domingo, 14 de agosto de 2022

"Planalto x Planície"

 A imagem, que sintetiza de forma simbólica o nosso dilema coletivo no Brasil, é o fosso enorme que separa o poder estatal e suas políticas –  representado pelo Palácio do Planalto, Congresso e Judiciário – das e dos que lutam diariamente para levar a vida no chão da sociedade – as “planícies” de nosso imenso país.[1] Aponta uma distância entre o poder político e a cidadania, ou seja, uma forma de agir do governo e do parlamento que tende a ignorar ou minimizar a cidadania e seu poder instituinte e constituinte das democracias. Afinal, democracias  de alta intensidade e capacidade transformadora  só podem vir da sociedade, onde vivemos todas e todos as cidadanias desafiadas constantemente a se reconhecer, a partir de sua diversidade e pluralidade, como titulares de direitos comuns de liberdade, igualdade, solidariedade coletiva e participação política.

Uso o “Planalto x Planície” como uma expressão síntese qualificadora e de fácil comunicação e apreensão por todo mundo, mas não como um conceito analítico. Em termos políticos, mais do que um espelho da realidade, faz referência a uma estrutura e a uma herança que muda no modo de se manifestar, mas continua reproduzindo o de sempre, em novas formas. Tal estrutura de separação se forjou desde o processo histórico de conquista e colonização, subordinação e morte de povos originários, destruição extrativista e economia escravocrata voltada para o nascente capitalismo europeu. Afinal, o Estado chegou antes da sociedade, veio de fora como conquistador, criando fortalezas militares antes da sociedade e da economia. Aponto tal imagem aqui para entender a conjuntura atual que atravessamos, como uma espécie de alerta ao que não podemos esquecer nunca se sonhamos com outro futuro, com democracia efetiva, ecossocial transformadora para nosso país.

Não é demais afirmar e reafirmar o óbvio, que estamos submetidos a um modo de exploração que se renova, mas não muda, em benefício de poucos e a serviço do sistema do capitalismo, hoje dominado pela globalização neoliberal das grandes corporações econômicas e financeiras. Tornamo-nos formalmente “independentes” 200 anos atrás, mas para renovar e ampliar laços de “dependência” a novos impérios dominantes na geopolítica mundial eurocêntrica. E assim continuamos até hoje, apesar de termos tido alguns surtos esporádicos de fazer valer um pouco mais nossa soberania como povo. Neste sentido, temos pouco a celebrar em dois séculos de independência, efetivamente nunca conquistada.

Mas nos fortalece lembrar que sempre surgiram tentativas de resistir e mudar, umas com maior impacto do que outras, porém sem grandes transformações no Estado/poder e, consequentemente, na economia/mercado. A luta contra a escravidão e o racismo ilustra bem este drama. O tal fim legal da escravidão em 1888 foi precedido de lutas por séculos pelos próprios escravos. A proclamação do fim da escravidão, de fato, não foi uma efetiva emancipação social e política, mas só o fim legal da escravidão aberta. As e os “libertados” e seus descendentes continuaram excluídos e condenados a viver em situações de injustiça ecossocial estrutural, com miséria e pobreza, falta de acesso a direitos de todo tipo, combinadas com racismo, formando enormes “periferias” urbanas e rurais. Mesmo trabalhar e viver em situações análogas à escravidão não acabaram efetivamente. Temos formas de trabalho escravo que se repetem no presente. O combate ao racismo estrutural, como forma de exclusão e violência social, política e econômica, protagonizado por potentes movimentos negros, é hoje um combate ao maior “câncer” a nos destruir, corroendo o próprio sentido comum de “pertencimento”, que dá a liga e o sentido de viver em coletividade entre todas e todos.. Enfim, o movimento contra o racismo estrutural nos alerta cotidianamente que estamos longe ainda de democracia efetiva, que só pode ser para todos ou nem democracia pode ser considerada.

Um outro polo de lutas que importa assinalar vem das resistências dos povos indígenas originários contra a violenta conquista e a colonização dos seus, algo ainda acontecendo e até com mais intensidade nos anos recentes. Os povos indígenas são uma expressão heroica, simbólica e potente de modos de ser e viver como coletividades e em relação de respeito com a natureza, em seus territórios. Apesar da dizimação sofrida por esses povos ao longo de cinco séculos, suas concepções e modos de viver tem muito a nos inspirar ainda hoje sobre possíveis rumos diferentes para o país como um todo, de cuidado, convivência e compartilhamento, entre nós mesmos e com a natureza. Os povos originários, com suas persistentes lutas, quase sempre minimizados, são um alerta vivo e uma  barreira de resistência ao assalto de garimpeiros, grileiros e desmatadores, em geral com conivência do Estado.

Existem muitas outras expressões poderosas de cidadania no chão da sociedade a questionar e enfrentar a lógica destrutiva em que estamos mergulhados e que se revelam com capacidade de fortalecer a democracia. Só lembro que, para criar o contexto da redemocratização acabando com a ditadura militar, foram estratégicos o renovado movimento sindical surgido no ABC paulista e irradiado para outras áreas urbanas e rurais, a partir do final dos anos de 1970 e durante as décadas de 80 e 90. Ao sindicalismo se somam o MST e o MAB, seguidos pelos Sem Teto e a enorme diversidade de identidades e vozes das periferias urbanas e rurais. Neste contexto, também se destacam as diversas expressões do feminismo contra o patriarcalismo estrutural que impregna todas as formas de dominação e negação de direitos iguais em nosso país. Aí cabe sublinhara potência que vem adquirindo as vozes do movimento LGBTQIA+. A todas estas expressões de identidades e vozes de cidadania ativa, a partir dos anos 2000 vieram se somar as “Marchas das Margaridas” das florestas, dos rios e dos campos.

Poderiam e mereceriam ser lembradas muitas outras expressões potentes de novos movimentos e organizações sociais. Mas este não é este meu objetivo aqui. Gostaria de celebrar este ressurgimento de múltiplas formas de ser e agir como cidadania, tornando potência transformadora que se alastrou e pode crescer ainda muito mais. Afinal, abriu um maior espaço no seio da sociedade civil e impôs visibilidade e reconhecimento político à diversidade de cidadanias ativas em nosso país. Além disto, gerou um forte imaginário mobilizador de que mudanças são possível, hoje referência para a própria sociedade. São conquistas reais com impacto, mas  continuamente ameaçadas pelas forças do atraso, bem presentes no cenário político.

Enfim, a sociedade se moveu para derrotar a ditadura militar e implantar a democracia como um possível processo virtuoso de superação de nossa colonialidade, renovada ao longo dos séculos, em benefício dos “donos de gado e gente”. Mas é intrigante, que com os governos democráticos, para financiar políticas sociais mais includentes, tenhamos voltado a depender mais e mais de exportações de commodities minerais e agrícolas, reprimarizando a economia para atender o voraz capitalismo global.

Diante deste quadro, pretendo destacar a contradição que está embutida na disputa eleitoral deste 2022 do poder legal, a ser delegado pelo voto da cidadania como um todo. Estamos diante do risco de terminar simplesmente contando para a vitória eleitoral de nosso candidato presidencial – importante no momento para nos livrar das ameaças do bolsonarismo, sem dúvida – mas insuficiente. Conquistar hegemonia eleitoral na forma de voto da maioria da cidadania não é uma garantia por si só de participação ativa e forte das cidadanias reais no controle e pressão sobre o exercício do poder estatal depois da posse.

Para buscar mudanças de rumos no modo de fazer política e avançar nas conquistas de  direitos plenos, com enfrentamento das injustiças, exclusões e destruições ecossociais, precisamos propostas e compromissos mais claros desde agora. Tal tarefa só pode ser iniciativa das próprias cidadanias ativas, criando impacto tanto na campanha eleitoral, nos candidatos, como no após, através de um imaginário coletivo mobilizador por mudanças inadiáveis. Temos algum tempo, mas será que conseguiremos impactar?

De toda forma, não podemos deixar a outra hipótese acontecer: o “mito”, de vocação autoritária e fascista, conseguir uma vitória e renovar seu mandato em eleição controlada pela Justiça Eleitoral! Ou, então, mesmo sendo pouco viável no quadro real de relações de forças políticas, o Bolsonaro liderar um golpe autoritário contra a institucionalidade ainda existente, já deteriorada desde 2016.

Enfim, o que conseguirmos de mobilização, tomada de ruas com grandes manifestações – o palco de expressão por excelência das cidadanias[2] vivas – é o acontecimento político e conjuntural que precisamos produzir o quanto antes. O desafio não é só ganhar a eleição, mas ser capaz de conformar o governo, as leis e as políticas, plantando, ao menos, as sementes de transformação ecossocial democrática. Nisto reside a essência de uma democracia ecossocial radical em termos humanos de compromisso de inclusão de todas e todos, em busca de um outro futuro de bem viver, saboroso de viver.

O problema mais premente que temos – a derrota das propostas autoritárias e fascistas – tem limitantes democráticos instituídos pelo pacto conciliador para a governabilidade. Reconquistada nos anos 1980 e institucionalizada em 1988, nossa democracia nasceu com limites claros sobre seu alcance devido ao peso do “Centrão”. Ele  tem sido o pêndulo da democracia, pois as forças que o compõe apoiam um lado ou outro,  sempre em função dos interesses que representam e que lhes favoreçam no controle dos recursos do Estado. Não tem identidade programática e nem partidária firme. Trata-se de formação e atuação de grandes lobbies de bancadas de interesses corporativos e clientelistas com representantes em diferentes partidos – bancada ruralista, da mineração, dos bancos, dos pentecostais...Votam em bloco no Congresso e disputam cargos no governo para os seus indicados.  

O Centrão tem sido visto como indispensável para a governabilidade,  à direita e à esquerda, fazendo os governos reféns dele. Ou seja, governar com o Centrão é pactuar com as forças que limitam as propostas de democracia com intencionalidade transformadora do edifício estrutural de privilégios, sob forma de direitos pétreos adquiridos, dos “donos” de quase tudo no capitalismo a la brasileira.

Como conclusão, toco no cerne da questão imediata nesta conjuntura eleitoral: as alianças em torno a Lula para a possível vitória eleitoral, onde a conciliação com forças do atraso está bem representada. A isto se soma uma falta, até agora, de maior protagonismo nas ruas das cidadanias ativas portadoras de democracia como alternativa potente, tanto contra o que representa Bolsonaro e as forças que o sustentam, como para um possível novo Governo Lula não sofrer as amarras do Centrão. Temos que impedir Bolsonaro, mas sem reproduzir a sina do “Planalto x Planície”, numa versão aparentemente remodela, mas continuando ser o mesmo câncer.

Felizmente, no dia 11 deste mês houve uma expressão pública a destacar, através de multiplicidade de atos de apoio ao manifesto em defesa da democracia. Isto aconteceu nos principais centros urbanos de todo o país. Devemos apostar que é possível algo mais, pois mesmo com tempo curto é possível cimentar  a diversidade de cidadanias ativas em compacta força democrática, conquistando mais espaço nos governos estaduais e seus legislativos, e ainda mais no Congresso Nacional. Aliás, alguns fortes movimentos sociais já tomaram tal iniciativa de formar bancadas fortes com representação surgida de seu seio. Isto tem tudo para ser estratégico na busca de compromisso das forças aliadas em torno a Lula. Mas também é fundamental na inviabilização do projeto de Bolsonaro e ainda debilitar as forças sub-reptícias do Centrão, que tem impedido qualquer avanço de democracia transformadora.

 



[1] A expressão forte “Planalto x Planície” foi cunhada por Herbert de Souza, o Betinho, que animou a memorável  “Campanha da Fome”, através da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, nos anos 1990, com grande impacto no processo de redemocratização pós 1988.

[2] Ao me referir a  “cidadanias”, algo constante nas minhas análises como ativista, estou considerando as manifestações coletivas das diversas identidades e vozes de cidadania. Uso a expressão para apontar que só poderemos conquistar igualdade se considerarmos que ela implica em reconhecer as diversidades não negadoras de igualdade, ou seja um pluriverso de cidadanias, como nos lembra Boaventura  de Souza Santos em suas análises e propostas.

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