Tal composição do título resume o que é viver como cidadanias consideradas periféricas, condenadas a viver em territórios urbanos e rurais entregues à própria sorte pelo domínio dos interesses do grande capital excludente, territórios comunitários com carências múltiplas e sem a devida atenção de políticas públicas, sujeitas à mudança climática em curso, tempestades e enchentes devastadoras, grileiros, garimpeiros, milicianos e traficantes, além de agressivas e violentas ações policiais, produzindo mortes. É difícil contabilizar a perda de vidas e de condições de viver nestas circunstâncias esquecidas, fora do radar, onde predominam a fome, a miséria, a negação de direitos iguais na diversidade do que somos, e as ameaças de morte no dia a dia. Aí, a solidariedade e a autoajuda comunitária é o que pode aliviar a dor e, sobretudo, salvar vidas em momentos de catástrofes.
Na disputa de ideias e direções com sentido de conquista de
hegemonia democrática, de transformação ecossocial includente em direitos
iguais na diversidade, esta questão, que atinge praticamente a metade da
população do país, é um desafio central para cidadanias ativas em suas concepções
e no seu que fazer. A barbárie do capitalismo, com sua exploração do trabalho,
seu colonialismo, racismo e patriarcalismo, seu imperialismo, seus exércitos e
armas, para acumular sem limites, se manifesta plenamente na criação
sistemática de periferias, num processo que se estende dos vários territórios
locais do para o mundo como um todo. O genocídio é visível e
incontestável em situações como a da guerra de Israel contra o povo da
Palestina. Mas o genocídio – é fundamental não perder de vista – é algo presente, de forma permanente mas diferente,
em praticamente todos os territórios e
países.
É próprio da lógica de exploração e dominação capitalista gestar
permanentemente enormes contingentes de periferias espalhadas por todos os
países do planeta. Basta olhar a “celebração” e debates anuais do grande
capital no Fórum Econômico Mundial, dos 1% de donos do mundo, nas montanhas isoladas de Davos, para se dar
conta da “fortaleza” que protege a pequena parcela globalizada dos
proprietários e gestores das grandes empresas e grandes fortunas.
Os grupos contingentes de pobres da população mundial não
vivem em fortificações protegidas e nem tem acesso a elas. Os territórios
concretos, com suas potencialidades e carências, é seu pedaço de chão, mas sob
ameaça permanente praticadas por forças externas a ele. Claro, o risco de
destruição por eventos climáticos ou então de expulsão a qualquer hora faz
parte do cotidiano, basta que seu território seja avaliado como base de
expansão de negócios por forças do capital em busca de valorização, tanto nas
cidades, grandes ou pequenas, como nos campos, matas e águas!
O desafio político transformador de tal situação é construir
coletivamente potência cidadã viva e múltipla no seu seio, pela própria
população local, em seu território de vida. Por sinal, no mundo inteiro, as
experiências mais poderosas e virtuosas de transformação criam raízes e se
difundem a partir dessas populações em situação de precariedade. Não são obras
de engenharia desenhadas sem participação local ou políticas monetárias
compensatórios que podem mudar a situação de exclusão e risco. Sem dúvida,
mudanças envolvem canalização de recursos. Portanto, sempre vão ser necessários
governos e políticas públicas, pois o
capital que investe localmente estará sempre visando a sua própria
acumulação, nunca as necessidades e o empoderamento da comunidade. Por mais
precária que seja a situação da comunidade humana local a verdade é que para
ela é seu território de vida, de cidadania. Ou ela é sujeita de sua própria
transformação, ou a transformação será contra ela, nunca em seu benefício. Pior
de tudo é que, as próprias ações do poder público podem levar à expulsão, como
muitas vezes ocorre. É fundamental ter claro este ponto para não continuarmos
cometendo os mesmos erros do passado.
Num situação como a de hoje, de domínio das grandes
corporações econômicas e financeiras em escala global, de um lado,
desigualdades, exclusões sociais, pobreza e fome, também globalizadas e em
expansão, de outro lado, a mudança climática planetária vem avançando de forma
cada vez mais acelerada e devastadora. Na avaliação de especialistas de centros
científicos pelo mundo junto com movimentos e fóruns mundiais de cidadania
ativa e muitos governos do Sul Global, estamos diante de implosão do planeta e
da própria humanidade, das condições de viver para todas formas de vida, enfim.
Os eventos climáticos extremos do ano que passou e que continuam neste são
incontestáveis. Mas a fome e pobreza também são.
Minha intenção inicial não foi, mais uma vez, focar a
estrutura de poder econômico, imperial e militar que domina o mundo e de onde
só dá para esperar que nada mude ou, ainda pior, que a destruição ecossocial só
se acelere. Para criar transformação resiliente é necessário resistir, buscando
saídas no contrapé da globalização capitalista, olhar o mundo de baixo para
cima ao invés de cima para baixo. Ou seja, descobrir e fortalecer o que é
específico, a grande diversidade ecossocial territorial, sua população, sua
organização econômica, social e política, o poder de suas vozes, participação e
culturas. A base é o princípio da convivência com os sistemas ecológicos
do território comunitário, não obras de engenharia, como a experiência da ASA e
as cisternas para a conservação da água, no Semiárido do Nordeste do Brasil,
demonstram cabalmente.
Neste sentido, trata-se transformar “carências” nos
territórios de vida em “potências
transformadoras”, como muitas comunidades locais, urbanas e rurais, com suas
organizações e redes de prática agroecológica, proteção comunitária, afirmação
social, política e cultural vem demonstrando pelo Brasil afora. Esta é a fonte
de inspiração básica para um irresistível movimento transformador ecossocial,
com capacidade de trazer os direitos ecossociais iguais na diversidade do que
somos e do que são as potências e comuns contidos no territórios, para nesta
base começar a construir um outro Brasil e um outro mundo, onde todas e todos
cabem e a integridade de todas as formas de vida e dos sistemas ecológicos
sejam parte do viver humano.
Não podemos nos iludir com o “mantra do desenvolvimento”
baseado na prioridade do investimento privado das grandes empresas e negócios,
dos 1% de “donos” e seu poder. Daí só poderá vir mais extrativismo e destruição
ecossocial, mas crescimento de seu capital, mais exclusão, mudança climática e
morte, em última análise. Além de guerras, armas, muralhas e genocídios, numa
combinação terrível como vemos no dia a dia. Desenvolvimento é o favorecimento
da exploração do petróleo, das minas e do agronegócio, desmatamento,
contaminação, doenças e “criação sistemática” de periferias em territórios de
sofrimento e risco, de expulsões e migrações, além da ameaça de mudança
climática. Desenvolvimento é favorecimento ao capital e limites de
financiamento nos programas públicos potencialmente de cuidado de gente e da
natureza. Desenvolvimento é política fiscal restritiva para tudo que é
ecossocial, democratizador, transformador e garantidor de direitos iguais na
diversidade.
Como afirmam os “Zapatistas de Chiapas” a solução é dar lugar
a “muitos mundos num mesmo mundo”, o planeta Terra, para reencontrar e
reconectar nossas vidas com as possibilidades dos territórios: sejam polos ou
zonas equatoriais, tropicais, temperadas, Sul, Norte, Leste, Oeste, zonas
costeiras de mares e oceanos ou rios, interiores profundos, planícies, vales, planaltos
ou montanhas, grandes matas, campos ou terras semiáridas, desertos e seus
oásis, com suas biodiversidade. Não há um modelo único por razões ecossociais –
de dinâmica ecológica combinada com dinâmica social em todos os sentidos. A
sustentabilidade depende do colar-se às potencialidades do territórios gerido
como um comum compartido. É assim que se criam e desenvolvem as culturas
humanas, parte da solução sustentável.
Mudar de perspectiva – na verdade de paradigma analítico e
político – é necessário para ver, pesquisar e avaliar questões fundamentais que
estão um tanto fora dos debates mundiais. Por isto a insistência na
territorialidade das situações concretas. Mas isto não muda o fato também
fundamental que somos uma mesma humanidade no mesmo planeta Terra. Como não dá
para desconsiderar o fato que a mudança climática é de ordem planetária, mas de
efeitos diversificados segundo os territórios, mesmo olhando de outra perspectiva não podem deixado
de lado ou ignorado tal dimensão. A verdadeira sabedoria está em entender e
agir a partir do específico – a
dinâmica específica da vida em territórios específicos – e construir a pluralidade do todo, do planeta terra.[i]
Isto é algo por ser feito, mas que o domínio pela globalização capitalista, através
da economia, do poder estatal e da ideologia/valores, impede. Temos que estar
mais nas ruas, no chão da sociedade, do que em eventos globais nada
consequentes pelos seus acordos simbólicos, sem força impositiva aos governos e
corporações globais.
Precisamos mudar de perspectiva e ação. Claro, nas múltiplas
formas que a crise climática afeta as periferias, precisamos cobrar urgentes
ações de emergência para salvar vidas e um mínimo de conforto para quem tudo
perde, sem esquecer da vergonhosa escalada de violência, emprisionamento e
morte, focada especialmente nos jovens negros, por ações de milícias e polícias
militares. Estas ações, contudo, não podem parar aí. Devemos exigir mudanças
para valer, deste a contenção do capital imobiliário e milícias, e propostas de
ações estruturantes concertadas com a população pobre e excluída que vive nos
territórios periféricos. Chega de territórios de exclusão! Não basta de grandes
conjuntos habitacionais longe das comunidades concretas e seus desejos, ou de
obras de engenharia nos próprios territórios sem participação e respeito às
visões, modos de viver e demandas das próprias comunidades. Existe muita vida,
capacidade e criatividade apesar de serem territórios hoje de periferias em
risco. Quem precisa de atenção e apoio não é a indústria de construção, mas a
população do território concreto, visando fortalecer o seu potencial e
resiliência. Para isto ela tem que ser a cidadania ativa e não mera população
periférica ou favelada beneficiada. Estamos diante de construção conjunta de
alternativas, entre as comunidades e os poderes públicos, onde empresas, quando
necessárias, são apenas executoras do acordado com a cidadania local e
mediação do poder público.
Finalizo assinalando que a participação cidadã sempre faz a
diferença em qualquer ação governamental que vale a pena. Mas não dá para
confundir participação como ter um espaço e uma oportunidade de ser consultado
pelo poder estatal sobre decisões já tomadas ou políticas já definidas por
especialistas, nos reservados espaços do poder. A participação fundamental é na concepção, na construção e
na própria implementação de qualquer política democrática ecossocial
transformadora, inspirada na igualdade de direitos de ser e viver como
cidadania na diversidade. Daí, sim, podem vir ações governamentais e de cidadania com
virtuosidade, tendo no centro os comuns, o cuidado, a convivência e o
compartilhamento como bases territoriais de resiliência ecológica e cidadã.
Aliás, as transformações que ocorreram e podem ocorrer dependem do fortalecimento
da cidadania local, suas resistências, propostas e ação coletiva. Nunca do
capital ou da “boa ação estatal”, apesar de necessidade de investimentos e,
sobretudo, da atenção e ação cuidadosa do Estado aos clamores da cidadania
sujeita a viver no risco permanente no próprio território comunitário, com
grandes necessidades.
[i] Aqui lembro a discussão feita em uma postagem anterior – “A Inevitável e Inadiável Transição” – quando destaquei a importância estratégica de participar e construir o “Tapete Global de Alternativas”. A respeito ver o site <globaltapestryofalternatives.com>.
Muito atual a situação de penúria das populações ou melhor dito, dos trabalhadores e trabalhadoras da produção familiar rural ou semi urbana. E temos de aceitar um gasto de dois bilhões de reais do dinheiro público, destinado a construção de escola para sargentos do exército em área remanescentes da mata atlântica em Abreu e Lima. E num governo que diz ter uma visão social da crise econômica e penúria no Brasil.
ResponderExcluirReflexão muito boa e instigante.Ate agora as pessoas se perguntam: - mas o que significa uma participação cidadã, tanto numa visão macro qto numa visão micro???
ResponderExcluirO ponto focal dessa reflexão é a participação efetiva da população - da cidadania ativa - nos projetos gestados pelo governo (por qualquer governo, especialmente o atual) na pesquisa, na elaboração de projetos e no acompanhamento de sua implementação. Projetos que venham da mobilização da população em defesa de seus direitos.
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