quarta-feira, 29 de março de 2023

Diálogos Democráticos Estratégicos [1]

 

Construir e conquistar hegemonia democrática na atual conjuntura brasileira implica em realizar um trabalho político de busca coletiva, inadiável e insubstituível, que só nós, cidadanias ativas, podemos empreender. Ele supõe diálogos permanentes para dentro -  em busca de unidade entre a diversidade de atores, identidades e vozes, que temos como cidadanias ativas em luta por direitos – e para fora, visando disputar e vencer uma verdadeira guerra política de concepções e ideias, sobretudo frente ao capitalismo e às direitas em geral, com sua defesa intransigente do primado de interesses individuais acima de tudo, no seio da sociedade civil. Esta é uma ação política  constante, plantando e regando as bases vivas de uma democracia intensa e em renovação permanente. Trata-se de agregar e fortalecer um bloco histórico das múltiplas diversidades que carregamos em torno a um comum de princípios, valores, concepções de viver e conviver, com capacidade de promover um processo democrático ecossocial transformador.

Não podemos desprezar ou minimizar os desafios que existem. Estamos diante de um capitalismo velho de alguns séculos, assentado no mais radical individualismo, que explora, destrói e domina em busca de acumulação individual crescente, definida como caminho para o desenvolvimento econômico em benefício de todo mundo. Com ele e dependendo dele não temos como fazer justiça ecossocial, nem imaginar outro mundo. Hoje, os “donos” deste mundo de exclusões e destruições, baseado no capitalismo neoliberal globalizado, pregam que não existem alternativas e corrompem nossos imaginários. Com sua propaganda sistemática, valendo-se tanto das mídias tradicionais e como das novas tecnologias de comunicação e seus algoritmos, vem colonizando corações e mentes de toda população, com valores, concepções, modos de pensar, consumismo e estilos de vida, sempre apontando que não existem alternativas viáveis. O fato mais relevante, a gitantesca desigualdade social e a destruição da natureza, em crescimento vertiginoso, nem é adequadamente diagnosticado como resultado palpável de tal modo de produção, podendo nos levar a uma catástrofe planetária e humanitária sem precedentes.

Mas insurgências e resistências a tal ordem sempre existiram e vem se multiplicando. O viver humano é, a seu modo, uma busca e uma insurgência sem fim. Sempre demonstrou capacidade de superação diante dos desafios mais trágicos. Civilizações acabaram, como o capitalismo vai acabar um dia. Porém, não sabemos quando e nem qual é a capacidade de resiliência do sistema natural, que nos dá a vida, o nosso Planeta Terra. Com o estilo de vida humana atual, imposto pelo consumismo capitalista, já superamos muitos os limites dos sistemas ecológicos fundamentais à integridade do planeta.[2]

Vivemos neste mundo e a nós cabe, às gerações de hoje e às que virão, enfrentar isto. Como reflexão e debate, existem muitas iniciativas de redes mundiais sobre novos paradigmas. Simplificando, e muito, podemos estabelecer que estamos diante de três alternativas, grosseiramente somente três! De alguma forma ou outra, este cenário de três possibilidades resume a gravidade do dilema que temos como humanidade.

Uma é ajustar e remediar, aqui e lá, adiando ao máximo a catástrofe anunciada. Ela não se propõe mudar a lógica estrutural, mas corrigir os excessos.  Aqui cabem todos os acordos estabelecidos nos órgãos multilaterais existentes e no âmbito da ONU, como são hoje os ODS, boas intenções não impositivas. O “global new deal” vai nesta mesma linha, assim como a suposta responsabilidade social empresarial. Nada de bom dá para esperar do desenvolvimento de novas tecnologias, como o  “capitalismo verde” e/ou a reengenharia para a captura e estocagem de carbono.  O surpreendente hoje é que até, de algum modo, esta perspectiva de melhorar o que destrói e exclui é referendada pelo principal espaço de encontro do capitalismo neoliberal, o Fórum Econômico Mundial, de Davos. Ele propõe agora um capitalismo “multistakeholders”, onde todos supostamente ganhariam! Cabe a pergunta: quem seria explorado e destruído para todas e todos poderem ganhar, se o sistema se baseia na exploração do trabalho e no extrativismo sem limites dos recursos da natureza,  ao que se juntam todas as outras mazelas como patriarcalismo, racismo descarado, intolerâncias, violências e guerras.

A segunda e mais provável alternativa, no estado atual da geopolítica, é nada mudar.  Trata-se, por todas as evidências já conhecidas, de um caminho que nos levará ao colapso de dimensões planetárias e afetando a maior parte da humanidade. Um capitalismo para os que sobrarem, um mundo fortaleza, de condomínios e até países super protegidos, com muralhas, armados e vigiados dia e noite, como já estão sendo criados, de algum modo, pelo mundo inteiro. Seria o mundo de muralhas reais ou fictícias intransponíveis para humanos “fracassados e indesejáveis”, que o capitalismo cria mais e mais.

A terceira, grosso modo, é transformar tudo e, de algum modo, refundar o viver humano em convivência e respeito entre si e com a natureza. Visões iluminadas e ensaios práticos existem e tem virtuosidades como inspiração, mas, lamentavelmente, são sementes e experimentos pontuais, ainda pouco conhecidos e debatidos. Precisam ser construídos e ganhar potência democrática ecossocial transformadora para  promover mudanças desde o aqui e agora. De toda foram são sinais claros que existem alternativas possíveis e viáveis, mas não  virão do capitalismo ou dos Estados dominados pelas forças políticas que o defendem. Estamos dispostos a encarar e lutar para torná-las viáveis e centrais, de algum modo, como novos paradigmas de viver e democracias de alta intensidade?[3]

De todos os modos, considero que qualquer alternativa transformadora deverá ser feita democraticamente para realmente significar conquista de direitos ecossociais iguais na diversidade. Esta questão é que está no centro de minhas buscas e reflexões. A participação no evento em Recife fortaleceu ainda mais esta perspectiva e me deu luzes sobre a importância estratégica de estabelecermos diálogos democráticos. O objetivo coletivo, de cidadanias em ação, no seio da sociedade civil, é construir e almejar a conquista de hegemonia democrática como direção política na sociedade e no poder estatal, com impacto transformador e regulador da economia em nome de garantir direitos iguais para todas e todos, sem deixar ninguém para trás.

A grande questão de fundo nestes diálogos é a construção de concepções e imaginários, de princípios e valores comuns, com capacidade de agregação da diversidade intra e inter movimentos de cidadanias ativas, sem hierarquias e sem dogmatismos, valorizando as múltiplas e legítimas  identidades, vozes e demandas. Ao mesmo tempo, trata-se de diálogos com visão estratégica transformadora, que implica ganhar poder coletivo democrático,  enfrentando as disputas de ideias no seio da sociedade civil, gerando ondas políticas democráticas irresistíveis diante das forças que sustentam o domínio e os privilégios das classes dominantes.

As lutas específicas sempre foram e continuam sendo base fundamental, pois constituem, a seu modo, formas estratégicas de garantir vida no aqui e agora. Além disto, é através de tais processos de organização e luta que se constituem movimentos de cidadania ativa e se expressa a enorme diversidade de modos de se ver, viver e conviver que a sociedade pode conter. Está em jogo o fundamental princípio de ter direito ao pertencimento e ao reconhecimento, indispensável para se sentir sujeito emancipado e de direitos iguais. Neste sentido, quanto mais identidades e vozes de cidadania ativa é melhor. É mais democrático e vivo, sem dúvida, mas, ao mesmo tempo, mais complexo e desafiante.

Uma potente cultura democrática, com capacidade de disputar hegemonia, assenta no princípio de direitos iguais na diversidade, sem exclusões ou discriminações. Mas como cultura democrática, com virtude de ser capaz de conquistar adesão e ser compartida pela grande maioria, precisa construir o seu próprio eixo catalizador, uma espécie de cimento político e cultural de valores, concepções, análises, ideias, propostas e argumentos consistentes, tornando-se irresistíveis. Isto para ser capaz de disputar imaginários coletivos frente ao bloco histórico dominante, com sua capacidade de “comprar lealdades” e dominar o mundo da comunicação e dos debates sociais, mas com suas próprias complexidades e contradições. Afinal, ideologias dominantes, a seu modo, são sempre datadas e situadas, podendo ser combatidas e demolidas, até tornar-se dominadas e insignificantes. A história não acaba enquanto a humanidade existe!

A busca permanente de emancipação, começando por pensar por si mesmo e para si,  se libertar das imposições ideológicas reinantes e buscar os semelhantes na mesma condição, é o pilar de sustentação de uma consciência cidadã determinada. Mas ela necessita, ao mesmo tempo, reconhecer-se no pertencimento e no compartilhamento, tanto de sonhos e esperanças como das violências e violações vividas e sofridas, com muitas e muitos outros. É assim que se formam as potentes organizações e movimentos de cidadania ativa em democracias. Mas sempre, de alguma forma, tais movimentos, como forças em luta, implicam em se forjar a partir de diversidades em seu interior, dadas as múltiplas transversatilidades e interseccionalidades  que são próprias da vida: de gênero, idade, cor da pele, grau de formação, de opções culturais e  religiosas, trabalho em busca do sustento, profissão e renda, território de vida, país de origem, migrações realizadas por escolha ou imposição, entre tantas outras que podem ser encontradas. Isto tudo pode estar de algum modo formando um complexo movimento de cidadania ativa. Mas sua potência se faz a partir dos diálogos internos e no esforço de incluir todas e todos, dando conta de transversatilidades e interseccionalidades.

Aqui cabe salientar primeiro os diálogos estratégicos para dentro, em cada movimento de cidadania ativa, uma tarefa sempre indispensável e em renovação. Ao mesmo tempo, mas em simultaneidade, o desafio é construir fóruns de diálogo estratégico permanente entre diferentes e potenciais aliados ou inter forças de cidadania ativa, em busca dos valores e concepções comuns, dos acordos sobre análises e propostas no presente histórico e na visão de futuro desejável. Tudo isto forma o conjunto de condições políticas e pedagógicas que permitem forjar um grande bloco histórico democrático de diferentes movimentos de cidadanias  ativas.

Democracia sempre é e será uma busca por um pluriverso de se sentir titular e de viver com direitos iguais na diversidade. Os direitos se definem conscientemente como tais nas lutas democráticas, muitas vezes até antes mesmo de serem reconhecidos, constituídos e instituídos pelo Estado. Os direitos se destilam conscientemente no viver, nas relações de todos os tipos que historicamente estabelecemos como humanos e com a natureza, o grande comum de toda vida, de humanos e não humanos. Hoje, defendo que temos que pensar e lutar democraticamente por direitos iguais na diversidade ecossocial, condição fundamental para superar a catástrofe que o capitalismo nos aponta como futuro para a humanidade e a natureza que nos dá condições de vida.

Direitos iguais só podem se concretizar como direitos democráticos ecossociais. Tão simples e complexo assim! Será sempre uma busca, pois não tem limites e sim um método de ir fazendo e conquistando: a democracia mais viva e intensa, de bom viver para todas e todos. Por isto mesmo, construir e conquistas hegemonia democrática é, como tarefa política, uma tarefa permanente, pois o fim é a possibilidade dela mesmo: disputar e alcançar os melhores acordos coletivos possíveis no momento histórico para a maioria e para preservar a integridade da natureza.  Nisto consiste o que chamo o poder transformador de uma democracia ecossocial. Haja desafio nisto!



[1] De 20 a 23 de março, em Recife, participei de um seminário de trabalho intitulado Oficina II.  Tratou-se de uma retomada e reavaliação de condições e possibilidades de participação social nas políticas governamentais, proposta da Oficina I, de 2003, no início do primeiro Governo Lula. Não participei da Oficina I, mas sou muito grato aos organizadores pelo convite para participar da Oficina II, um evento de grande intensidade e inovação no diálogo político entre representantes de cidadanias diversas, necessário nos dias de hoje. Foi muito inspirador para as questões que envolvem a busca de hegemonia como tarefa coletiva.

[2] Ver o importante estudo do Stockholm Resilience Center: Planetary Boundaries <https://www.stockholmrsileiente.org>

[3] Participo das discussões da rede de debates GTN – Great Transition Network –, animada pelo Tellus Institute, de Boston, USA, desde 2008. Adoto para debate a proposta, que anima a GTN, de três cenários possíveis para o futuro. O Ibase publicou o livro de Paul Raskin, presidente do Tellus,  sob o título Jornada para Terralanda:  A grande transição para a civilização planetária. Rio de Janeiro, Ibase, 2018. Em 2020, em consultoria para ABONG e Ibase, eu mesmo produzi um texto síntese sobre a proposta e debates do GTN, assim como do Grupo sobre Comuns, nascido no interior do FSM, mas crescendo de forma totalmente independente. O estudo foi completado com caracterização de várias outras iniciativas de reflexões e debates em rede sobre novos paradigmas. A versão digital do estudo foi produzida pela ABONG para um ateliê no Fórum Social Temático de 2021.

segunda-feira, 6 de março de 2023

Construir Desconstruindo


As cidadanias ativas se forjam e se renovam na disputa social, a partir dos territórios, afirmando identidade social e, ao mesmo tempo, demando reconhecimento e pertencimento ao coletivo com um todo, com direitos iguais na diversidade. Trata-se de uma prática de liberdade de pensar e agir, para elaborar e disputar narrativas sobre si mesmas e da sociedade como um todo. Assim, se situam no emaranhado de relações, processos e estruturas históricas vividas, suas formas de dominação, exploração e destruição, violência, discriminação e exclusão. No processo se forja a busca da emancipação cidadã indispensável para um agir coletivo. Ao mesmo tempo, para ganhar potência política, a própria prática leva a criar organizações e movimentos sociais, redes, coalizões, partidos, assim como a identificar e qualificar os conjuntos de forças sociais e políticas divergentes e as totalmente opostas. Este processo de pensamento em ação é que pode dar vida e intensidade à democracia,  como modo de transformação ecossocial das estruturas e processos políticos e econômicos.

Assim colocada a questão, fica claro que o chão da sociedade civil é a fonte inspiradora e a esfera prioritária. Isto tanto para a elaboração e sistematização da perspectiva democrática enquanto um “saber político” de cidadania, como para disputar a hegemonia na orientação política do Estado e na formulação de políticas históricas necessárias. Estrategicamente, não podemos perder de vista que a democracia não é um projeto ou um modelo, mas um modo de fazer em meio à situações históricas dadas. O quanto poderá ser um processo virtuoso de transformações ecossociais depende da capacidade de pressão intensa e contínua pelas cidadanias em ação, arrancando acordos, sempre provisórios, com forças divergentes e opostas.

Mas algo fundamental depende só de nós mesmos, as cidadanias. Estou me referindo ao próprio processo, profundamente emancipador, de pensar, se sentir e de agir  como cidadania consciente de ser titular de direitos iguais na diversidade. Nunca podemos deixar de reconhecer que a situação de se ver como cidadania sempre é e será uma conquista libertadora de nós mesmos, não é uma concessão de algum poder existente. Mesmo nas piores situações, como nas ditaduras as mais violentas e excludentes, a cidadania pode ser legalmente negada, mas não a consciência dela quando nos sentimos cidadania de fato. Claro, o reconhecimento “legal” de direitos de cidadania é sempre fundamental, mas não é tal reconhecimento que “cria” os sujeitos de cidadania, estes se descobrem e se fazem como tais. Lembro aqui a importância estratégica, para uma reflexão sobre esta questão central, do saber coletivo sistematizado pelo genial Paulo Freire, um pensador-educador que a sociedade brasileira gerou e que, com seus escritos, criou um patrimônio de “prática da liberdade” e emancipação, que é uma referência mundial. Não é por nada que o pensamento de Paulo Freire incomoda tanto as classes dominantes, de modo particular as brasileiras com seu ranço colonial, racista e patriarcal.

O fato é que a exploração e a dominação, que negam na prática a plena cidadania de direitos iguais na diversidade, contam sempre com o Estado e se fazem pela coerção explícita. Mas nunca dispensam a estratégica de imposição ideológica de modos de pensar, ver e agir, parte de sua hegemonia. Expressando de modo direto, estamos lidando permanentemente com um esforço sistemático de colonização de nossas mentes, imaginários e valores pelo capitalismo vigente, mais do que admitimos ou nos damos conta. E a montagem de um potente dispositivo de disparo sistemático de fakenews pela direita fascista, já pode ser considerada como verdadeira guerra de conquista de corações e mentes. Talvez estes sejam os domínios mais críticos para a tarefa de disputa de hegemonia democrática pelas cidadanias ativas brasileiras na presente conjuntura.

Lembro algumas trapaças ideológicas pela comunicação e publicidade que se tornam senso comum e se reforçam porque tomam conta da linguagem que usamos correntemente. É forçoso reconhecer que a linguagem que nos socializa e nos torna membros de uma coletividade, um comum fundamental, também está sendo sistematicamente colonizada e enviesada pelos modos de ver e pelos conceitos de quem nos domina ou quer dominar. A crítica radical dos imaginários e valores que alimentam tais processos de comunicação é uma tarefa fundamental e permanente nossa, de cidadanias, a ser feita no seio da sociedade civil.

Para não falar abstratamente de algo muito urgente a focar e a enfrentar com potente processo de análise, educação, comunicação e cultura viva, vou apontar alguns pontos como exemplos. Lembro aqui o “Agro é tec, o agro é pop, o agro é tudo”, amplamente difundido pela grande mídia. Esta mensagem já está bem desconstruído entre nós, analistas, redes de agroecologia e saúde coletiva,  movimentos sociais  como o MST, MAB, MPA... Mas pouco ou nada fizemos visando o grande público, nos espaços de educação, nas manifestações culturais, nas grandes periferias, na mídia, nas redes digitais que vão além de nós mesmos, sobretudo as que alcançam os setores populares urbanos. No caso da propaganda sistemática do agro, ela não é feita para nós, mas para a “massa”. Está em jogo uma disputa de narrativas e, devemos reconhecer, com eficiência e grande impacto. Ela encobre e embeleza com imagens e narrativas que legitimam o agronegócio com todo o que é: sua concentração de terras, seu extrativismo criminoso sobre biomas, com monoculturas, agrotóxicos perigosos e condenados, com uso insustentável e contaminação de águas, com fábricas (não criações) de animais que precisam ser abatidos antes que morram de cirrose devido ao que lhes é ministrado via ração para aumentar peso e produtividade. O agronegócio e a cadeia de processamento de seus produtos nada saudáveis fornecem a maior parte da comida que chega nos supermercados, onde a população se abastece, quando tem renda! O pior de tudo é associar o tal “agro” da publicidade com a produção de quilombolas ou de camponeses, como se fossem do mesmo mundo. Chega a ser insulto descarado e criminoso, pela falsidade. Tudo para combater no plano ideológico qualquer tentativa de tentar uma reforma radical da nossa estrutura agrária e do modo de produção do agronegócio, controlado por donos de terras, gado e gente.

O exemplo acima vale para ver o tamanho da encrenca que precisamos enfrentar como cidadanias.  Fica claro que o seu objetivo como narrativa é enfrentar e desacreditar as lutas dos movimentos sociais dos campos, matas e águas. Só que tais mensagens sistematicamente difundidas nos grandes meios de comunicação precisam ser encaradas por nós mesmos, com narrativas virtuosas contrárias e que ponham a nu a verdade, também visando o grande público.

Um outro exemplo, mais sutil, mas que forma uma espécie de balaio de conceitos “verdadeiros” do capitalismo neoliberal, como mensagens que o legitimam. Não temos críticas de alcance amplo sobre “empreendedorismo”, como a grande tábua  de salvação e conquista de autonomia individual neste sistema criador de exclusões e destruições. É uma expressão ao gosto do BM e que virou senso comum via globalização. “Empreendedor”, no caso, é visto como um sujeito que, por si só e em função de seu interesse privado (individualismo) é capaz de criar e buscar sucesso econômico e se superar na vida. O pior é que, no geral, trata-se de se virar sozinho e como for possível, quase sempre na informalidade, como no caso brasileiro. Avaliando com profundidade, é apenas uma estratégia de sobrevivência neste sistema de exploração sistemática, desigualdades e exclusões sociais. Mas é apresentado como virtude nos grandes meios de comunicação. A criação de tais “microempresas” é divulgada em números e como exemplo de sucesso. Os fracassos, com endividamento individual e familiar, são mais numerosos e reiterados, mas nunca são divulgados como tal.

Precisamos dar mais atenção ao esforço de “desculpabilizar o capital” junto à sociedade que temos – estrategicamente denunciado e enfrentado pelos potentes movimentos operários que se desenvolveram ao longo dos dois séculos e tanto de capitalismo. Mas hoje, até esquerdas usam normalmente, por exemplo, expressões como “capital humano” quando se referem ao esforço de se qualificar a si mesmo e a população para a sua “empregabilidade”. Novamente não é “capital” de quem se educa, mas sua força de trabalho a ser explorada pelo capital real. Também é capital – “capital social” – tudo o que o território contém em termos de recursos naturais, tamanho de sua população, grau de formação, infraestrutura, localização, etc. Pode ser urbano ou rural. Tudo isto é visto como oportunidades e vantagens de negócios para o grande capital. Sem dúvida, o “capital social” existente não precisa ser pago, mas importa muito na decisão de uma grande empresa capitalista transformar tal território em seu espaço de exploração para fins de acumulação privada. Para quem luta pelo direito de seu território e de pertencimento a ele, seja a cidade ou o território tradicionalmente ocupado, está reivindicando o direito a um comum fundamental para seu modo de vida, não o de ser dono de um “capital social”.  O engodo chega ao absurdo com o “capital natural” e o tal “capitalismo verde”. Cunhar como “capital social” é um grande malabarismo ideológico justificador de usurpações de comuns pela  ditadura do mercado. Aliás, o “mercado”, com seu mantra de ajuste fiscal e teto de gastos esconde a origem do problema: os juros estratosféricos da dívida pública, a grande armadilha de roubo “legal” inventada pelos especuladores sobre os recursos públicos, de todos nós membros da sociedade. Que bom que o próprio governo que elegemos já apontou tal questão como uma prioridade a enfrentar, finalmente!

A lista de narrativas colonialistas de nossas mentes e vontades pelo capitalismo  é enorme. Temos narrativas dominantes que alimentam o senso comum escondendo lógicas de exploração e destruição, exclusão e domínio, que vem herdadas do passado colonial mas continuam estruturalmente determinantes até hoje, como o racismo e o patriarcalismo, reforçado pela necropolítica de violência e extermínio dos indesejáveis. Os movimentos de cidadanias ativas e seus intelectuais já vem tematizando com rigor e consistência tais processos. Faz falta uma comunicação democrática vigorosa de tais análises para que chegue a todas os recônditos de nosso país, para virar tema de conversas em famílias, nos bares, nas praias, no trabalho.

Uma questão democrática essencial é sentir-se emancipado, autônomo,  ao menos para pensar e ver onde incidir politicamente. Mas estamos enredados em verdadeiro campo minado e mais amplo do que comumente consideramos. O capitalismo está impregnado na vida social, especialmente nesta fase do domínio neoliberal  com seu mantra de que não existem alternativas e que chegamos ao fim da história. Precisamos dizer um “basta!’, em alto e bom som. Chega de convivências com isto tudo! Não podemos nos contentar com um “liberalismo progressista”, como muitos analistas definem a onda de governos de esquerda do início do século XXI. Fazer ajuste melhor continua sendo, de algum modo, uma rendição ao neoliberalismo capitalista.. Isto só nos tem “encurralado”, literalmente.

Mas tudo isto ainda não é a história completa, aliás, muito mais complexa do que seja possível qualificar na postagem de um blog. Além dos engodos ideológicos do capitalismo neoliberal que alimenta a colonização de nossas mentes e vontades, hoje temos um adicional extremamente grave a enfrentar e reduzir o seu poder destrutivo, condição sine que non da continuidade democrática, seja qual for. Trata-se da penetração eficiente no seio da sociedade civil brasileira de narrativas fascistas demolidoras, com possibilidades de hegemonia, que alimentam o ódio e não a convivência. Não podemos menosprezar seu alcance e o grau de adesão que conseguiu. O fascismo explorou a frustração crescente em grandes massas da população, especialmente nas periferias urbanas, e se tornou a principal ameaça à democracia instituída, no imediato. Pior ainda é o fato que, a seu modo,  um versão de fascismo a la brasileira é melhor para o capitalismo neoliberal dos 1%  do que qualquer democracia que ouse se pautar em “cuidar de gente e da natureza”. Ou seja, não podemos separar a ascensão fascista do próprio capitalismo neoliberal, como uma proposta autoritária de capitalismo ainda mais excludente e destruidor em termos ecossociais.

Não fomos capazes de gestar uma cultura democrática capaz de disputar hegemonia, como direção política transformadora, depois que superamos a ditadura militar de 1964-1985. Tivemos, sim, avanços, mas não de todo resilientes. Num certo sentido, o renascimento do fascismo e da adesão que conseguiu na sociedade civil e na disputa eleitoral nos pegou de surpresa. Depois da ditadura militar, de triste memória, achávamos que estávamos imunes, mas não. A anistia feita lá atrás foi conciliatória e a conciliação deixou o mal vivo e atuante, esta é a verdade política que devemos encarar. As Forças Armadas do Brasil - recurso sempre à mão das classes dominantes brasileiras quando se sentem acuadas ou ameaçadas em seus privilégios -  são contra o povo brasileiro e se autointitulam como garantidoras da institucionalidade, quando politicamente só e unicamente as cidadanias são institituintes e constituintes.  

O grande segredo da onda fascista que se gestou em nosso seio, liderado por um “mito” de origem militar e declaradamente antidemocrático, foi dar atenção a alguns dos problemas cotidianos vividos na massa da população, que afetam particularmente aquela enorme faixa de estratos médios inferiores, especialmente urbanos, contaminados pelos valores do capitalismo de sucesso individual pelo esforço, pelo empreendedorismo, pela competição, cada um fazendo valer seu interesse acima de tudo.  A causa dos problemas e frustrações desses extratos médios não foi percebida como sendo causado pelo próprio sistema capitalista neoliberal. Pelo contrário, a causa foi percebida como de ordem política, como resultado do que fizeram ou tentaram fazer os governos de esquerda que tivemos e que deram atenção aos pobres, indígenas e negros,  e dos lutadores por direitos de gênero, vistos como  fracassados e indesejáveis. Ao mesmo tempo, toda a esquerda foi vista como corrupta e assaltante do poder em seu próprio enriquecimento. Tudo foi associado a uma pauta moral e nacionalista.  Os absurdos se legitimaram e contaram com os “mercadores da fé” para conseguir adesão ampla no meio popular. O individualismo foi acentuado e o rearmamento individual virou mote de governo, visto como uma forma de se defender e se proteger dos indesejáveis porque contra certo Deus, a pátria, a família  e os “bons costumes”. Aí até milícias foram legitimadas.

Como desconstruir isto? Foi e é algo totalmente novo, em sua intensidade e capacidade destrutiva. Na verdade, vínhamos demandando mais democracia e outro mundo possível como solução macro para o neoliberalismo, com sua globalização e sua destruição em termos ecológicos, sociais e econômicos. As frustrações foram se avolumando com os poucos avanços obtidos para os estratos médios no período 2003-2016 dos governos de esquerda, Lula e Dilma. Na avaliação que faço foi pela pouca ousadia em transformar as relações e lógicas estruturais herdadas do colonialismo e reforçadas pelo capitalismo neoliberal. Isto se expressou na aceitação política dos termos da “conciliação de classes”, embutidos na anistia e na Constituição de 1988. Tivemos conquistas, mas muito faltou ou até deixou de entrar na agenda pública.

Agora não basta reconstruir. Devemos festejar a recriação e até ampliação dos espaços de participação nas políticas governamentais e também no Parlamento. Mas isto não é transformador em si. Transformação se faz a partir da participação política na “rua”, com a radicalidade que a liberdade dá  para se sentir cidadão instituinte e constituinte de democracias transformadoras, com direitos iguais para todas e todos. A participação cidadã nos espaços de poder governamental, na implementação de políticas públicas e até na busca de maior eficácia delas, é sempre necessária e bem-vinda em democracia.

A bem da verdade, precisamos reconhecer que há uma tarefa que não podemos esperar do Estado, mesmo com o governo que elegemos. Ela é nossa mesmo, como prioridade de cidadanias ativas. Se não a assumirmos é claro que nada acontecerá. Aqui me refiro à necessidade de criar uma onda na sociedade civil que viralize positivamente com informações de qualidade, concepções, análises, debates e imaginários, com a propagação de princípios, valores e direitos de cidadania radicalmente democráticos e ecossociais transformadores. Além  disto, não tenho dúvidas que tal ação política autônoma, na esfera civil, é indispensável para o governo que elegemos agir num quadro complexo de relações de forças que conforma o Estado, tanto no Executivo, como, sobretudo, no Parlamento.

Mas o desafio principal que temos, agora que o mal imediato maior foi apenas adiado, é nos fortalecer a nós mesmos e as nossas narrativas, tanto as de crítica à ordem capitalista vigente, como, imediatamente, do fascismo, com construção de potentes narrativas democráticas ecossociais transformadoras. Só elas nos podem dar base para disputar na sociedade civil a hegemonia democrática com vigor  e assim, no imediato, evitar o pior de capitalismo e, num horizonte futuro, a sua superação em nome da sustentabilidade da vida no planeta terra e da humanidade ela mesma.

Para isto também já temos muito acumulado e que precisa se tornar nosso saber democrático potente. Não estamos começando da estaca zero. E temos uma sinalização nova vinda do Governo Lula nesta fase: cuidar de gente, um poderoso mote para o governo. É indispensável acrescentar, por nós, o cuidar da natureza. Ou seja, cuidar da vida, de todas as formas de vida, humana e não humana, assim como cuidar da integridade dos sistemas ecológicos do planeta, nosso bem comum maior. Bem, tal capítulo deixarei para as próximas postagens.