A imagem, que sintetiza de forma simbólica o nosso dilema coletivo no Brasil, é o fosso enorme que separa o poder estatal e suas políticas – representado pelo Palácio do Planalto, Congresso e Judiciário – das e dos que lutam diariamente para levar a vida no chão da sociedade – as “planícies” de nosso imenso país.[1] Aponta uma distância entre o poder político e a cidadania, ou seja, uma forma de agir do governo e do parlamento que tende a ignorar ou minimizar a cidadania e seu poder instituinte e constituinte das democracias. Afinal, democracias de alta intensidade e capacidade transformadora só podem vir da sociedade, onde vivemos todas e todos as cidadanias desafiadas constantemente a se reconhecer, a partir de sua diversidade e pluralidade, como titulares de direitos comuns de liberdade, igualdade, solidariedade coletiva e participação política.
Uso o “Planalto x
Planície” como uma expressão síntese qualificadora e de fácil comunicação e
apreensão por todo mundo, mas não como um conceito analítico. Em termos
políticos, mais do que um espelho da realidade, faz referência a uma estrutura
e a uma herança que muda no modo de se manifestar, mas continua reproduzindo o
de sempre, em novas formas. Tal estrutura de separação se forjou desde o
processo histórico de conquista e colonização, subordinação e morte de povos
originários, destruição extrativista e economia escravocrata voltada para o
nascente capitalismo europeu. Afinal, o Estado chegou antes da sociedade, veio
de fora como conquistador, criando fortalezas militares antes da sociedade e da
economia. Aponto tal imagem aqui para entender a conjuntura atual que
atravessamos, como uma espécie de alerta ao que não podemos esquecer nunca se
sonhamos com outro futuro, com democracia efetiva, ecossocial transformadora
para nosso país.
Não é demais afirmar e reafirmar o óbvio, que estamos
submetidos a um modo de exploração que se renova, mas não muda, em benefício de
poucos e a serviço do sistema do capitalismo, hoje dominado pela globalização
neoliberal das grandes corporações econômicas e financeiras. Tornamo-nos
formalmente “independentes” 200 anos atrás, mas para renovar e ampliar laços de
“dependência” a novos impérios dominantes na geopolítica mundial eurocêntrica.
E assim continuamos até hoje, apesar de termos tido alguns surtos esporádicos
de fazer valer um pouco mais nossa soberania como povo. Neste sentido, temos
pouco a celebrar em dois séculos de independência, efetivamente nunca
conquistada.
Mas nos fortalece lembrar que sempre surgiram tentativas de
resistir e mudar, umas com maior impacto do que outras, porém sem grandes
transformações no Estado/poder e, consequentemente, na economia/mercado. A luta
contra a escravidão e o racismo ilustra bem este drama. O tal fim legal da escravidão
em 1888 foi precedido de lutas por séculos pelos próprios escravos. A
proclamação do fim da escravidão, de fato, não foi uma efetiva emancipação
social e política, mas só o fim legal da escravidão aberta. As e os “libertados”
e seus descendentes continuaram excluídos e condenados a viver em situações de
injustiça ecossocial estrutural, com miséria e pobreza, falta de acesso a
direitos de todo tipo, combinadas com racismo, formando enormes “periferias” urbanas
e rurais. Mesmo trabalhar e viver em situações análogas à escravidão não
acabaram efetivamente. Temos formas de trabalho escravo que se repetem no
presente. O combate ao racismo estrutural, como forma de exclusão e violência social,
política e econômica, protagonizado por potentes movimentos negros, é hoje um
combate ao maior “câncer” a nos destruir, corroendo o próprio sentido comum de
“pertencimento”, que dá a liga e o sentido de viver em coletividade entre todas
e todos.. Enfim, o movimento contra o racismo estrutural nos alerta cotidianamente
que estamos longe ainda de democracia efetiva, que só pode ser para todos ou
nem democracia pode ser considerada.
Um outro polo de lutas que importa assinalar vem das
resistências dos povos indígenas originários contra a violenta conquista e a
colonização dos seus, algo ainda acontecendo e até com mais intensidade nos
anos recentes. Os povos indígenas são uma expressão heroica, simbólica e
potente de modos de ser e viver como coletividades e em relação de respeito com
a natureza, em seus territórios. Apesar da dizimação sofrida por esses povos ao
longo de cinco séculos, suas concepções e modos de viver tem muito a nos
inspirar ainda hoje sobre possíveis rumos diferentes para o país como um todo,
de cuidado, convivência e compartilhamento, entre nós mesmos e com a natureza.
Os povos originários, com suas persistentes lutas, quase sempre minimizados,
são um alerta vivo e uma barreira de
resistência ao assalto de garimpeiros, grileiros e desmatadores, em geral com
conivência do Estado.
Existem muitas outras expressões poderosas de cidadania no
chão da sociedade a questionar e enfrentar a lógica destrutiva em que estamos
mergulhados e que se revelam com capacidade de fortalecer a democracia. Só
lembro que, para criar o contexto da redemocratização acabando com a ditadura
militar, foram estratégicos o renovado movimento sindical surgido no ABC
paulista e irradiado para outras áreas urbanas e rurais, a partir do final dos
anos de 1970 e durante as décadas de 80 e 90. Ao sindicalismo se somam o MST e
o MAB, seguidos pelos Sem Teto e a enorme diversidade de identidades e vozes
das periferias urbanas e rurais. Neste contexto, também se destacam as diversas
expressões do feminismo contra o patriarcalismo estrutural que impregna todas
as formas de dominação e negação de direitos iguais em nosso país. Aí cabe
sublinhara potência que vem adquirindo as vozes do movimento LGBTQIA+. A todas
estas expressões de identidades e vozes de cidadania ativa, a partir dos anos
2000 vieram se somar as “Marchas das Margaridas” das florestas, dos rios e dos
campos.
Poderiam e mereceriam ser lembradas muitas outras expressões
potentes de novos movimentos e organizações sociais. Mas este não é este meu
objetivo aqui. Gostaria de celebrar este ressurgimento de múltiplas formas de
ser e agir como cidadania, tornando potência transformadora que se alastrou e
pode crescer ainda muito mais. Afinal, abriu um maior espaço no seio da
sociedade civil e impôs visibilidade e reconhecimento político à diversidade de
cidadanias ativas em nosso país. Além disto, gerou um forte imaginário
mobilizador de que mudanças são possível, hoje referência para a própria
sociedade. São conquistas reais com impacto, mas continuamente ameaçadas pelas forças do
atraso, bem presentes no cenário político.
Enfim, a sociedade se moveu para derrotar a ditadura militar
e implantar a democracia como um possível processo virtuoso de superação de
nossa colonialidade, renovada ao longo dos séculos, em benefício dos “donos de
gado e gente”. Mas é intrigante, que com os governos democráticos, para
financiar políticas sociais mais includentes, tenhamos voltado a depender mais
e mais de exportações de commodities minerais e agrícolas, reprimarizando a
economia para atender o voraz capitalismo global.
Diante deste quadro, pretendo destacar a contradição que está
embutida na disputa eleitoral deste 2022 do poder legal, a ser delegado pelo
voto da cidadania como um todo. Estamos diante do risco de terminar
simplesmente contando para a vitória eleitoral de nosso candidato presidencial
– importante no momento para nos livrar das ameaças do bolsonarismo, sem dúvida
– mas insuficiente. Conquistar hegemonia eleitoral na forma de voto da maioria
da cidadania não é uma garantia por si só de participação ativa e forte das
cidadanias reais no controle e pressão sobre o exercício do poder estatal depois
da posse.
Para buscar mudanças de rumos no modo de fazer política e
avançar nas conquistas de direitos plenos,
com enfrentamento das injustiças, exclusões e destruições ecossociais,
precisamos propostas e compromissos mais claros desde agora. Tal tarefa só pode
ser iniciativa das próprias cidadanias ativas, criando impacto tanto na campanha
eleitoral, nos candidatos, como no após, através de um imaginário coletivo mobilizador
por mudanças inadiáveis. Temos algum tempo, mas será que conseguiremos
impactar?
De toda forma, não podemos deixar a outra hipótese acontecer:
o “mito”, de vocação autoritária e fascista, conseguir uma vitória e renovar seu
mandato em eleição controlada pela Justiça Eleitoral! Ou, então, mesmo sendo
pouco viável no quadro real de relações de forças políticas, o Bolsonaro
liderar um golpe autoritário contra a institucionalidade ainda existente, já deteriorada
desde 2016.
Enfim, o que conseguirmos de mobilização, tomada de ruas com
grandes manifestações – o palco de expressão por excelência das cidadanias[2]
vivas – é o acontecimento político e conjuntural que precisamos produzir o
quanto antes. O desafio não é só ganhar a eleição, mas ser capaz de conformar o
governo, as leis e as políticas, plantando, ao menos, as sementes de
transformação ecossocial democrática. Nisto reside a essência de uma democracia
ecossocial radical em termos humanos de compromisso de inclusão de todas e
todos, em busca de um outro futuro de bem viver, saboroso de viver.
O problema mais premente que temos – a derrota das propostas
autoritárias e fascistas – tem limitantes democráticos instituídos pelo pacto
conciliador para a governabilidade. Reconquistada nos anos 1980 e
institucionalizada em 1988, nossa democracia nasceu com limites claros sobre
seu alcance devido ao peso do “Centrão”. Ele tem sido o pêndulo da democracia, pois as
forças que o compõe apoiam um lado ou outro, sempre em função dos interesses que
representam e que lhes favoreçam no controle dos recursos do Estado. Não tem
identidade programática e nem partidária firme. Trata-se de formação e atuação
de grandes lobbies de bancadas de
interesses corporativos e clientelistas com representantes em diferentes
partidos – bancada ruralista, da mineração, dos bancos, dos pentecostais...Votam
em bloco no Congresso e disputam cargos no governo para os seus indicados.
O Centrão tem sido visto como indispensável para a
governabilidade, à direita e à esquerda,
fazendo os governos reféns dele. Ou seja, governar com o Centrão é pactuar com
as forças que limitam as propostas de democracia com intencionalidade
transformadora do edifício estrutural de privilégios, sob forma de direitos
pétreos adquiridos, dos “donos” de quase tudo no capitalismo a la brasileira.
Como conclusão, toco no cerne da questão imediata nesta
conjuntura eleitoral: as alianças em torno a Lula para a possível vitória
eleitoral, onde a conciliação com forças do atraso está bem representada. A
isto se soma uma falta, até agora, de maior protagonismo nas ruas das cidadanias
ativas portadoras de democracia como alternativa potente, tanto contra o que
representa Bolsonaro e as forças que o sustentam, como para um possível novo
Governo Lula não sofrer as amarras do Centrão. Temos que impedir Bolsonaro, mas
sem reproduzir a sina do “Planalto x Planície”, numa versão aparentemente
remodela, mas continuando ser o mesmo câncer.
Felizmente, no dia 11 deste mês houve
uma expressão pública a destacar, através de multiplicidade de atos de apoio ao
manifesto em defesa da democracia. Isto aconteceu nos principais centros
urbanos de todo o país. Devemos apostar que é possível algo mais, pois mesmo
com tempo curto é possível cimentar a
diversidade de cidadanias ativas em compacta força democrática, conquistando
mais espaço nos governos estaduais e seus legislativos, e ainda mais no
Congresso Nacional. Aliás, alguns fortes movimentos sociais já tomaram tal
iniciativa de formar bancadas fortes com representação surgida de seu seio.
Isto tem tudo para ser estratégico na busca de compromisso das forças aliadas
em torno a Lula. Mas também é fundamental na inviabilização do projeto de
Bolsonaro e ainda debilitar as forças sub-reptícias do Centrão, que tem
impedido qualquer avanço de democracia transformadora.
[1] A expressão forte “Planalto x Planície” foi cunhada por Herbert de Souza, o Betinho, que animou a memorável “Campanha da Fome”, através da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, nos anos 1990, com grande impacto no processo de redemocratização pós 1988.
[2] Ao me referir a “cidadanias”, algo constante nas minhas análises como ativista, estou considerando as manifestações coletivas das diversas identidades e vozes de cidadania. Uso a expressão para apontar que só poderemos conquistar igualdade se considerarmos que ela implica em reconhecer as diversidades não negadoras de igualdade, ou seja um pluriverso de cidadanias, como nos lembra Boaventura de Souza Santos em suas análises e propostas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário