sábado, 27 de agosto de 2022

Olhar Para Além da Barbárie Já Instalada

A campanha eleitoral no Brasil entrou naquela fase decisiva. Não há maneiras de evitá-la. Está nas ruas, nos bares, no trabalho, nas igrejas e templos, nas redes e nos meios de comunicação. Invadiu os nossos lares. Mas muito antes disto e corroendo as bases da vida, aqui e no mundo afora, haviam sido implantados processos reais de destruição ecossocial e formas de barbárie sufocante com ameaças explícitas à democracia, onde os efeitos da pandemia, da crise econômica, da disputa geopolítica e da mudança climática se somam às situações históricas, econômicas e sociais de cada país. Em geral, grande desemprego, precariedades múltiplas, pobreza e, sobretudo, a fome se espalham pelo mundo em forma de avalanche.

A nossa especificidade brasileira é particularmente grave, com um truculento presidente disputando a reeleição, mas com ameaças à própria institucionalidade democrática. Trata-se de alguém com viés fascista, apoiado por uma gangue fanática e armada disposta a tudo, além de mercadores da fé popular e de um resiliente setor  autoritário e racista, existente no seio da sociedade, que se assume como tal. Bolsonaro vem  negando o desastre ecossocial implantado no país e a ampliação da fome entre os mais pobres, trauma vivido por 33 milhões de brasileiros, e mais da metade da população total em estado de insegurança alimentar no dia a dia.

 O que decidiremos, como cidadanias, é fundamental para nós e, sem dúvida, para o mundo, dada a importância estratégica do país nas relações geopolíticas.  Aí estamos como povo brasileiro, com um mês e alguns dias decisivos para escolhermos quem e que grupo poderá legitimamente definir, a partir do Estado e do Congresso Nacional políticas públicas diante de tal situação. Resumidamente, a questão para nós é: será uma eleição clara  e legítima ou  uma nova ruptura institucional com uma ditadura reinventada? Uma tal pergunta está no ar como ameaça, tornando ainda mais grave a situação imediata.

Em qualquer análise, este cenário não pode ser ignorado. O que decidirmos contribuirá, de alguma forma, para o panorama global. Mas não podemos contar com o mundo para a tarefa que é primordialmente nossa, exercendo o poder do voto livre. Temos que, de um lado, derrotar de forma contundente a alternativa que nos quer  submeter a seus interesses privados,  mergulhando o país inteiro, cada vez mais  profundamente, na barbárie e nos seus trágicos processos de exclusão e destruição   ecossocial. De outro lado, temos que apostar na vitória eleitoral de quem aponta para a retomada de um processo democrático virtuoso, evitando o pior no imediato. É difícil e exige muita ação cidadã, mas sempre possível. A vitória será ainda melhor, se a escolha significar o reimplante  no seio da sociedade das sementes da esperança de um futuro diferente e “saboroso” de viver, com transformações ecossociais democráticas. Pelas pesquisas eleitorais até aqui, tal possibilidade existe concretamente com a candidatura de Lula, pela clara capacidade e liderança deste cidadão produzido  no engajamento total ao lado dos dominados e explorados, em luta democrática legítima por emancipação social e política desde os anos 1980. Além da legitimidade conquistada, Lula já demonstrou capacidade de nos liderar e ser eleito novamente, dada a frente ampla de forças políticas, complexa, sem dúvidas, mas que lhe dá suporte neste momento eleitoral decisivo.

O fato é que estamos diante de um cenário real em que já foram abertas “as porteiras para a boiada passar”, na fala do ex-ministro bolsonarista do meio ambiente, em reunião ministerial no Palácio do Planalto. A mensagem expressa sinteticamente o que virou política do governo federal, pois a “boiada” está literalmente passando, atropelando e desconstruindo tudo, estimulando garimpeiros e grileiros, com seus capangas desmatadores, a invadirem e colonizarem, tanto Terras Indígenas como Áreas de Proteção Permanente. O resultado está em imagens e dados extremamente alarmantes de focos de incêndio e de áreas desmatadas, talvez sem retorno possível. A integridade dos sistemas ecológicos do grande bem comum planetário, que nos cabe cuidar e que nos dá condições de vida,  está profundamente ameaçada.

Chamo a atenção para a tal “abertura de porteiras” pois propiciou um verdadeiro “estouro da boiada”, avançando destrutivamente sobre tudo e todos, tanto sobre conquistas democráticas de direitos e de políticas  nos mais diferentes setores e territórios da economia e da sociedade, bem como sobre os órgãos de transparência e controle do poder estatal que vinham de algum modo operando.

Gostaria de alertar para o fato que, com a eleição, estamos decidindo entre o avanço e o mergulho coletivo na barbárie, de uma sociedade de muito poucos, protegidos em fortalezas armadas, ou por uma reversão de rumos, com criação de bases mínimas de democracia ecossocial inclusiva e de direitos. Mas precisamos ter claro que esta segunda possibilidade só poderá acontecer com muita ação cidadã para a eleição e no após ela. Trata-se da diversidade das cidadanias ativas e de eleitas e eleitos firmarem um compromisso entre si, mesmo que seja simbolicamente, de se engajar por formas participativas e transformadoras de governar e legislar. Isto  nos planos e  níveis em que somos chamados a decidir: Presidente do Brasil e composição do Congresso Nacional, governos estaduais e composição das Assembleias Legislativas. Para isto, temos que tomar a iniciativa ampla e decidida, exercendo o papel insubstituível em democracias que cabe às cidadanias, muito mais que o voto de tempos em tempos.

Sem dúvida, existem diferentes visões e disputas no seio da cidadania. No entanto, considerando a todas e todos com os mesmos direitos de igualdade na diversidade,  liberdade  e participação política, temos que evitar que o ódio e a intolerância de uma parte significativa do colégio eleitoral brasileiro, que continua apoiando o inominável e suas propostas de soluções autoritárias, não nos contaminem e levem a fazer o mesmo.  Como analista, acho possível que nossos votos derrotem democraticamente a alternativa de mais autoritarismo, afastando o tal, os militares cúmplices de seu governo e presentes nos mais diversos órgãos estatais,  assim como os milicianos e pastores mercadores.

A democracia depende do quanto as cidadanias se pautarem por ela, vendo nela um modo fundamental de convívio na diversidade e de enfrentamento das nossas estruturais exclusões, destruições e injustiças ecossociais. O tempo da democracia é aquele que lhe imprimirmos como cidadanias ativas. Será sempre o tempo coletivamente compartilhado, vivido e defendido. As tarefas se renovam e ampliam quanto mais potente é a própria democracia. Ela não é um fim, mas um meio sobre o qual podemos ter controle total pela participação.  Afinal, instituintes e constituintes são as cidadanias, como seu direito originário. Nunca o Estado!

domingo, 21 de agosto de 2022

Democracia, Cidadanias e Religiões

O que me faz entrar na questão das religiões é o fato que, queiramos o não, elas ocupam um  lugar muito importante na vida coletiva em todo mundo. Não dá para simplesmente ignorar do ponto de vista da análise e, sobretudo, do que podem implicar para as sociedades, as suas culturas e as suas evoluções políticas. No campo de ativismo e análise em que me situo, tendo como referência a ação cidadã para democracia ecossocial transformadora, a questão tem a ver com a centralidade que atribuo para a igualdade cidadã na diversidade, assentada no sentido de pertencimento coletivo, com cuidado, convivência e compartilhamento entre todas e todos, assim como com a natureza. Aliás, o poder/Estado para ser democrático tem que ser republicano e laico, por definição. Mas precisa saber reconhecer e valorizar a diversidade cidadã, toda forma de diversidade, como condição do republicanismo que deve praticar.

Deste ponto de vista, não dá para excluir grupos por suas opções, crenças e tradições religiosas, sejam quais forem, desde que se assentem nos princípios acima. Sabemos que não é bem assim na vida real. Pelo contrário, um dos grandes desafios para as democracias são as “guerras santas”, para impor um regime fundado em uma determinada crença religiosa como verdadeira. Isto, normalmente, implica em uso de força violenta e destruidora das próprias das bases de vida coletiva e, no geral, leva a formas de regimes autoritários  e até a expansões e conquistas colonizadoras de outros povos, em nome de doutrinas e deuses considerados superiores e únicos, como a história humana está cheia de exemplos.

Trago esta questão ao aprender,  como ativista cidadão, o quanto as religiões também fazem parte da igualdade na diversidade e que a disputa política não pode ser avaliada pela  orientação religiosa ou mesmo o ateísmo confesso. Afinal, é parte dos direitos de cidadania ter a liberdade de escolha, inclusive aquelas de foro íntimo,  como são as religiões. Mas não é isto  o que hoje está instalado de forma intensa no Brasil  pelo presidente e seu bando de pastores ministros, alimentando uma espécie de guerra santa  em apoio ao armamento amplo,tendo a a violência como norma e o poder autoritário como condição. No círculo em torno ao Presidente Bolsonaro, incluindo a sua esposa, há uma clara negação de tradições culturais e religiosas outras, que não a sua, com as quais precisamos democraticamente conviver e valorizar,, especialmente de povos originários e tradicionais, bem como da enorme riqueza constitutiva das identidades da grande população negra do nosso país.  O exclusivismo de uma forma de cristianismo está sendo mobilizado especialmente por alguns pastores, verdadeiros mercadores da fé, pois seu bolso e o acúmulo de riqueza, com dízimos, acaba sendo o motivo principal de sua atuação política. Felizmente, já há posicionamentos públicos,  vindo de setores do interior das  próprias religiões, que denunciam tal sectarismo como nada religioso e até negador da própria relição, por incitar o ódio e, assim,  contaminar a disputa política atual.

Em princípio, toda religião pode ser legítima como expressão de uma visão da vida e do mundo e como fé pessoal a dar sentido ao próprio viver. Sem dúvida, as grandes tradições religiosas são elaborações complexas em termos filosóficos e teológicos, com grande influência na evolução da humanidade. Mas o fazer e viver coletivamente em democracia implica em conviver com diferenças e diversidades de opções em todos os campos, nunca os exclusivamente  políticos. O que destrói democracias é sempre a imposição de um único modo de ser e viver. Afinal, democracia é um processo contraditório que tem a virtude de transformar as lutas, as mais diversas, em possíveis forças de construção. Mas para isto, sempre aceitando mutuamente o princípio de convivência dos diversas e até dos contrários, em todas as formas de relações e concepções.

Como nos lembra Tarso Genro[1], argumentar pela fé vai contra a razão democrática e submete a política à religião. Isto está contaminando o processo eleitoral atual no Brasil. Aliás, já temos um verdadeiro “bloco ideológico-religioso-moral” formado pela bancada evangélica, um dos maiores blocos de interesses que atuam no Congresso acima das opções partidárias[2].  Trata-se de um fundamentalismo que alimenta a intolerância religiosa como prática do poder. Isto está acontecendo no mundo todo, até como mais gravidade em alguns países, que nem preciso lembrar aqui. É alarmente o nível com que se implantou no Brasil e como está impactando o processo eleitoral[3].  Precisamos ter presente tal ameaça e diagnosticar seu poder destruidor do sentido de ser parte de um mesmo povo. Ou isto não tem sentido? Será que existe alguma forma de homogeneidade, seja cultural, racial, sexual, religiosa ou política, que não seja imposta pela força, como regime autoritário de regulação social?

As cidadanias ativas, em sua diversidade, estão sendo desafiadas a encarar este problema não como de opção religiosa em si, mas como uma forma de alimentar o ódio e estimular a violência contra adversários políticos, inaceitável como forma de disputa eleitoral democrática. Para constituição dos governos e legislativos, com mandatos legítimos delegados pela cidadania em sua diversidade, é fundamental que princípios comuns entre todas e todos estejam na base das motivações de participar. Só assim conseguiremos promover a democracia capaz de ter vitalidade na busca da inclusão de todas e todos nos plenos e iguais direitos de cidadania, sem discriminações.

Volto aqui a uma grande ativista que irrompeu com força na histórica virada política democrática,  muito recente,  que as esquerdas conseguiram na Colômbia, elegendo Petro presidente e Francia Márquez como vice. Colômbia teve um século inteiro de governos de direita que nunca deixaram de usar as formas mais violentas e até assassinatos  de todos que se opunham politicamente ao saque das riquezas naturais do país por uma  oligarquia agrária poderosa, respaldada por forças militares e paramilitares sempre a seu serviço. Isto foi  muito bem retratado de forma genial nas obras de Garcia Marques, ganhador do premio Nobel de literatura. Sem dúvida, vale registrar a grandeza de Petro em chamar a Francia Márquez para compor a chapa vitoriosa. Petro vem de uma engajamento desde jovem na mudança de tal estrutura,  primeiro através da guerrilha, e, depois,  apostando nas virtudes do ativismo cidadão e na construção democrática num longo processo de conquista de legitimidade representativa. Francia vem do ativismo direto, desde a comunidade quilombola, “onde sua mãe enterrou seu umbigo”, como costuma afirmar.

Francia Márquez aprendeu e ensina que “Resistir não é aguentar” e afirma que “Sou porque somos”, porque pertencemos a um coletivo desde o nascimento, ressaltando assim a ética da interdependência numa comunidade solidária, em um espaço físico e uma cultura para cuidar. Enfim, um território humano de cidadania – como defino - para viver e pensar, revindicando os direitos inerentes tal modo de viver. E por aí chega à proposta simples do “viver saboroso”, em oposição a tudo o que representa formas de imposição e dominação, destruição, violência, mercantilização de tudo e acumulação de riqueza, em detrimento de gente e da natureza. Nas suas palavras “...viver saboroso é viver sem medo, em dignidade, em liberdade, em comunidade, com direitos plenos e em relação harmônica com os territórios”. [4]

A liberdade de opção religiosa é um direito fundamental, não pode ser uma imposição política de uma delas para o conjunto da sociedade. Isto é uma forma de autoritarismo e destrói o convívio social, base de democracias.



[1] GENRO, T. “O Deus dos desgraçados”. Boletim do blog Combate Racismo Ambiental. 17/08/2022

[2] EVANGELISTA, Ana Carolina. Piauí, Rio de Janeiro.

[3] OSAVA, Mario. “Religión, economia y democracia em la guerra electoral de Brasil”. Other News. 19/08/2022

[4] As traduções do espanhol para o português  são minhas. Foram extraídas de um inspirador texto de Iván Olano Duque, que produziu um texto maravilhoso sobre este exemplo para toda a cidadania de ativismo cidadão de engajamento total, não importa onde estejamos e o que enfrentamos, que Francia Márquez carrega como seu modo de ser, vestir, falar e celebrar. Ver: OLANO DUQUE, Iván. “La Izquierda en el Gobierno. Francia Márquez: de la resistência al poder (I) e (II). Bitacora, Montevideo, nº 950, 15/08/2022.

domingo, 14 de agosto de 2022

"Planalto x Planície"

 A imagem, que sintetiza de forma simbólica o nosso dilema coletivo no Brasil, é o fosso enorme que separa o poder estatal e suas políticas –  representado pelo Palácio do Planalto, Congresso e Judiciário – das e dos que lutam diariamente para levar a vida no chão da sociedade – as “planícies” de nosso imenso país.[1] Aponta uma distância entre o poder político e a cidadania, ou seja, uma forma de agir do governo e do parlamento que tende a ignorar ou minimizar a cidadania e seu poder instituinte e constituinte das democracias. Afinal, democracias  de alta intensidade e capacidade transformadora  só podem vir da sociedade, onde vivemos todas e todos as cidadanias desafiadas constantemente a se reconhecer, a partir de sua diversidade e pluralidade, como titulares de direitos comuns de liberdade, igualdade, solidariedade coletiva e participação política.

Uso o “Planalto x Planície” como uma expressão síntese qualificadora e de fácil comunicação e apreensão por todo mundo, mas não como um conceito analítico. Em termos políticos, mais do que um espelho da realidade, faz referência a uma estrutura e a uma herança que muda no modo de se manifestar, mas continua reproduzindo o de sempre, em novas formas. Tal estrutura de separação se forjou desde o processo histórico de conquista e colonização, subordinação e morte de povos originários, destruição extrativista e economia escravocrata voltada para o nascente capitalismo europeu. Afinal, o Estado chegou antes da sociedade, veio de fora como conquistador, criando fortalezas militares antes da sociedade e da economia. Aponto tal imagem aqui para entender a conjuntura atual que atravessamos, como uma espécie de alerta ao que não podemos esquecer nunca se sonhamos com outro futuro, com democracia efetiva, ecossocial transformadora para nosso país.

Não é demais afirmar e reafirmar o óbvio, que estamos submetidos a um modo de exploração que se renova, mas não muda, em benefício de poucos e a serviço do sistema do capitalismo, hoje dominado pela globalização neoliberal das grandes corporações econômicas e financeiras. Tornamo-nos formalmente “independentes” 200 anos atrás, mas para renovar e ampliar laços de “dependência” a novos impérios dominantes na geopolítica mundial eurocêntrica. E assim continuamos até hoje, apesar de termos tido alguns surtos esporádicos de fazer valer um pouco mais nossa soberania como povo. Neste sentido, temos pouco a celebrar em dois séculos de independência, efetivamente nunca conquistada.

Mas nos fortalece lembrar que sempre surgiram tentativas de resistir e mudar, umas com maior impacto do que outras, porém sem grandes transformações no Estado/poder e, consequentemente, na economia/mercado. A luta contra a escravidão e o racismo ilustra bem este drama. O tal fim legal da escravidão em 1888 foi precedido de lutas por séculos pelos próprios escravos. A proclamação do fim da escravidão, de fato, não foi uma efetiva emancipação social e política, mas só o fim legal da escravidão aberta. As e os “libertados” e seus descendentes continuaram excluídos e condenados a viver em situações de injustiça ecossocial estrutural, com miséria e pobreza, falta de acesso a direitos de todo tipo, combinadas com racismo, formando enormes “periferias” urbanas e rurais. Mesmo trabalhar e viver em situações análogas à escravidão não acabaram efetivamente. Temos formas de trabalho escravo que se repetem no presente. O combate ao racismo estrutural, como forma de exclusão e violência social, política e econômica, protagonizado por potentes movimentos negros, é hoje um combate ao maior “câncer” a nos destruir, corroendo o próprio sentido comum de “pertencimento”, que dá a liga e o sentido de viver em coletividade entre todas e todos.. Enfim, o movimento contra o racismo estrutural nos alerta cotidianamente que estamos longe ainda de democracia efetiva, que só pode ser para todos ou nem democracia pode ser considerada.

Um outro polo de lutas que importa assinalar vem das resistências dos povos indígenas originários contra a violenta conquista e a colonização dos seus, algo ainda acontecendo e até com mais intensidade nos anos recentes. Os povos indígenas são uma expressão heroica, simbólica e potente de modos de ser e viver como coletividades e em relação de respeito com a natureza, em seus territórios. Apesar da dizimação sofrida por esses povos ao longo de cinco séculos, suas concepções e modos de viver tem muito a nos inspirar ainda hoje sobre possíveis rumos diferentes para o país como um todo, de cuidado, convivência e compartilhamento, entre nós mesmos e com a natureza. Os povos originários, com suas persistentes lutas, quase sempre minimizados, são um alerta vivo e uma  barreira de resistência ao assalto de garimpeiros, grileiros e desmatadores, em geral com conivência do Estado.

Existem muitas outras expressões poderosas de cidadania no chão da sociedade a questionar e enfrentar a lógica destrutiva em que estamos mergulhados e que se revelam com capacidade de fortalecer a democracia. Só lembro que, para criar o contexto da redemocratização acabando com a ditadura militar, foram estratégicos o renovado movimento sindical surgido no ABC paulista e irradiado para outras áreas urbanas e rurais, a partir do final dos anos de 1970 e durante as décadas de 80 e 90. Ao sindicalismo se somam o MST e o MAB, seguidos pelos Sem Teto e a enorme diversidade de identidades e vozes das periferias urbanas e rurais. Neste contexto, também se destacam as diversas expressões do feminismo contra o patriarcalismo estrutural que impregna todas as formas de dominação e negação de direitos iguais em nosso país. Aí cabe sublinhara potência que vem adquirindo as vozes do movimento LGBTQIA+. A todas estas expressões de identidades e vozes de cidadania ativa, a partir dos anos 2000 vieram se somar as “Marchas das Margaridas” das florestas, dos rios e dos campos.

Poderiam e mereceriam ser lembradas muitas outras expressões potentes de novos movimentos e organizações sociais. Mas este não é este meu objetivo aqui. Gostaria de celebrar este ressurgimento de múltiplas formas de ser e agir como cidadania, tornando potência transformadora que se alastrou e pode crescer ainda muito mais. Afinal, abriu um maior espaço no seio da sociedade civil e impôs visibilidade e reconhecimento político à diversidade de cidadanias ativas em nosso país. Além disto, gerou um forte imaginário mobilizador de que mudanças são possível, hoje referência para a própria sociedade. São conquistas reais com impacto, mas  continuamente ameaçadas pelas forças do atraso, bem presentes no cenário político.

Enfim, a sociedade se moveu para derrotar a ditadura militar e implantar a democracia como um possível processo virtuoso de superação de nossa colonialidade, renovada ao longo dos séculos, em benefício dos “donos de gado e gente”. Mas é intrigante, que com os governos democráticos, para financiar políticas sociais mais includentes, tenhamos voltado a depender mais e mais de exportações de commodities minerais e agrícolas, reprimarizando a economia para atender o voraz capitalismo global.

Diante deste quadro, pretendo destacar a contradição que está embutida na disputa eleitoral deste 2022 do poder legal, a ser delegado pelo voto da cidadania como um todo. Estamos diante do risco de terminar simplesmente contando para a vitória eleitoral de nosso candidato presidencial – importante no momento para nos livrar das ameaças do bolsonarismo, sem dúvida – mas insuficiente. Conquistar hegemonia eleitoral na forma de voto da maioria da cidadania não é uma garantia por si só de participação ativa e forte das cidadanias reais no controle e pressão sobre o exercício do poder estatal depois da posse.

Para buscar mudanças de rumos no modo de fazer política e avançar nas conquistas de  direitos plenos, com enfrentamento das injustiças, exclusões e destruições ecossociais, precisamos propostas e compromissos mais claros desde agora. Tal tarefa só pode ser iniciativa das próprias cidadanias ativas, criando impacto tanto na campanha eleitoral, nos candidatos, como no após, através de um imaginário coletivo mobilizador por mudanças inadiáveis. Temos algum tempo, mas será que conseguiremos impactar?

De toda forma, não podemos deixar a outra hipótese acontecer: o “mito”, de vocação autoritária e fascista, conseguir uma vitória e renovar seu mandato em eleição controlada pela Justiça Eleitoral! Ou, então, mesmo sendo pouco viável no quadro real de relações de forças políticas, o Bolsonaro liderar um golpe autoritário contra a institucionalidade ainda existente, já deteriorada desde 2016.

Enfim, o que conseguirmos de mobilização, tomada de ruas com grandes manifestações – o palco de expressão por excelência das cidadanias[2] vivas – é o acontecimento político e conjuntural que precisamos produzir o quanto antes. O desafio não é só ganhar a eleição, mas ser capaz de conformar o governo, as leis e as políticas, plantando, ao menos, as sementes de transformação ecossocial democrática. Nisto reside a essência de uma democracia ecossocial radical em termos humanos de compromisso de inclusão de todas e todos, em busca de um outro futuro de bem viver, saboroso de viver.

O problema mais premente que temos – a derrota das propostas autoritárias e fascistas – tem limitantes democráticos instituídos pelo pacto conciliador para a governabilidade. Reconquistada nos anos 1980 e institucionalizada em 1988, nossa democracia nasceu com limites claros sobre seu alcance devido ao peso do “Centrão”. Ele  tem sido o pêndulo da democracia, pois as forças que o compõe apoiam um lado ou outro,  sempre em função dos interesses que representam e que lhes favoreçam no controle dos recursos do Estado. Não tem identidade programática e nem partidária firme. Trata-se de formação e atuação de grandes lobbies de bancadas de interesses corporativos e clientelistas com representantes em diferentes partidos – bancada ruralista, da mineração, dos bancos, dos pentecostais...Votam em bloco no Congresso e disputam cargos no governo para os seus indicados.  

O Centrão tem sido visto como indispensável para a governabilidade,  à direita e à esquerda, fazendo os governos reféns dele. Ou seja, governar com o Centrão é pactuar com as forças que limitam as propostas de democracia com intencionalidade transformadora do edifício estrutural de privilégios, sob forma de direitos pétreos adquiridos, dos “donos” de quase tudo no capitalismo a la brasileira.

Como conclusão, toco no cerne da questão imediata nesta conjuntura eleitoral: as alianças em torno a Lula para a possível vitória eleitoral, onde a conciliação com forças do atraso está bem representada. A isto se soma uma falta, até agora, de maior protagonismo nas ruas das cidadanias ativas portadoras de democracia como alternativa potente, tanto contra o que representa Bolsonaro e as forças que o sustentam, como para um possível novo Governo Lula não sofrer as amarras do Centrão. Temos que impedir Bolsonaro, mas sem reproduzir a sina do “Planalto x Planície”, numa versão aparentemente remodela, mas continuando ser o mesmo câncer.

Felizmente, no dia 11 deste mês houve uma expressão pública a destacar, através de multiplicidade de atos de apoio ao manifesto em defesa da democracia. Isto aconteceu nos principais centros urbanos de todo o país. Devemos apostar que é possível algo mais, pois mesmo com tempo curto é possível cimentar  a diversidade de cidadanias ativas em compacta força democrática, conquistando mais espaço nos governos estaduais e seus legislativos, e ainda mais no Congresso Nacional. Aliás, alguns fortes movimentos sociais já tomaram tal iniciativa de formar bancadas fortes com representação surgida de seu seio. Isto tem tudo para ser estratégico na busca de compromisso das forças aliadas em torno a Lula. Mas também é fundamental na inviabilização do projeto de Bolsonaro e ainda debilitar as forças sub-reptícias do Centrão, que tem impedido qualquer avanço de democracia transformadora.

 



[1] A expressão forte “Planalto x Planície” foi cunhada por Herbert de Souza, o Betinho, que animou a memorável  “Campanha da Fome”, através da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, nos anos 1990, com grande impacto no processo de redemocratização pós 1988.

[2] Ao me referir a  “cidadanias”, algo constante nas minhas análises como ativista, estou considerando as manifestações coletivas das diversas identidades e vozes de cidadania. Uso a expressão para apontar que só poderemos conquistar igualdade se considerarmos que ela implica em reconhecer as diversidades não negadoras de igualdade, ou seja um pluriverso de cidadanias, como nos lembra Boaventura  de Souza Santos em suas análises e propostas.

domingo, 7 de agosto de 2022

Por o Cuidado no Centro dos Debates e das Propostas

 


O ódio violento e excludente se instalou em nosso seio de forma aberta, incentivado pelo atual governo, com poderosa difusão de fakenews nas redes sociais e, inclusive, com rearmamento dos grupos mais radicalizados. Hoje somos confrontados com forças que se sentem legitimadas em demonstrar seu racismo, seu patriarcalismo, seu desprezo aos excluídos de todos os tipos. A além disto, trata-se de forças que abertamente incentivam a revitalização de um colonialismo interno, passando por cima de direitos de povos indígenas, comunidades tradicionais e todas as áreas de algum modo protegidas, e incentivam o assalto sem limites aos recursos naturais, com desconstrução das suadas conquistas ecossociais das últimas décadas. A disputa eleitoral está marcada por este cenário, com muitas incertezas sobre o que pode acontecer.

Não podemos cair na tentação de simplesmente responder às ameaças e aos ódios que estão no ar. Isto é o que as forças adversárias querem, nos chamam para o seu espaço. A afirmação eloquente de um imaginário democrático ecossocial alternativo é o melhor antídoto, pois aponta outro modo de pensar nosso presente e futuro como sociedade, a partir dos territórios em que levamos nossas vidas. Mais do que esperar indicações dos arranjos e alianças políticas e partidárias, necessárias  na conjuntura, que sustentam a candidatura de Lula, cabe a nós, as cidadanias em ação, apontar os caminhos possíveis na reconstrução de uma democracia fortalecida em sua capacidade de transformação. Por isto, aos representantes que vamos eleger, precisamos demonstrando desde já o que as propostas implicam: assumir abertamente o compromisso de ser e praticar um governo participativo, o mais radicalmente possível.

Diante do ódio vigente e sua força excludente de grandes maiorias, temos que levantar a bandeira do cuidado, do reconhecimento  e do pertencimento. Trata-se de afirmar como central o que é fundamental para as pessoas poderem levar a vida: a família, a comunidade, o coletivo, como enfaticamente afirma a Vandana Shiva[1]. Eu acrescentaria ainda o sentido de pertencimento ao território que habitamos como um bem comum. Cuidar remete a conviver e compartilhar. São princípios éticos, sem dúvida, mas também relações e práticas sociais que vivemos no dia-a-dia de algum modo, mais no meio popular, das maiorias deste país. Aliás, se algo redescobrimos com a recente pandemia, com a necessidade de isolamento, foi a dependência de uns e umas de outros e outras, com a necessidade de nos cuidar mutuamente para viver. O cuidar se revelou fundamental, como um condição da vida. Revalorizamos o cuidado da casa, da alimentação, de crianças, de idosos, de nós mesmos, jovens e mulheres e homens em diferentes idades. Passamos a olhar de outra forma o cuidado profissional o indispensável que são as equipes de atendimento da saúde e, portanto o SUS. Também sentimos, especialmente as famílias com crianças e adolesces, o valor insubstituível dos sistemas públicos educacionais como cuidado essencial no desenvolvimento das novas gerações. Os chamados serviços essenciais tem este nome pois são de cuidado coletivo. Acho que olhamos muitos profissionais – como lixeiros, catadores, motoristas de transporte público e tantos outros – com quem antes até evitávamos de manter contato,  como realizando um trabalho fundamental para o todo da coletividade.

Em termos sintéticos, trata-se de buscar e propor um imaginário mobilizador para uma sociedade, uma economia e um poder que tenham no centro a arte de cuidar das pessoas em sua totalidade e de cuidar igualmente da integridade dos sistemas ecológicos da natureza, que dá condições de vida à humanidade como um todo, num planeta compartilhado. O tamanho do desafio não é desculpa para as cidadanias ativas não fazer propostas e debater, como parte do processo eleitoral e enfrentamento do bloco de forças do autoritarismo e ódio. Mas, sobretudo, precisamos pensar no que vem depois. Trata-se, sem dúvida de uma arte, de engenhosidade coletiva, não de uma lógica ou estrutura para assaltar a natureza e explorar ao máximo o trabalho em benefício próprio. Isto é o extremo oposto de uma proposta de saída autoritária em função de privilégios e da competição individual na busca de seus interesses, sem limites e violenta até,  defendendo que vençam as e os que são mais fortes, não importando quanto excluírem e o tamanho da destruição ecossocial que produzem.

Como enfaticamente afirmei na minha postagem anterior neste blog, não podemos desenvolver debate e propostas estratégicas nossas desta natureza sem ter presente a importância e prioridade de urgências e emergências que teremos para enfrentar no depois, tanto os governos e partidos da coalizão, as instituições públicas nos diferentes níveis, como nós mesmos, cidadanias ativas, uma vez vitoriosos na disputa eleitoral. Não ver isto, para mim,  seria uma negação de tudo que aprendi compartilhando e lutando com ativistas por cidadania e direitos no Brasil e no mundo. O que será importante é encarar as urgências e emergências com o cuidado no centro, um cuidado democrático transformador, combatendo injustiças ecossociais, mas empoderador e emancipador, sustentável, criando resiliência e prática da liberdade e vivência de plenos direitos para atingidos. A perspectiva estratégica deve ser incluída como proposta e debate desde agora, na sociedade civil e na política.

 

 

 

 

 



[1]Vandana Shiva, em entrevista recente insiste na recuperação política da noção de “reconhecimento” e assim lembra a família, a comunidade e o coletivo. Ver: Vandana Shiva. “Os alimentos são importantes demais para serem deixados nas mãos de milionários”. Newsletter IHU, São Leopoldo, 02/08/2022.