A campanha eleitoral no Brasil entrou naquela fase decisiva. Não há maneiras de evitá-la. Está nas ruas, nos bares, no trabalho, nas igrejas e templos, nas redes e nos meios de comunicação. Invadiu os nossos lares. Mas muito antes disto e corroendo as bases da vida, aqui e no mundo afora, haviam sido implantados processos reais de destruição ecossocial e formas de barbárie sufocante com ameaças explícitas à democracia, onde os efeitos da pandemia, da crise econômica, da disputa geopolítica e da mudança climática se somam às situações históricas, econômicas e sociais de cada país. Em geral, grande desemprego, precariedades múltiplas, pobreza e, sobretudo, a fome se espalham pelo mundo em forma de avalanche.
A nossa especificidade brasileira é particularmente grave, com um truculento presidente disputando a reeleição, mas com ameaças à própria institucionalidade democrática. Trata-se de alguém com viés fascista, apoiado por uma gangue fanática e armada disposta a tudo, além de mercadores da fé popular e de um resiliente setor autoritário e racista, existente no seio da sociedade, que se assume como tal. Bolsonaro vem negando o desastre ecossocial implantado no país e a ampliação da fome entre os mais pobres, trauma vivido por 33 milhões de brasileiros, e mais da metade da população total em estado de insegurança alimentar no dia a dia.
O que decidiremos, como cidadanias, é fundamental para nós e, sem dúvida, para o mundo, dada a importância estratégica do país nas relações geopolíticas. Aí estamos como povo brasileiro, com um mês e alguns dias decisivos para escolhermos quem e que grupo poderá legitimamente definir, a partir do Estado e do Congresso Nacional políticas públicas diante de tal situação. Resumidamente, a questão para nós é: será uma eleição clara e legítima ou uma nova ruptura institucional com uma ditadura reinventada? Uma tal pergunta está no ar como ameaça, tornando ainda mais grave a situação imediata.
Em qualquer análise, este cenário não pode ser ignorado. O que decidirmos contribuirá, de alguma forma, para o panorama global. Mas não podemos contar com o mundo para a tarefa que é primordialmente nossa, exercendo o poder do voto livre. Temos que, de um lado, derrotar de forma contundente a alternativa que nos quer submeter a seus interesses privados, mergulhando o país inteiro, cada vez mais profundamente, na barbárie e nos seus trágicos processos de exclusão e destruição ecossocial. De outro lado, temos que apostar na vitória eleitoral de quem aponta para a retomada de um processo democrático virtuoso, evitando o pior no imediato. É difícil e exige muita ação cidadã, mas sempre possível. A vitória será ainda melhor, se a escolha significar o reimplante no seio da sociedade das sementes da esperança de um futuro diferente e “saboroso” de viver, com transformações ecossociais democráticas. Pelas pesquisas eleitorais até aqui, tal possibilidade existe concretamente com a candidatura de Lula, pela clara capacidade e liderança deste cidadão produzido no engajamento total ao lado dos dominados e explorados, em luta democrática legítima por emancipação social e política desde os anos 1980. Além da legitimidade conquistada, Lula já demonstrou capacidade de nos liderar e ser eleito novamente, dada a frente ampla de forças políticas, complexa, sem dúvidas, mas que lhe dá suporte neste momento eleitoral decisivo.
O fato é que estamos diante de um cenário real em que já foram abertas “as porteiras para a boiada passar”, na fala do ex-ministro bolsonarista do meio ambiente, em reunião ministerial no Palácio do Planalto. A mensagem expressa sinteticamente o que virou política do governo federal, pois a “boiada” está literalmente passando, atropelando e desconstruindo tudo, estimulando garimpeiros e grileiros, com seus capangas desmatadores, a invadirem e colonizarem, tanto Terras Indígenas como Áreas de Proteção Permanente. O resultado está em imagens e dados extremamente alarmantes de focos de incêndio e de áreas desmatadas, talvez sem retorno possível. A integridade dos sistemas ecológicos do grande bem comum planetário, que nos cabe cuidar e que nos dá condições de vida, está profundamente ameaçada.
Chamo a atenção para a tal “abertura de porteiras” pois propiciou um verdadeiro “estouro da boiada”, avançando destrutivamente sobre tudo e todos, tanto sobre conquistas democráticas de direitos e de políticas nos mais diferentes setores e territórios da economia e da sociedade, bem como sobre os órgãos de transparência e controle do poder estatal que vinham de algum modo operando.
Gostaria de alertar para o fato que, com a eleição, estamos decidindo entre o avanço e o mergulho coletivo na barbárie, de uma sociedade de muito poucos, protegidos em fortalezas armadas, ou por uma reversão de rumos, com criação de bases mínimas de democracia ecossocial inclusiva e de direitos. Mas precisamos ter claro que esta segunda possibilidade só poderá acontecer com muita ação cidadã para a eleição e no após ela. Trata-se da diversidade das cidadanias ativas e de eleitas e eleitos firmarem um compromisso entre si, mesmo que seja simbolicamente, de se engajar por formas participativas e transformadoras de governar e legislar. Isto nos planos e níveis em que somos chamados a decidir: Presidente do Brasil e composição do Congresso Nacional, governos estaduais e composição das Assembleias Legislativas. Para isto, temos que tomar a iniciativa ampla e decidida, exercendo o papel insubstituível em democracias que cabe às cidadanias, muito mais que o voto de tempos em tempos.
Sem dúvida, existem diferentes visões e disputas no seio da cidadania. No entanto, considerando a todas e todos com os mesmos direitos de igualdade na diversidade, liberdade e participação política, temos que evitar que o ódio e a intolerância de uma parte significativa do colégio eleitoral brasileiro, que continua apoiando o inominável e suas propostas de soluções autoritárias, não nos contaminem e levem a fazer o mesmo. Como analista, acho possível que nossos votos derrotem democraticamente a alternativa de mais autoritarismo, afastando o tal, os militares cúmplices de seu governo e presentes nos mais diversos órgãos estatais, assim como os milicianos e pastores mercadores.
A democracia depende do quanto as cidadanias se pautarem por ela, vendo nela um modo fundamental de convívio na diversidade e de enfrentamento das nossas estruturais exclusões, destruições e injustiças ecossociais. O tempo da democracia é aquele que lhe imprimirmos como cidadanias ativas. Será sempre o tempo coletivamente compartilhado, vivido e defendido. As tarefas se renovam e ampliam quanto mais potente é a própria democracia. Ela não é um fim, mas um meio sobre o qual podemos ter controle total pela participação. Afinal, instituintes e constituintes são as cidadanias, como seu direito originário. Nunca o Estado!