A democracia brasileira estava necessitando de um momento assim, carregado de esperança e energia democrática, como foi a festa da posse no dia 1º de janeiro e todo o processo vivido ao longo da semana que passou. Quase esquecemos que o inominável, um tipo novo de “fugitivo”, está escondido nos EUA. Até que foi bom. Com a sua vergonhosa ausência, abriu-se a possibilidade de criar a cena mais emblemática da posse. Um grupo pequeno representando o heterogêneo povão brasileiro subiu a rampa do Palácio da Alvorada com Lula e passou a faixa presidencial para ele, ao lado de Jana com a cachorra nos braços. Foi uma sinalização emocionante de mudança de rumo em direção da centralidade do cuidado com o povo em sua diversidade, como tarefa fundamental da democracia.
Os discursos de Lula e de boa parte de seus ministros,
empossados durante a semana, recarregam as nossas baterias, sem dúvida. Sábios
em termos políticos como o líder Lula, feito na luta, dão rumo, convocam, entusiasmam,
conseguem arregimentar muita gente competente e legítima em torno de um projeto
político compartido, como parece ser. No entanto, não tem como fugir da
realidade de forças e disputas que conformam o poder real e o processo político
numa democracia. E, convenhamos, a nossa democracia, com a esdrúxula
“conciliação” como regra de governabilidade, é particularmente surpreendente em
produzir altos e baixos, avanços e recuos, com um “centrão” que, sem ser
atendido em suas paróquias e corporativas demandas, tem poder real de veto, não
declarado, mas exercido sempre que lhe parecer adequado. Ou seja, Lula comanda
o Poder Executivo, mas depende do Congresso – Câmara e Senado – para governar.
Até para compor a equipe de ministros. E tem que ter presente uma tarefa
inadiável por dentro do Estado, que depende sobretudo do governo: desmontar o
“Estado predador” por dentro.[i]
E, ao mesmo tempo, usar a força do Estado democrático para desmantelar de uma
vez as poderosas milícias rearmadas e expandidas pelo governo que terminou.
Disputar, ganhar e perder eleições é uma das condições
incontornáveis em qualquer democracia, que sempre implica em participação da
cidadania, de algum modo. Trata-se de um sinal de vida política e, portanto, de
possibilidades. Mas para continuar e se desenvolver, a democracia depende menos do Estado e mais da
participação cidadã, por bem ou por mal. Ou seja, a essência da sua vitalidade continua sendo a cidadania, única força legítima para
constituir governos e deslegitimá-los, num ciclo de disputa que nunca termina.
Só termina com ditaduras e fascismos destruidores. Mas é novamente a cidadania
que recria Estados democráticos que podem desmontar ditaduras e fascismos
usurpadores.
Bem, os grandiosos, belos e esperançosos discursos de Lula e
de grande parte de seus ministros sinalizam e animam. Mas para virarem
políticas consequentes não basta tal vontade declarada e boas intenções, faz-se
necessária desenhar e implementar políticas virtuosas, com equipes competentes
e comprometidas, recursos, muita ação de
ponta, nos territórios onde vivemos como cidadania. Mas tudo isto precisa ter
presente que o jogo democrático continua, só ganho se bem disputado até o fim
do tempo regulamentar de quatro anos que delegamos, para então reiniciar outro
jogo, que esperamos seja democrático e possível. E não basta ficarmos torcendo para que o
Governo Lula tenha time coordenado e faço gols e que juízes apitem certo nas
faltas e trapaças de jogadores escalados. O jogo real da democracia se faz
antes de tudo nas ruas, fora de palácios, pela permanente ação cidadã.
Aí a questão volta para o nosso colo: a vitalidade e
intensidade da democracia com Lula, líder de um time até surpreendente no
Executivo, depende de nós mesmos,
cidadania ativa brasileira. Não vão bastar os muitos espaços institucionais já
formalmente anunciados pelos primeiros atos assinados por Lula. É ótimo tê-los,
sem dúvida. Mas precisamos fazer a disputa no seio da sociedade civil, nos
territórios em que vamos levando a vida, nos espaços de trabalho, na família,
na cultura, no lazer, na mídia. Os
estragos do governo do “fugitivo” estão em nosso seio, com discurso de
ódio contaminando até núcleos religiosos. Temos diante de nós algo que foge ao
governo e não depende só de políticas, por mais virtuosas que sejam. Aliás,
para haver virtuosidade é imprescindível a nossa participação como cidadania
com toda a cumplicidade e cobrança possível. Não dá para temer, precisamos de
determinação democrática que respeita a diversidade e a diferença, mas buscar
as bases comuns do cuidado, convivência e compartilhamento entre todas e todos,
assim como com a natureza que nos dá condições de vida.
Sei que os anúncios já enchem a alma. Mas, não tenho dúvidas,
será um período governamental que vai demandar de nós mais do que podemos
imaginar. Para digerir a inevitável “conciliação” política que o Executivo deve
saber manejar, nós podemos criar o espaço das “aberturas” inesperadas e jogadas
na mesa das “negociações”, que toda democracia implica. Se o mote do governo é enfrentar
a desigualdade social e a mudança climática, a porta está aberta, pois estas
são exigências cidadãs democráticas bem enraizadas entre nós, são demandas em torno às quais nos
constituímos como diversidade de cidadania ativas, com nossas identidades e
vozes. Tomemos o mote dado e, em nome dele, empurremos, literalmente, o poder
estatal em tal direção, sem esmorecimentos ou recuos, mesmo amargando algumas
derrotas.
Enfim, mais do que o próprio Governo, o Congresso e o
Judiciário esperam, a democracia continua sendo uma tarefa política com
centralidade na ação cidadã para uma democracia ecossocial transformadora.
[i] Expressão apontada no profundo e instigante artigo do Vladimir Safatle “A desigualdade como bloqueio estrural”. Disponível em: Combate Racismo Estrutural, 30 de dezembro de 2022.
Cândido, tenho lembrado muito dos tempos de trabalho no Ibase diante desta conjuntura tão complexa quanto violenta que estamos vivendo. A prática da cidadania ativa nunca foi tão necessária.
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