sábado, 24 de agosto de 2024

A Busca Democrática do Comum na Diversidade: Desafios para a Construção de Contra Hegemonia


Precisamos ter presente os momentos históricos da própria tomada de consciência e as lutas efetivas contra o bloco político dominante do capitalismo, que conta com o poder de Estado como expressão de sua hegemonia. Não podemos achar que temos hegemonia democrática transformadora. O Lula, atual presidente, que ganhou uma  eleição democrática, com ampla e extremamente heterogênea aliança, diante de um candidato com propostas de extrema direita autoritária, não expressa nossa hegemonia. Ela carrega uma proposta democrática para gerir o capitalismo que temos. A governabilidade possível imediata é nos limites de tal realidade estatal, considerando os três poderes e a nossa Constituição. Evitamos o pior, a destruição da própria democracia. Mas o capitalismo, em sua versão de neoliberalismo globalizado e financeirizado continua sendo o pilar, dentro de limites democráticas, menos destrutivos e excludentes. No jargão jornalístico vivemos o comando do “mercado” ou, de maneira mais emblemática, sob a hegemonia da “Faria Lima” – das entidades empresariais dos diversos setores econômicos, líderes dos 1% mais ricos.

Considero que é fundamental termos política e analiticamente bem claro isto para podermos avaliar os limites das possibilidades de avanços em tal encruzilhada histórica. O capitalismo  é um câncer social bem implantado no Brasil. É bom que se diga que ele se dá melhor em contexto democrático, apesar de seus representantes nunca duvidarem de apelar a ditaduras e guerras, se necessário for, para preservar seus interesses de acumulação. O fato de termos ganho um governo democrático diante da proposta da extrema direita foi fundamental no momento histórico, sem dúvida. Mas não transformou a lógica do Estado. Este Estado, as instituições, os processos e as políticas continuam dentro das “regras do livre mercado capitalista”, com possibilidades de ajustes e maior atenção ao social, claro, mas dentro de limites estruturais. Basta lembrar do mantra do teto de gastos e ajuste fiscal, como cláusulas pétreas, não da Constituição, mas do mercado. No entanto, precisamos reconhecer e nos sentir aliviados com o Governo Lula, pois vivemos uma condição melhor para ação política no imediato e no longo prazo para conquistar hegemonia política transformadora.

Para enfrentar a questão da construção e conquista de hegemonia temos que olhar para nós mesmos, cidadanias diversas, para as oportunidades que se abrem em tal contexto. Para lidar com a oportunidade e o desafio, esclareço a perspectiva em que me situo: alinho-me com quem defende uma visão e proposta de democracia ecossocial transformadora, intensa pela participação social em busca de direitos ecossociais iguais plenos, na diversidade do que somos. Nesta visão, nada ortodoxa ou dogmática, que tenta não se aferrar aos enferrujados dogmas doutrinários, as correlações de forças e lutas de classes continuam a ser a base do movimento, de formas muito combinadas e complexas, essencialmente num cenário mundial. Não convivemos mais com locomotivas e navios a vapor, mas com jatos, satélites e naves espaciais, ao mesmo tempo com miséria, fome e grandes periferias, internas e entre países. Como em todos os momentos históricos, o desafio é nos reinventarmos pois vivemos este momento histórico, nem passado e nem futuro, mas presente desafiador, cruel por um lado e estimulante por outro.

Talvez este seja o maior desafio! A construção de hegemonia não se faz a partir do Estado. A hegemonia se expressa no poder estatal, mas o processo de disputa que a gera precisa ter raízes profundas no chão da sociedade, construindo adesão política majoritária, para conquistar um poder político democrático necessário para a transformação do Estado e da Economia.[i] Tarefa política desafiadora, contínua, muito aquém e além dos ritos democráticos de eleições periódicas. Trata-se de forjar o bloco histórico dos explorados, excluídos, dominados e discriminados, nunca nos  esquecendo que  convivemos com vergonhosa injustiça social e descontrolada destruição ecológica. Mas, ao mesmo tempo, temos diante de nós enorme diversidades de modos de ser e agir, gente tomando consciência de si e para si, assim como de outras e outros, criando identidades coletivas compartilhadas, propostas, organização e formas de luta cidadã, forjando coalizões em redes e fóruns... até partidos políticos.

Aí é que reside o desafio de construção de contra hegemonia cidadã ecossocial. Ela não depende do Estado, depende de nós mesmos, cidadanias ativas. Não podemos ser dogmáticos diante do desafio, pois a teoria política nunca substitui a análise de situações concretas, sempre, em complexo movimento histórico, único ao seu modo. A teoria é uma referência fundamental, mas não substitui a necessária tarefa política de análise da história passada, da situação atual, e da conjuntura de relações de forças no momento vivido, assim como possíveis perspectivas.  Tal tarefa precisa ser feita e renovada continuamente, pois implica em decompor uma realidade em complexo movimento histórico e recompô-la como uma realidade politicamente pensada, capaz de inspirar ações e rumos da ação política cidadã.

A hegemonia assenta na unidade de forças políticas – bloco político – forjada em torno a valores e princípios orientadores comuns, análises e propostas agregadas num grande saber cidadão compartilhado como um bem comum, formas de ação diversas mas coalizionadas organicamente, como um modo comum de agir com autonomia de cada segmento, num disputa política e cultural no palco da sociedade.

O comum na diversidade não é um dado, precisa ser construído a partir da sociedade num país extremamente diverso, em formas de viver e territórios ecossociais diversos, para que o bloco político democrático dos dominados  possa adquirir unidade e consistência diante do bloco de classes  dominantes capitalistas, levando a sua ação a adquirir capacidade politicamente transformadora.

Carregamos heranças da conquista e colonização, de extermínio de povos originários e apropriação de seus territórios – ainda intensa até hoje, só não vê quem não quer – , de tráfico negreiro e trabalho escravo, de patriarcalismo, de extrativismos cíclicos, ainda centrais numa economia voltada para fora, com uma tardia industrialização tardia. Estamos vivendo sob o poder e dependentes de donos de gado, gente e grandes latifúndios, tanto tradicionais como modernos, em coalizão com os “donos do mercado” – em conluio com seus operadores e especuladores nas bolsas. “Os donos”, combinados, provocam migrações internas de grande escala, com grandes periferias urbanas e rurais, entregues ao festim de milicianos e traficantes e sua economia paralela. Apesar de certa ousadia de Lula, o bloco político das classes dominantes nem está aí – aliás nunca esteve - por  ocupar um lugar dependente no concerto das nações, apesar de nosso tamanho territorial, populacional e econômico.

Mas, não duvidemos, se trata de um minúsculo bloco de classes capitalistas de grande poder, que dita, em última análise, a lógica em que assenta o Estado, suas possibilidades e limites. O grande horizonte é buscar a transformação do próprio Estado para poder transformar a economia do Brasil e conquistar uma possibilidade de “viver saboroso” ou “bem viver”. E a força transformadora só poderá emergir do coração da sociedade, da diversidade de situações de vida e trabalho, num bloco político histórico dos dominados e excluídos, que conquista  hegemonia, definindo rumos e possibilidades democráticas de ecossociais para todos, sem esquecer ninguém.

Dito isto – e nem é tudo – volto ao ponto central: não vamos construir hegemonia democrática ecossocial e transformadora sem dar conta da enorme diversidade social contida neste nosso maravilhoso país, com seu povo e território, sofridos apesar de, muitas vezes, celebrados. Não existe luta maior ou menor, mas lutas necessárias, todas estratégicas. Com os dogmatismos de esquerda caminhamos para acumular derrotas políticas. Temos alternativas, muitas e variadas, que são um patrimônio coletivo da cultura, da arte, da educação, da ciência, da comunicação, até da fé e prática religiosa. O desafio e sua valorização já foi pontuado pelo memorável Paulo Freire, que nos propôs o método da troca de conhecimentos,  inspirado em muitos  saberes de resistência e de busca de autonomia. Aliás, é de autonomia, de libertação, de criatividade político-cultural que se trata. Temos de sobra, mas sem articulação política na escala necessária. Tal tarefa política, educativa, cultural e de comunicação, com um viés de liberdade de disputa de visões, narrativas e modos de agir, traduzidos e difundidos discursos significantes por todos os meios – arte, festas, música, literatura, redes, rádios comunitárias, alto falantes, manifestações,  etc.– tomada da rua como o espaço cidadão por excelência – é o campo da disputa de hegemonia que cria raízes.

(Deixo tal tema desafiante para futuras postagens...)

 

 

 

 



[i] Não é meu objetivo aprofundar esta questão teórica. Pessoalmente me inspiro nas obras de A.Gramsci e nos muitos que “garimparam” e sistematizaram a complexidade de seu pensamento, especialmente  a partir dos “Cadernos do Cárcere”.

2 comentários:

  1. Belo escrito, Cândido! Mais uma análise maravilhosa e consistente das condições hist6óricas reais vivas. Precisamos de uma socie4edade civil organizada para criarmos as bases de uma contra hegemonia - superar o bloco político dominante capitalista por uma hegemonia democrática transformadora. Essa ideia - a categoria da diversidade - é fundamental do movimento. Eu já estava sentindo a falta dos seus escritos, sempre sempre novos e de análise consistente. Ao ler esta análise me senti reconfortado. Não pare de escrever, Cândido! Assim eu não paro de ler. Parabéns e um abraço. Kuiava

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  2. Na atual campanha para eleição de presidente dos EUA temos um contraste marcante entre os candidatos dos dois partidos. Os Estados Unidos têm uma população diversa, mas com uma característica comum: ela é essencialmente conservadora. Fica difícil para quem segue de longe o que acontece entender como é possível que uma pessoa como Trump, um especulador imobiliário, a-ético, misógino, racista, uma pessoa não-séria, tenha o apoio de metade da população americana. O contraste entre ele e Kamala é gritante. E contraste maior existe entre os vices. J.D. Vance é jovem e mais inescrupuloso que Trump. O vice de Kamala é alguém que fala às pessoas comuns. Por "pessoas comuns" entende-se a vida como ela é, as dificuldades de sobreviver, de criar uma família, de ter emprego, de morar, de deslocar-se, de ter acesso à saúde e a possibilidade de ter uma aposentadoria decente. Ele fala da realidade concreta. Fala também de um grupo de pessoas, quem sabe a maioria? que não têm uma visão política do que fazer para mudar sua própria vida. Mas essas pessoas podem de repente vislumbrar um futuro e o caminho para chegar lá. Esse futuro pode ser uma utopia, mas o caminho, a direção passa a dar sentido a uma existência. O existir passa a ser político. Essa utopia precisa se materializar em mensagens, tarefas, dicas, slogans claros, que possam ser entendidos pelas pessoas e transmitidos com convicção. Precisamos, portanto, de uma pedagogia política do cotidiano, que trate a vida como ela é e mostre como mudá-la. São esses os pensamentos que Cândido provoca em mim, que assino essa reflexão como Claudius

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