Tenho a sensação que, como cidadanias diversas, estamos atolados, literalmente. Não estou me referindo, no momento, às chuvas torrenciais em boa parte do Brasil, algo alarmante em si mesmo, pelos sofrimentos e estragos para muita gente, sinal evidente de mudanças na integridade do ecossistema climático. Meu olhar aqui, mais imediato, é ao perigo do atoleiro político, à falta de um claro protagonismo da ação política cidadã democrática ecossocial na atual conjuntura nacional. A vitória eleitoral de 2022 foi fundamental, mesmo apertada como foi. Mas as forças inimigas da democracia estão vivas e muito ativas. O 8 de janeiro de 2023, apenas uma semana após a posse foi um susto. Mas o fato essencial é a complexa rede de cumplicidades e financiamentos que foi criada pela extrema direita e que alimenta o ativismo político de seus seguidores.
O Judiciário, a Polícia Federal e a Procuradoria Geral estão fazendo a sua parte, demonstrando certa fortaleza das instituições que construímos democraticamente nos últimos trinta e poucos anos. Mas..., democracia viva, transformadora, de direitos ecossociais democráticos na diversidade, só avançará e se firmará se as cidadanias ativas a agarrarem como seu projeto. As instituições políticas tem que fazer a sua parte, mas o farão se as cidadanias o exigirem, simples assim! E onde estamos? O que estamos esperando? Vamos simplesmente reagir aos atos dos que temos como inimigos a combater? Por que não buscamos uma agenda mais consistente, que nos empodere, ao invés de nos comparar aos que declaradamente são forças antidemocráticas e contra qualquer mudança substantiva, além de apoiados por criminosos.
Vou destacar alguns aspectos essenciais, que precisamos dar mais atenção, com análise e pressão política. Aliás, a diversidade de visões de tais questões precisa ser posta na mesa e discutida, pois todo mundo que busca transformação e justiça ecossocial é essencial para um vigoroso processo de elaboração de um pensamento estratégico. Não adianta ficarmos reclamando que o Governo Lula III precisa ser mais ousado, que está devendo transformações mais virtuosas aqui dentro, pois a boa performance lá fora ajuda e recupera a autoestima nacional, mas nada transforma aqui no país. Temos que reconhecer que, na institucionalidade política democrática que temos, está difícil para o governo romper a barreira – verdadeiro atoleiro político – que as forças do Centrão impõem desde o Congresso. Além disto, temos que ter presente o peso do financismo especulativo na definição da política monetária e fiscal do país, desde o Banco Central e seu Conselho Monetário, amarrando o Ministério da Fazenda. Estamos diante de uma espécie de câncer corrosivo da economia do Brasil, pois o financismo nada produz, só suga os recursos que seriam fundamentais para a construção de políticas transformadoras nas diferentes áreas da vida coletiva. As muitas iniciativas governamentais não tem como avançarem esbarrando nas imposições e amarras do poder dos especuladores financeiros, das forças políticas do Centrão e da direita fascistóide.
Poderes reais na sociedade se enfrentam construindo poder democrático e com inspiração transformadora. Como cidadanias com poder de voto, ganhamos a eleição em 2022 e elegemos Lula, mas numa margem bastante apertada. Mas isto não foi e nunca será suficiente, pro si só, para ampliar o poder político e para avançar em mudanças essenciais. Bem, basta olhar para ver: decididamente, nada de realmente transformador está acontecendo, apesar de retomada de muitas políticas virtuosas já implementadas no passado. Não penso que isto seja suficiente para nos livrar das ameaças fascistas, da violência, destruição, racismo, machismo e exclusão, nem da escandalosa desigualdade social.
Sei que as análises necessárias - histórica, antropológica, social, política e econômica - enquanto tais, não mudam nada, por melhor que sejam, pois só podem diagnosticar, apontar problemas e, nem sempre, indicar algumas pistas para possíveis transformações. Mas quando associadas e motivadas pela ação de cidadanias ativas – o caso de análises de conjuntura por ativistas, como o Betinho lembrava – tem a virtude de empoderar para ação. Análises produzidas de forma compartilhada, com intencionalidade democrática, emancipam o pensar de ativistas e, ao mesmo tempo apontam caminhos a seguir, tanto para ação no seio da sociedade – na disputa de ideias, valores, princípios, propostas, buscando construir hegemonia - como para participar de eleições, de espaços na implantação de políticas e para a pressão sobre as instituições governamentais e parlamentos. Isto é o que pode, e de fato faz, criar um pensamento estratégico voltado à ação, transformador. Daí a importância da análise de conjuntura, da situação concreta, num esforço coletivo voltado pra saber onde e como incidir. Ela precisa começar nos círculos de amizade, de proximidade, de lazer, de trabalho, num ato prazeiroso de viver e compartilhar a vida. A análise de conjuntura vira essencial nos grupos de ativismo cidadão, instituídos ou não, formando associações, redes, fóruns. Sem análise permanente nunca conseguiremos disputar e fazer a luta política que nos cabe – a disputa de hegemonia de um pensamento democrático transformador para garantir direitos ecossociais iguais na diversidade de cidadanias e de territórios do país que temos.
O fato é que está no ar uma sensação de espera, sem estar claro o que esperamos. Enquanto isto, o financismo impõe regras econômicas, monetárias e fiscais. O Centrão, por outro lado, avança com suas demandas das bancadas corporativas e de redutos eleitorais, ganhando poder de controle sobre o governo federal. E a onda fascista na sociedade mostra a sua capacidade de tomar as ruas. Além disto, os estrategistas do fascismo tem um plano claro para as eleições municipais deste ano, buscando ampliar o seu controle sobre a base territorial onde vivemos todas e todos, que de certo modo organizam o nosso próprio cotidiano. Bem, territórios onde milicianos, criminosos e polícias cúmplices – aliadas de primeira hora do fascismo armado e destruidor - tem um super poder real para afetar a vida de todos, matando muita gente no seu caminho. O que estamos fazendo a respeito como cidadanias ativas democráticas? Este chão é a base. Não podemos menosprezá-lo numa estratégica efetiva de construção e transformação democrática.
Reconheço que não faltam resistências e iniciativas cidadãs muito diversas e virtuosas a partir dos territórios. Em geral, se constituem para lutar por causas e direitos fundamentais na vida cotidiana: contra a violência, por acesso à água e ao esgoto, habitação, saúde, creche e educação para filhas e filhos, contra tráfico de drogas e domínio de milicianos, por transporte decente, renda, direito à cidade, até para iniciativas de produção agroecológica em terrenos baldios nas periferias ou territórios de vida no campo, sempre para produção e acesso a alimentos de qualidade. E por aí vai a prática cidadã de resistência, quase sempre sob liderança de mulheres. Agenda concreta, tão concreta como a vida. Mas, em geral, algo um tanto “invisível” para os poderes instituídos estaduais e municipais, que agem mais como “bombeiros” em emergências – temporais e inundações, crimes escandalosos, etc. – quando não são eles mesmos os agentes dos vários problemas nos territórios da periferia, com ações policiais de extermínio, como vemos diariamente nos noticiários.
Já temos conhecimento acumulado sobre as virtudes emancipatórias da multiplicidade de resistências enraizadas no territórios locais, de um saber-fazer fundamental para a construção de práticas baseadas em princípios e valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, indispensáveis para uma sociedade de bem viver, de viver saboroso. E temos a inspiração do que nos propôs Paulo Freire como sendo isto a base da emancipação política e da construção de hegemonia democrática.
O que nos falta, então? Ouso dizer que não estamos valorizando estrategicamente e suficientemente a construção do tapete coletivo de tais experiências virtuosas, tapete grande e forte, que nos entrelace e dê força política diante dos desafios que temos pela frente. Precisamos “olhar mais para a planície, e menos para o Planalto”, mas sem descuidar dele. Nossa força está aqui, na planície onde levamos a vida. Está força só chegará lá com poder para influir politicamente se estiver forte aqui! Neste sentido, na tarefa da construção do tapete coletivo, destaco que o que temos de mais virtuoso e promissor são o MST e o MTST, junto com Povos Indígenas e Quilombolas, com sua história desde os territórios. O movimento sindical surgiu com vigor e foi fundamental na redemocratização, mas não soube se reinventar diante da avassaladora globalização e seu financismo parasitário, nem diante do extrativismo e do agronegócio de características coloniais, dada a sua prática de expansão pela conquista e destruição de nosso grande território.
Termino reconhecendo que, finalmente, surgiu um esforço de organizar um ato amplo de cidadanias de esquerda em defesa da democracia. Mas qual é exatamente a bandeira mobilizadora e unificadora? Qual é a nossa agenda? Não podemos simplesmente reagir à provocação feita pela direita fascista, o que será um desastre anunciado, no meu modo de ver a conjuntura. Precisamos dar as costas para eles e fazer o que até aqui não fizemos: retomar o protagonismo nas ruas com bandeiras que tem sentido agregador para a diversidade de identidades e vozes de cidadania pelo Brasil afora. Precisamos olhar mais para o chão em que vivemos e, talvez, menos para o drama que se desenrola nas instituições. O desempate se não vier do chão da sociedade, simplesmente não virá! Mas, de todo modo, é de louvar o despertar, a intenção de buscar caminhos, de agir como cidadanias, condição para uma verdadeira conquista de hegemonia. Antes tarde do que nunca!
A análise de conjuntura não substitui a ação cidadã, pois ela mesma é um momento de construção da ação, da incidência política, e, ao mesmo tempo, um momento de avaliação para nova ação... O ativismo cidadão é um modo de agir, viver em coletividade, em células democráticas. Quando tais células se agregam organicamente e com uma estratégia de conquista de hegemonia, tornam-se irresistíveis. As “redes sociais” podem ser um privilegiado espaço como território de disputa de ideias, do modo de nos agregar e de adquirir força. Estamos fazendo o necessário?
Muito bom o texto Cândido. Ontem, em um grupo de estudiosas/os de Freire e ativistas sociais, debatiamos a necessidade de maior compreensão das formas de atuação do neoliberalismo, hoje, para, desde nossos "territórios", intensificarmos e ajustarmos nossas práticas e nos fortalecermos como cidadania ativa.
ResponderExcluirPrécisamos ganhar as ruas, coisa que o PT destruiu. Precisamos voltar ao orçamento participativo, a valorizar as comunidades pequenas que somadas alcançam o resultado desejado. Muito boa análise !
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