assim em pouco tempo. Isto sem contar a agressão destrutiva dos símbolos do poder democrático uma semana após a posse do Lula. Temos muito a enfrentar democraticamente.

A vigilância e ação cidadã em prol da democracia precisam ser permanentes. E é nos territórios em que vivemos que ela deve criar raízes de resiliência, pois eles são a base viva em que a sociedade se faz. Os territórios são nossos, um comum natural e construído e compartilhado entre muitos. São de fato nossos? São concebidos e vividos como nossos, com um comum que nos cabe qualificar e, de algum modo, gerir? Se são e quando são territórios comuns e geridos com participação plena da cidadania, o Estado os reconhece? Ou o Estado continua deixando tudo aos milicianos, traficantes, especuladores de terras, grandes grupos econômicos e financeiros e seus grandes projetos privados, com os poderes institucionais capturados ao seu serviço? Esta é uma questão democrática essencial, nas floretas, nas águas, nos campos e nas cidades, que tem a ver com consciência e ação cidadã como condição sine qua não.

 Os nossos territórios formam um mosaico com o conjunto de todos os demais. Nessa integração e interdependência é que se forma o sentido de viver e conviver em conjuntos que nos tornam iguais na diversidade, formam regiões e uma nação democrática.

Por isto, surgem a necessidade e a legitimidade de integrar e participar de movimentos, redes, fóruns, conselhos, coalizões e grandes manifestações, bem como de partidos com expressões da diversidade em disputa. O fazer e o disputar políticas são uma condição fundamental para a ação da cidadania se desenvolver e adquirir autonomia e potência. Mas suas raízes são territoriais. Elas tem mais força quanto mais bem plantadas no seio das células da sociedade civil, que são os territórios de vida e trabalho, de convivência e de compartilhamento, sejam urbanos ou rurais. Mas, são territórios que precisam ser tornados de cidadania, pois as lógicas econômicas e de poder dominantes os tem como territórios de exploração. Só o fato de termos enormes “periferias” por toda parte dá a dimensão do problema real.

A cultura democrática como um comum praticado e pensado, neste sentido, deve ter raízes e se inspirar na diversidade de territórios de cidadania, um grande dom que um país gigante como o Brasil pode conter. Fortalecer tais raízes, cuidá-las e se inspirar nelas é o que pode ser a  base de uma cultura democrática ecossocial transformadora. Todas e todos são necessários, vendo com tal ótica. O que a cultura democrática precisa é aguçar um olhar de direitos ecossociais em questão sobre os modos de viver e enfrentar os muitos desafios do cotidiano. A cultura democrática cria raízes no caldo formado pelas vivências, estratégias diante de carências e sofrimentos, as resistências, as redes de solidariedade, as expressões culturais, os desejos, os sonhos e as  preocupações compartidas. Os canais de conexão, informação e comunicação são os elos de um movimento construtor de cultura democrática que alimentam o sentido de pertencer e conviver, as práticas de proteção e cuidado, as experiências culturais de todo tipo e de busca de reconhecimentos dos direitos iguais possíveis no momento histórico dado. É disto que surgem as potentes identidades e forças da diversidade cidadã, capazes de qualificar as democracias.

Conflitos e disputas que surgem daí são parte da vida e motores de democracias, pois temos direito à igualdade na nossa enorme diversidade. Quando este caldo de ação cidadã tem o sentido de buscar formas de cuidar, conviver e compartilhar, pela participação social ampla transformaremos conflitos e disputas em forças construtores de democracia ecossocial viva e includente. Já fizemos e continuamos fazendo isto tudo. A hora é de renovar e voltar a dar maior potência à nossa ação, condição para Lula liderar um governo que valha a pena ter. Bota desafio nisto para renovar nossa democracia!

 

sábado, 21 de janeiro de 2023

Desafiante Tarefa Política


Inauguramos uma nova conjuntura e um novo processo no Brasil que, na apoteótica posse, o Presidente Lula definiu como de renovação democrática. Mas pelo que aconteceu no curto espaço de tempo desde a posse dá para ter a dimensão do desafio de ordem política institucional que temos pela frente. O Estado está contaminado por dentro por um câncer de ataque à democracia instituída e constituída. Muita coisa precisará ser cirurgicamente buscada, desvendada e enfrentada, em particular nos aparatos de segurança, mas não só. Esta é uma tarefa para as estruturas de poder constituído: executivo, legislativo e judiciário. Como cidadanias em ação, nós podemos pressionar e cobrar, mas dependemos dos poderes, suas competências legais e suas composições políticas. Lula como presidente legitimamente eleito demonstrou determinação e capacidade de articulação dos poderes de um líder que se fez na luta por justiça social na e pela democracia. Contar com ele é muito, mas ainda insuficiente.

Para um renovação que vá à raiz dos problemas, já antes da posse apareceu o veto das “forças do mercado” a qualquer regulação da sua pretensa “total liberdade” de impor a agenda das políticas econômicas. Afinal, temos democracia e elegemos Lula para, com base no Estado, exatamente regular a economia e fazê-la servir à sociedade como um todo: cuidar de gente, em primeiro lugar. Precisamos de economia que seja democrática ela mesma, que crie empregos e produza bens e serviços para atender necessidades coletivas, antes de servir à acumulação de riquezas de um punhado dos super ricos. Aqui o mal é de origem histórica e estrutural no modo como que o país se fez uma nação – o Brasil –, conquistador interno, violento e assassino de gente e destruidor da natureza, colonial, sobre povos e territórios indígenas originários, com escravidão e racismo. Aí a parada é dura, mas sempre a democracia sobre o mercado pode avançar, desde que haja muita vontade e determinação, especialmente na esfera do Estado. A equipe ministerial de Lula tem personalidades que anunciaram virtuosos programas e entusiasmantes intenções. Mas, como cidadania, não podemos cruzar os braços e esperar. Esta também é uma parada que nos cabe, apontando caminhos e resistindo às investidas, como, aliás, estamos fazendo desde sempre.

O que mais me preocupa neste momento é a tarefa que cabe essencialmente a nós, cidadania em ação, já que o câncer antidemocrático atinge severamente a esfera social, está no seio da sociedade civil. A renovação democrática para valer, se ela não acontecer com força dentro da sociedade civil, pode simplesmente fracassar.

No governo que acabou, com sua pregação fascista e de ódio, o tecido social foi esgarçado. Particularmente importante foi a deslegitimação das identidades e vozes por direitos da diversidade de sujeitos cidadãos. As perdas em termos de valores e imaginários são enormes. Mas também em práticas e atitudes, com intolerância e ódio a todos que sejam considerados diferentes e, por isto, inaceitáveis. Legitimou-se e se estimulou o rearmamento individual. Milicianos e grandes setores das polícias passaram a se sentir empoderados para agir com violência e até matar, sem medo de contenção. As invasões e destruições sobre territórios de povos originários e de conservação,  assim como os territórios de sofridas periferias urbanas, foram toleradas quando não estimuladas sistematicamente.

A isto tudo se soma o universo paralelo das redes sociais e das notícias falsas, contaminando corações e mentes, com apoio até dos “mercadores da fé” em áreas populares. Claro, não dá para deixar de fora o papel de desconstrução praticado pelas grandes mídias proprietárias contra tudo o que foi visto como do PT e das esquerdas. Mas o seu papel foi decisivo sobretudo no tirar do armário a direita autoritária e legitimá-la, criando o ambiente para o enorme retrocesso democrático acontecido, que viabilizou a ascensão do fascismo como movimento antidemocrático e de ódio. Enfim, o ataque ao universo político e cultural foi devastador. Este universo é o verdadeiro berço das democracias, pois  funciona como fermento de imaginários, de valores e da cultura democrática da iguais direitos na diversidade, como motivação e engajamento prático.

Estou me referindo à urgente tarefa da reconstrução de um irresistível  movimento inspirada em princípios, valores, direitos, concepções e visões estratégicas do fazer democrático. Isto pode e deve contar com o apoio de um governo que aposta na renovação democrática. Afinal, cabe a ele  investir em políticas de cuidado democrático: direitos humanos, educação, cultura, comunicação, indígenas, igualdade racial, mulheres, tudo com a maior inclusão, sem fronteiras entre nós. Mas o protagonismo deve ser da ação cidadã a partir dos territórios em que vivemos. Ou as políticas olham, se inspiram  e se deixam fecundar pelas práticas virtuosas nos territórios ou serão fadadas ao fracasso. Os governos passados das esquerdas, especialmente do PT, podem inspirar em muitos campos. No entanto, nesta esfera da sociedade civil, o Estado não pode substituir o protagonismo cidadão. Subsidiar e potencializar, sim!

Aqui se abre uma enorme canteiro de insubstituível ação da cidadania. Todas e todos sabemos que qualquer ação deste tipo precisa de raízes nos territórios, que são, por definição, territórios de cidadania porque de vida  em nossa diversidade. Até nossas identidades coletivas tem a ver com territórios concretos, com seus estilos de viver, sua cultura, seus lugares de lazer, suas matas, rios e praias. Os empreendimentos empresariais ou infraestruturas que não respeitam isto são voltados para interesses de fora dos territórios e, por isto mesmo, invasores de algo vivido como comum.

Por exemplo, as experiências de “educação emancipadora e libertadora”, com base nas resistências territoriais, são uma grande fonte de renovação democrática, como exemplarmente elaborado e sistematizado nos escritos do grande Paulo Freire. São incontáveis os grupos existentes, mas ameaçados pelo avanço da intolerância aos diferentes e aos que lutam por direitos iguais. Os núcleos de comunicação e expressão cultural popular tem um papel insubstituível para dentro dos territórios porque são de dentro. No entanto, precisam ganhar potencialidade como redes de construção de imaginários coletivos compartilhados, potentes fomentadores da valorização e empoderamento da diversidade essencial para a democracia viva.

Para enfrentar problemas comuns, nada como tratá-los como comuns e valorizar o protagonismo cidadão em tais empreendimentos. Os exemplos de economia solidária, agroecologia e produção de alimentos saudáveis,  coleta de lixo e reciclagem, gestão de água e territórios, são exemplos contundentes de modos de viver e produzir, cuidando e compartilhando comuns, experiências eminentemente democráticas transformadoras.

Mas isto tudo é só uma entrada. Tem muito mais. Como isto está no centro do que defini para o meu blog – Sentidos e Rumos – buscando contribuir ao debate coletivo em torno a ideias de cidadania e democracia transformadora ecossocial, o desafio para a ação cidadã vai ocupar de modo central as minhas próximas postagens.

domingo, 15 de janeiro de 2023

Entre Adversários e Inimigos


Os graves atos de invasão e destruição dos espaços políticos centrais, símbolos de nossa institucionalidade democrática e de seus três poderes, no dia 8 de janeiro, em Brasília, precisam ser vistos no que são: uma afronta à democracia. Foi um choque que exigiu tomada de decisões firmes do Governo Lula e das instituições do Estado, sem hesitações, mesmo contra os seus tentáculos no próprio Estado. Afinal, o intolerável foi franqueado por inimigos da democracia. Tem que ser enfrentado como tal: um ataque à democracia. E o poder Judiciário precisa investigar e julgar, tanto os que agiram se autofotografando, o seu líder declarado, hoje “fugitivo” na Florida, como os coniventes ou omissos nas instituições do Estado e os muitos instigadores e financiadores da destruição. A justiça precisa ser justa, célere e até exemplar para dissuadir e desencorajar, pois democracia ameaçada se vive sempre no presente, julgando e condenando segundo a lei, sem conciliação.

Aqui se apresenta um quadro claro do que é uma luta democrática legítima, entre diferentes e opostos em base ao instituído, e o que sinaliza uma ruptura e um ato destrutivo da mesma, naquilo que tem de mais emblemático: a não aceitação da sua institucionalidade democrática.

Nunca é demais lembrar que a democracia não é um projeto de país em si mesmo, mas o modo de disputar projetos e construí-los politicamente, segundo princípios e valores éticos pactuados numa constituição, a qual define as regras básicas do pertencimento, convívio e compartilhamento, em base a direitos iguais de toda a cidadania. Neste sentido, a democracia não nega diferenças, divergências e oposições no seio da sociedade e na esfera política, mas busca transformá-las em forças de mudança e construção do melhor possível historicamente, com base no exercício da igual titularidade de direitos.

Não há democracia viva sem lutas, até acirradas, mas dentro da institucionalidade, com reconhecimento mútuo da mesma cidadania. Pode ser tensionada e questionada, pela disputada no seio da sociedade civil e do Estado. As disputas e os acordos que geram são provisórios, porque datados e situados, sempre podendo ser mudados segundo as regras básicas, que incluem a decisão final de quem tem a titularidade da democracia: a cidadania. O inadmissível é negar a soberania do conjunto da cidadania que decide através eleições, plebiscitos e referendos, assim como com a participação constante, tanto em espaços politicamente conquistados e reconhecidos, como pela organização de movimentos, redes e fóruns de cidadania em busca de mais e mais diretos para todas e todos.

De toda forma, como modo de fazer, a democracia está sempre em construção, com avanços e recuos, ao sabor das lutas entre forças legitimamente constituídas, gostemos ou não. O que se torna inaceitável é a ruptura com o modo de fazer, com a democracia enquanto tal.

Antes de continuar, aqui se faz necessário ter presente que, como país e sociedade real, a nossa estrutura econômica, social, cultural e política é atravessada por profundas desigualdades, violências de toda ordem, exclusões e destruições ecossociais, que vem se reproduzindo desde séculos de conquista e a colonização. A nossa Independência não alterou as relações, estruturas e processos básicos, geradores de enormes periferias e precariedades de toda ordem, em territórios urbanos e rurais. Muito recentemente, nos anos 80 do século passado, elegemos a democracia como modo de enfrentar tudo isto depois de 21 anos de ditadura militar, que só tinha aprofundado a desigualdade, a exclusão e a destruição ecossocial, pela desconstrução institucional e das frágeis garantias, pela força, repressão, tortura e morte.

No momento, a nossa ainda frágil democracia de trinta e poucos anos está sendo ameaçada pela imposição, novamente, da força bruta como regra, pelos que não reconhecem o resultado legítimo da última disputa eleitoral, que derrotou seu candidato, um líder que nunca escondeu a sua visão e vocação autoritária e excludente.  A reivindicação dos derrotados é pelo golpe de Estado pelas forças armadas, contra as regras democráticas instituídas, pondo em dúvida a lisura do processo eleitoral, sem fundamento. De fato, a ameaça veio num crescendo desde o golpe de 2016 e se materializou de forma mais escancarada na eleição de 2018. O governo passou a ser liderado por um capitão sem vergonha de se declarar admirador de ditaduras e de sua prática de torturas. Dados os desmontes e retrocessos que foram praticados no último período governamental, para as eleições de 2022 se forjou uma frente de forças democráticas em torno a Lula, que acabou vitoriosa pelo voto da cidadania, apoiando a perspectiva de renovação e revitalização da democracia.

Esta é a questão mais estratégica a enfrentar. Alianças e coalizões, com formação de frentes e blocos de poder, são constitutivas do modo de ser e acontecer das democracias, limitando ou potencializando o seu poder de transformação ecossocial, como venho apontando no meu blog “Sentidos e Rumos”. Assim, de qualquer ponto que a gente olhe, há um nós e um eles, ou um eles e um nós, mas como forças democráticas. O que não dá para aceitar é quem extrapola a institucionalidade e, sobretudo, quem quer destruí-la. As forças que fizerem isto deixam de ser eles e se tornam inimigos da própria democracia. Não se trata mais de oposição democrática legítima. Não podem ser legitimados como adversários democráticos, porque são inimigos da democracia, deixando de ser oposição com quem negociar o possível no processo político em seu acontecer. Como inimigos e destruidores da democracia, são inimigos de nós e  eles que aceitam a institucionalidade e as regras democráticas.

Enfim, uma posição e engajamento dentro das regras da democracia é ser defensor de direitos e, alguns, até de privilégios conquistados confundidos com direitos – tradição de todas direitas pelo mundo. Uma posição radical, bem diferente, é ser contra a democracia enquanto tal. Não dá para ver e afirmar que toda a cidadania que referendou o derrotado, que buscou a sua reeleição e não conseguiu, seja antidemocrática. Este cuidado vai ser fundamental para distinguir a quem combater, sem trégua e pelas regras instituídas: os líderes e operadores do núcleo duro de um câncer antidemocrático e seu bando de asseclas, que se consideram acima das leis democráticas vigentes. Mas isto não nos pode levar a por no mesmo balaio todos os muitos e as muitas que foram contaminados pelo discurso de ódio e pela disseminação criminosa de notícias falsas. Aí estamos diante de outro desafio estratégico a ser encarado pela cidadania e pela coalizão política vitoriosa nas eleições pela renovação democrática. Trata-se de não perder de vista o amplo trabalho cidadão e republicano de disputa de hegemonia dos princípios e valores democráticos no seio da sociedade civil, hoje contaminada pela propagação de um discurso antidemocrático.

Ouso afirmar que este é um desafio mais para quem tem poder legítimo de instituir e constituir a democracia: as cidadanias ao nível da sociedade civil, através da ação da diversidade de movimentos e identidades cidadãs, com suas redes, apoiando-se em instituições comunitárias, associações, sindicatos, partidos, instituições de educação, da cultura e da informação,  até religiosas. Este é um desafio de fundo e tarefa democrática para toda a cidadania ao nível dos territórios de vida e trabalho, mais do que das instituições políticas que devem exercer o seu papel: operar como Estado democrático, produzindo leis e políticas, gerindo os recursos de todas e todos, em nome do conjunto da cidadania para um país mais e mais democrático.

Enfim, chega de busca de conciliação e legitimação de inimigos da democracia como se fosse nossos adversários legítimos. Eles estão além, são fascistas e inimigos a enfrentar como tais por todas as forças democráticas.  Fazemos isto ou o câncer totalitário vai destruir o nosso futuro e de várias gerações mais. Conciliamos nos anos 80 e deu no que deu. Agora basta! Anistia a inimigos da democracia e torturadores nunca mais! 

sábado, 7 de janeiro de 2023

A Esperança Exige Ainda Mais Ação Cidadã

A democracia brasileira estava necessitando de um momento assim, carregado de esperança e energia democrática, como foi a festa da posse no dia 1º de janeiro e todo o processo vivido ao longo da semana que passou. Quase esquecemos que o inominável, um tipo novo de “fugitivo”, está escondido nos EUA. Até que foi bom. Com a sua vergonhosa ausência, abriu-se a possibilidade de criar a cena mais emblemática da posse. Um grupo pequeno representando o heterogêneo povão brasileiro subiu a rampa do Palácio da Alvorada com Lula e passou a faixa presidencial para ele, ao lado de Jana com a cachorra nos braços. Foi uma sinalização emocionante de mudança de rumo em direção da centralidade do cuidado com o povo em sua diversidade, como tarefa fundamental da democracia.

Os discursos de Lula e de boa parte de seus ministros, empossados durante a semana, recarregam as nossas baterias, sem dúvida. Sábios em termos políticos como o líder Lula, feito na luta, dão rumo, convocam, entusiasmam, conseguem arregimentar muita gente competente e legítima em torno de um projeto político compartido, como parece ser. No entanto, não tem como fugir da realidade de forças e disputas que conformam o poder real e o processo político numa democracia. E, convenhamos, a nossa democracia, com a esdrúxula “conciliação” como regra de governabilidade, é particularmente surpreendente em produzir altos e baixos, avanços e recuos, com um “centrão” que, sem ser atendido em suas paróquias e corporativas demandas, tem poder real de veto, não declarado, mas exercido sempre que lhe parecer adequado. Ou seja, Lula comanda o Poder Executivo, mas depende do Congresso – Câmara e Senado – para governar. Até para compor a equipe de ministros. E tem que ter presente uma tarefa inadiável por dentro do Estado, que depende sobretudo do governo: desmontar o “Estado predador” por dentro.[i] E, ao mesmo tempo, usar a força do Estado democrático para desmantelar de uma vez as poderosas milícias rearmadas e expandidas pelo governo que terminou.

Disputar, ganhar e perder eleições é uma das condições incontornáveis em qualquer democracia, que sempre implica em participação da cidadania, de algum modo. Trata-se de um sinal de vida política e, portanto, de possibilidades. Mas para continuar e se desenvolver,  a democracia depende menos do Estado e mais da participação cidadã, por bem ou por mal. Ou seja, a essência da sua vitalidade continua sendo a cidadania, única força legítima para constituir governos e deslegitimá-los, num ciclo de disputa que nunca termina. Só termina com ditaduras e fascismos destruidores. Mas é novamente a cidadania que recria Estados democráticos que podem desmontar ditaduras e fascismos usurpadores.

Bem, os grandiosos, belos e esperançosos discursos de Lula e de grande parte de seus ministros sinalizam e animam. Mas para virarem políticas consequentes não basta tal vontade declarada e boas intenções, faz-se necessária desenhar e implementar políticas virtuosas, com equipes competentes e comprometidas, recursos,  muita ação de ponta, nos territórios onde vivemos como cidadania. Mas tudo isto precisa ter presente que o jogo democrático continua, só ganho se bem disputado até o fim do tempo regulamentar de quatro anos que delegamos, para então reiniciar outro jogo, que esperamos seja democrático e possível. E  não basta ficarmos torcendo para que o Governo Lula tenha time coordenado e faço gols e que juízes apitem certo nas faltas e trapaças de jogadores escalados. O jogo real da democracia se faz antes de tudo nas ruas, fora de palácios, pela permanente ação cidadã.

Aí a questão volta para o nosso colo: a vitalidade e intensidade da democracia com Lula, líder de um time até surpreendente no Executivo, depende  de nós mesmos, cidadania ativa brasileira. Não vão bastar os muitos espaços institucionais já formalmente anunciados pelos primeiros atos assinados por Lula. É ótimo tê-los, sem dúvida. Mas precisamos fazer a disputa no seio da sociedade civil, nos territórios em que vamos levando a vida, nos espaços de trabalho, na família, na cultura, no lazer, na mídia. Os  estragos do governo do “fugitivo” estão em nosso seio, com discurso de ódio contaminando até núcleos religiosos. Temos diante de nós algo que foge ao governo e não depende só de políticas, por mais virtuosas que sejam. Aliás, para haver virtuosidade é imprescindível a nossa participação como cidadania com toda a cumplicidade e cobrança possível. Não dá para temer, precisamos de determinação democrática que respeita a diversidade e a diferença, mas buscar as bases comuns do cuidado, convivência e compartilhamento entre todas e todos, assim como com a natureza que nos dá condições de vida.

Sei que os anúncios já enchem a alma. Mas, não tenho dúvidas, será um período governamental que vai demandar de nós mais do que podemos imaginar. Para digerir a inevitável “conciliação” política que o Executivo deve saber manejar, nós podemos criar o espaço das “aberturas” inesperadas e jogadas na mesa das “negociações”, que toda democracia implica. Se o mote do governo é enfrentar a desigualdade social e a mudança climática, a porta está aberta, pois estas são exigências cidadãs democráticas bem enraizadas entre nós,  são demandas em torno às quais nos constituímos como diversidade de cidadania ativas, com nossas identidades e vozes. Tomemos o mote dado e, em nome dele, empurremos, literalmente, o poder estatal em tal direção, sem esmorecimentos ou recuos, mesmo amargando algumas derrotas.

Enfim, mais do que o próprio Governo, o Congresso e o Judiciário esperam, a democracia continua sendo uma tarefa política com centralidade na ação cidadã para uma democracia ecossocial transformadora.



[i] Expressão apontada no profundo e instigante artigo do Vladimir Safatle “A desigualdade como bloqueio estrural”. Disponível em: Combate Racismo Estrutural, 30 de dezembro de 2022.