Construir e conquistar hegemonia democrática na atual
conjuntura brasileira implica em realizar um trabalho político de busca
coletiva, inadiável e insubstituível, que só nós, cidadanias ativas, podemos
empreender. Ele supõe diálogos permanentes para dentro - em busca de unidade entre a diversidade de
atores, identidades e vozes, que temos como cidadanias ativas em luta por
direitos – e para fora, visando disputar e vencer uma verdadeira guerra
política de concepções e ideias, sobretudo frente ao capitalismo e às direitas
em geral, com sua defesa intransigente do primado de interesses individuais
acima de tudo, no seio da sociedade civil. Esta é uma ação política constante, plantando e regando as bases vivas
de uma democracia intensa e em renovação permanente. Trata-se de agregar e
fortalecer um bloco histórico das múltiplas diversidades que carregamos em
torno a um comum de princípios, valores, concepções de viver e conviver, com
capacidade de promover um processo democrático ecossocial transformador.
Não podemos desprezar ou minimizar os desafios que existem.
Estamos diante de um capitalismo velho de alguns séculos, assentado no mais
radical individualismo, que explora, destrói e domina em busca de acumulação
individual crescente, definida como caminho para o desenvolvimento econômico em
benefício de todo mundo. Com ele e dependendo dele não temos como fazer justiça
ecossocial, nem imaginar outro mundo. Hoje, os “donos” deste mundo de exclusões
e destruições, baseado no capitalismo neoliberal globalizado, pregam que não
existem alternativas e corrompem nossos imaginários. Com sua propaganda
sistemática, valendo-se tanto das mídias tradicionais e como das novas
tecnologias de comunicação e seus algoritmos, vem
colonizando corações e mentes de toda população, com valores, concepções, modos
de pensar, consumismo e estilos de vida, sempre apontando que não existem
alternativas viáveis. O fato mais relevante, a gitantesca desigualdade social e
a destruição da natureza, em crescimento vertiginoso, nem é adequadamente
diagnosticado como resultado palpável de tal modo de produção, podendo nos
levar a uma catástrofe planetária e humanitária sem precedentes.
Mas insurgências e resistências a tal ordem sempre existiram
e vem se multiplicando. O viver humano é, a seu modo, uma busca e uma
insurgência sem fim. Sempre demonstrou capacidade de superação diante dos
desafios mais trágicos. Civilizações acabaram, como o capitalismo vai acabar um
dia. Porém, não sabemos quando e nem qual é a capacidade de resiliência do
sistema natural, que nos dá a vida, o nosso Planeta Terra. Com o estilo de vida
humana atual, imposto pelo consumismo capitalista, já superamos muitos os
limites dos sistemas ecológicos fundamentais à integridade do planeta.[2]
Vivemos neste mundo e a nós cabe, às gerações de hoje e às
que virão, enfrentar isto. Como reflexão e debate, existem muitas iniciativas
de redes mundiais sobre novos paradigmas. Simplificando, e muito, podemos
estabelecer que estamos diante de três alternativas, grosseiramente somente
três! De alguma forma ou outra, este cenário de três possibilidades resume a
gravidade do dilema que temos como humanidade.
Uma é ajustar e remediar, aqui e lá, adiando ao máximo a
catástrofe anunciada. Ela não se propõe mudar a lógica estrutural, mas corrigir
os excessos. Aqui cabem todos os acordos
estabelecidos nos órgãos multilaterais existentes e no âmbito da ONU, como são
hoje os ODS, boas intenções não impositivas. O “global new deal” vai nesta mesma linha, assim como a suposta
responsabilidade social empresarial. Nada de bom dá para esperar do
desenvolvimento de novas tecnologias, como o
“capitalismo verde” e/ou a reengenharia para a captura e estocagem de
carbono. O surpreendente hoje é que até,
de algum modo, esta perspectiva de melhorar o que destrói e exclui é
referendada pelo principal espaço de encontro do capitalismo neoliberal, o Fórum
Econômico Mundial, de Davos. Ele propõe agora um capitalismo “multistakeholders”, onde todos
supostamente ganhariam! Cabe a pergunta: quem seria explorado e destruído para
todas e todos poderem ganhar, se o sistema se baseia na exploração do trabalho
e no extrativismo sem limites dos recursos da natureza, ao que se juntam todas as outras mazelas como
patriarcalismo, racismo descarado, intolerâncias, violências e guerras.
A segunda e mais provável alternativa, no estado atual da
geopolítica, é nada mudar. Trata-se, por
todas as evidências já conhecidas, de um caminho que nos levará ao colapso de
dimensões planetárias e afetando a maior parte da humanidade. Um capitalismo
para os que sobrarem, um mundo fortaleza, de condomínios e até países super
protegidos, com muralhas, armados e vigiados dia e noite, como já estão sendo
criados, de algum modo, pelo mundo inteiro. Seria o mundo de muralhas reais ou
fictícias intransponíveis para humanos “fracassados e indesejáveis”, que o
capitalismo cria mais e mais.
A terceira, grosso modo, é transformar tudo e, de algum modo,
refundar o viver humano em convivência e respeito entre si e com a natureza. Visões
iluminadas e ensaios práticos existem e tem virtuosidades como inspiração, mas,
lamentavelmente, são sementes e experimentos pontuais, ainda pouco conhecidos e
debatidos. Precisam ser construídos e ganhar potência democrática ecossocial
transformadora para promover mudanças
desde o aqui e agora. De toda foram são sinais claros que existem alternativas
possíveis e viáveis, mas não virão do
capitalismo ou dos Estados dominados pelas forças políticas que o defendem.
Estamos dispostos a encarar e lutar para torná-las viáveis e centrais, de algum
modo, como novos paradigmas de viver e democracias de alta intensidade?[3]
De todos os modos, considero que qualquer alternativa
transformadora deverá ser feita democraticamente para realmente significar
conquista de direitos ecossociais iguais na diversidade. Esta questão é que
está no centro de minhas buscas e reflexões. A participação no evento em Recife
fortaleceu ainda mais esta perspectiva e me deu luzes sobre a importância
estratégica de estabelecermos diálogos
democráticos. O objetivo coletivo,
de cidadanias em ação, no seio da sociedade civil, é construir e almejar a
conquista de hegemonia democrática como direção política na sociedade e no
poder estatal, com impacto transformador e regulador da economia em nome de
garantir direitos iguais para todas e todos, sem deixar ninguém para trás.
A grande questão de fundo nestes diálogos é a construção de
concepções e imaginários, de princípios e valores comuns, com capacidade de
agregação da diversidade intra e inter movimentos de cidadanias ativas, sem
hierarquias e sem dogmatismos, valorizando as múltiplas e legítimas identidades, vozes e demandas. Ao mesmo
tempo, trata-se de diálogos com visão estratégica transformadora, que implica
ganhar poder coletivo democrático, enfrentando
as disputas de ideias no seio da sociedade civil, gerando ondas políticas democráticas
irresistíveis diante das forças que sustentam o domínio e os privilégios das
classes dominantes.
As lutas específicas sempre foram e continuam sendo base
fundamental, pois constituem, a seu modo, formas estratégicas de garantir vida
no aqui e agora. Além disto, é através de tais processos de organização e luta
que se constituem movimentos de cidadania ativa e se expressa a enorme diversidade
de modos de se ver, viver e conviver que a sociedade pode conter. Está em jogo
o fundamental princípio de ter direito ao pertencimento e ao reconhecimento,
indispensável para se sentir sujeito emancipado e de direitos iguais. Neste
sentido, quanto mais identidades e vozes de cidadania ativa é melhor. É mais
democrático e vivo, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, mais complexo e
desafiante.
Uma potente cultura democrática, com capacidade de disputar
hegemonia, assenta no princípio de direitos iguais na diversidade, sem
exclusões ou discriminações. Mas como cultura democrática, com virtude de ser
capaz de conquistar adesão e ser compartida pela grande maioria, precisa
construir o seu próprio eixo catalizador, uma espécie de cimento político e
cultural de valores, concepções, análises, ideias, propostas e argumentos
consistentes, tornando-se irresistíveis. Isto para ser capaz de disputar
imaginários coletivos frente ao bloco histórico dominante, com sua capacidade de
“comprar lealdades” e dominar o mundo da comunicação e dos debates sociais, mas
com suas próprias complexidades e contradições. Afinal, ideologias dominantes,
a seu modo, são sempre datadas e situadas, podendo ser combatidas e demolidas,
até tornar-se dominadas e insignificantes. A história não acaba enquanto a
humanidade existe!
A busca permanente de emancipação, começando por pensar por
si mesmo e para si, se libertar das
imposições ideológicas reinantes e buscar os semelhantes na mesma condição, é o
pilar de sustentação de uma consciência cidadã determinada. Mas ela necessita,
ao mesmo tempo, reconhecer-se no pertencimento e no compartilhamento, tanto de
sonhos e esperanças como das violências e violações vividas e sofridas, com
muitas e muitos outros. É assim que se formam as potentes organizações e
movimentos de cidadania ativa em democracias. Mas sempre, de alguma forma, tais
movimentos, como forças em luta, implicam em se forjar a partir de diversidades
em seu interior, dadas as múltiplas transversatilidades e interseccionalidades que são próprias da vida: de gênero, idade, cor
da pele, grau de formação, de opções culturais e religiosas, trabalho em busca do sustento,
profissão e renda, território de vida, país de origem, migrações realizadas por
escolha ou imposição, entre tantas outras que podem ser encontradas. Isto tudo
pode estar de algum modo formando um complexo movimento de cidadania ativa. Mas
sua potência se faz a partir dos diálogos internos e no esforço de incluir
todas e todos, dando conta de transversatilidades e interseccionalidades.
Aqui cabe salientar primeiro os diálogos estratégicos para dentro, em cada movimento de cidadania ativa, uma tarefa sempre
indispensável e em renovação. Ao mesmo tempo, mas em simultaneidade, o desafio
é construir fóruns de diálogo estratégico permanente entre diferentes e potenciais aliados ou inter forças de cidadania
ativa, em busca dos valores e concepções comuns, dos acordos sobre análises
e propostas no presente histórico e na visão de futuro desejável. Tudo isto
forma o conjunto de condições políticas e pedagógicas que permitem forjar um
grande bloco histórico democrático de diferentes movimentos de cidadanias ativas.
Democracia sempre é e será uma busca por um pluriverso de se sentir titular e de
viver com direitos iguais na diversidade. Os direitos se definem conscientemente
como tais nas lutas democráticas, muitas vezes até antes mesmo de serem
reconhecidos, constituídos e instituídos pelo Estado. Os direitos se destilam conscientemente
no viver, nas relações de todos os tipos que historicamente estabelecemos como
humanos e com a natureza, o grande comum de toda vida, de humanos e não
humanos. Hoje, defendo que temos que pensar e lutar democraticamente por
direitos iguais na diversidade ecossocial, condição fundamental para superar a
catástrofe que o capitalismo nos aponta como futuro para a humanidade e a
natureza que nos dá condições de vida.
Direitos iguais só
podem se concretizar como direitos democráticos ecossociais. Tão simples e complexo assim! Será
sempre uma busca, pois não tem limites e sim um método de ir fazendo e
conquistando: a democracia mais viva e intensa, de bom viver para todas e todos.
Por isto mesmo, construir e conquistas hegemonia democrática é, como tarefa
política, uma tarefa permanente, pois o fim é a possibilidade dela mesmo:
disputar e alcançar os melhores acordos coletivos possíveis no momento
histórico para a maioria e para preservar a integridade da natureza. Nisto consiste o que chamo o poder
transformador de uma democracia ecossocial. Haja desafio nisto!
[1] De 20 a 23 de março, em Recife, participei de um seminário de trabalho intitulado Oficina II. Tratou-se de uma retomada e reavaliação de condições e possibilidades de participação social nas políticas governamentais, proposta da Oficina I, de 2003, no início do primeiro Governo Lula. Não participei da Oficina I, mas sou muito grato aos organizadores pelo convite para participar da Oficina II, um evento de grande intensidade e inovação no diálogo político entre representantes de cidadanias diversas, necessário nos dias de hoje. Foi muito inspirador para as questões que envolvem a busca de hegemonia como tarefa coletiva.
[2] Ver o importante estudo do Stockholm Resilience Center: Planetary Boundaries <https://www.stockholmrsileiente.org>
[3] Participo das discussões da rede de debates GTN – Great Transition Network –, animada pelo Tellus Institute, de Boston, USA, desde 2008. Adoto para debate a proposta, que anima a GTN, de três cenários possíveis para o futuro. O Ibase publicou o livro de Paul Raskin, presidente do Tellus, sob o título Jornada para Terralanda: A grande transição para a civilização planetária. Rio de Janeiro, Ibase, 2018. Em 2020, em consultoria para ABONG e Ibase, eu mesmo produzi um texto síntese sobre a proposta e debates do GTN, assim como do Grupo sobre Comuns, nascido no interior do FSM, mas crescendo de forma totalmente independente. O estudo foi completado com caracterização de várias outras iniciativas de reflexões e debates em rede sobre novos paradigmas. A versão digital do estudo foi produzida pela ABONG para um ateliê no Fórum Social Temático de 2021.