domingo, 22 de dezembro de 2024

As Omissões em Nossas Análises de Conjuntura em 2024


Fazem parte do ofício de analistas de conjuntura tentar olhar o ano calendário que está acabando com uma espécie de avaliação do que de mais importante aconteceu, apontando possíveis feitos, com seus avanços e recuos. Nunca é demais lembrar que as análises dos processos políticos em curso são indispensáveis para ativistas para potencializar a sua ação, não só para saber quando e como agir mas sobretudo o que priorizar. Diante de um desafio assim, me dei conta de omissões ou questões invisíveis a seu modo estratégicas na perspectiva em que me engajo, de contribuir para uma democracia transformadora em busca de direitos ecossociais iguais na diversidade.

Faço parte de um pequeno grupo que nos damos uma tarefa regular de reuniões quinzenais de duas horas, online, para compartir percepções e visões da conjuntura. Já são mais de dois anos que nos reunimos, o que em si mesmo é um feito. Organizamos o grupo no período do isolamento compulsório. Nesta semana, fizemos a nossa última conversa do ano. Levantei para o grupo a questão das omissões em nossa abordagem como algo que está me intrigando. Na verdade, a própria questão como tal ainda está mal formulada para mim mesmo, mas me intriga. Nada como enfrentar minimamente o desafio nesta minha última postagem do ano no blog “sentidos e rumos”.

Isolado num sítio, minhas fontes de informação, além do grupo de conjuntura, são os noticiários que acompanho, mensagens e artigos acessados por whatsapp e email, algumas redes nacionais e internacionais que acompanho – especialmente debates sobre novos paradigmas civilizatórios – em alguns sites que consulto regularmente. Tenho feito leituras seletivas de livros e artigos que vem se acumulando, sempre em busca de aperfeiçoar o enfoque e as questões a abordar.

Como um balanço preliminar, reconheço que temos muito boas análises críticas do que está acontecendo na esfera da grande política e da econômica dominantes,  que circulam entre nós. Aqui cabe destacar o que chamo de encurralamento da nossa democracia, mesmo neste Lula III. Fundamental tal diagnóstico, mas insuficiente. São poucas ou quase inexistentes as análises do que está acontecendo no chão da sociedade, nos territórios, especialmente alguns sinais de iniciativas cidadãs virtuosas, criando raízes. Fazer análise de conjuntura não é só avaliar as relações de forças dominantes, onde se move o governo eleito e o que consegue ver. É também olhar para as muitas identidades e vozes de cidadanias ativas, as tradicionais e as novas. Caso contrário, ficamos fazendo análises passivas de processos dominantes, nunca de algo alternativo a apostar e fortalecer. Simplificando, faz falta um ativismo de cidadanias para vislumbrar algum caminho. De onde não podem vir políticas e transformações virtuosas – das estruturas e processos políticos e econômicos dominantes como os que temos – nada virá. Não adiante esperar. As eleições municipais deste ano mostraram o resultado possível e impacto que isto pode ter adiante diante da destruição de sentido de comunidade e convivência por parte da extrema direita e dos interesses corporativos hoje dominantes na política, com um difuso mas poderoso sujeito “mercado” a impor suas condições.

É urgente que nós mesmos, com uma perspectiva e preocupações de democracia ativa, mudemos ou ampliemos nossos olhares como analistas do Brasil e de suas conjunturas. Precisamos disto para contribuir a um ativismo coletivo capaz de plantar processos democráticos virtuosos.

O fato é que temos alguns sinais de ativismo e pistas importantes. Por exemplo, merece um destaque especial a resistência ativa de povos indígenas e quilombolas. Mas eles não só interpelam as estruturas de poder político estatal e o agressivo agronegócio e mineradoras. São ações territoriais que apontam o caminho necessário para cuidar de gente e da natureza. O mesmo se pode dizer da multiplicação de iniciativas territoriais de produção agroecológica, especialmente nas periferias rurais, mas não só pois começam a se multiplicar iniciativas deste tipo nas cidades. Temos o exemplo mais consolidado nos assentamentos do MST, mas fora as suas própias análises como movimento pela reforma agrária, parece que existem tabus entre outros analistas ativistas em abordar a questão. O certo é que entre as coalizões de cidadania mais ativa destacam-se as de agroecologia a nível nacional.

Aqui destaco a virtude existente nas redes urbanas de catadores de lixo. Estão no dia-a-dia das cidades, mas... pouco visíveis e valorizados, não passando de pessoas em luta por sobrevivência. Se formos mapear com mais rigor, veremos que muita coisa vem acontecendo sem ser valorizada como sinal virtuoso para um outro modo de nos organizar e viver.

Destaco ainda a vigorosa reação dos movimentos feministas à proposta de lei no Congresso em defesa dos estrupadores. A coisa está latente, mas não extinta. Mas não tivemos reação rápida e vigorosa de outros setores, especialmente diante da desconstrução de políticas sociais em nome do ajuste fiscal. Aliás, o tal arabouço fiscal é uma concessão inaceitável para o tal “mercado”, sugador de recursos públicos através de juros, benefícios e isenções, com fortunas acumuladas em poucas mãos, sem o justo imposto em nome do bem público.

Termino lembrando a surpreendente proposição do movimento VAT – Vida Além do Trabalho – com a ideia de redução da jornada de trabalho assalariado de 6x1 para 5x2. O novo é que se trata de uma iniciativa do enorme contingente de trabalho precário, até sem carteira assinada. Chama atenção o protagonismo de tal grupo visto como desorganizado, sem sindicato ou outra fora, mas demonstrando ativismo.

Tenho chamada a atenção em minhas postagens para o mal que a extrema direita plantou no sentido de combate ao sentido do viver em comunidade, com cuidado, convivência e compartilhamento. O tecido social mais básico foi esgarçado. Claro, solidariedade ainda existe, como a ocorrido na grande destruição das enchentes no RS, uma emergência que não pode esperar. Mas não podemos nos limitar a valorizar a solidariedade em emergências. Solidariedade coletiva deve estar no centro de qualquer democracia que importa.

Enfim, concluo dizendo que precisamos afinar nosso olhar de analistas e ativistas de cidadania  por processos democráticos transformadores, valorizando mais o que brota no chão da sociedade.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Não é Possível Enfrentar a Crise Climática Sem Mudança de Paradigma Civilizatório


Apesar da multiplicação de eventos climáticos extremos e devastadores pelo mundo, além do acumulado em termos de conhecimento científico de suas causas, não estamos conseguindo, como humanidade, enfrentar a mudança climática. Estamos caminhando para um beco sem saída, pois ainda não criamos as condições políticas para mudar profundamente a economia e o modo de vivermos. O problema é de ordem planetária, devido à interdependência como condição da integridade natural do funcionamento dos sistemas climáticos que regulam as condições de toda a vida na Terra. As responsabilidades dos povos, porém, são diferenciadas pelo acumulado ao longo da história. Mas os próprios territórios em que vivemos são diversos e exigem soluções também diversas, apesar de todos eles serem afetadas e nós juntos, de algum modo, pela mudança climática.

Desde a Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável, no Rio, em 1992, quando foi acordada a Convenção Sobre o Clima, já foram realizadas 29 COPs – Conferências das Partes. A próxima, em 2025, será realizada no Brasil, em Belém. Em todas, com dificuldades, se chega a algum acordo mas... são apenas uma espécie de compromisso de boa vontade dos países, não obrigações para mudar efetivamente. E as divergências maiores no interior das COPs são sobre o tamanho do financiamento  para mitigação e adaptação nos países mais pobres por parte dos países desenvolvidos, que acumulam as maiores responsabilidades históricas pelas emissões de efeito climático. É uma agressão o fato que as últimas tenham sido realzadas em países produtores de petróleo, cujo consumo e emissão de co² na atmosfera é um dos maiores vilões da mudança climática. E quem tem petróleo quer extrair até a última gota em nome de seu direito. Mesmo o nosso Brasil, que quer se apresentar como líder no enfrentamento da mudança climática, não abre mão da exploração de petróleo para financiar o seu desenvolvimento.

Aqui chegamos ao ponto. O beco sem saída das negociações sobre mudança climática é o “mantra do desenvolvimento”[i], entendido como crescimento econômico e fundamental até para cuidar de gente e da natureza. Se voltarmos à ONU e as Conferências sobre Desenvolvimento Sustentável dá para entender o tamanho da confusão. Ainda mais que, em 2015, foram estabelecidos os 17 ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – como Agenda até 2030 para os países membros. O engodo do desenvolvimento sustentável é um mantra de caráter mundial e oficial. Sem dúvida os ODS expressam uma boa intenção política, mas não mudam a essência do desenvolvimento, que é a base de uma economia que funciona se atende aos interesses privados de acumulação capitalista a qualquer custo. Além de busca de acumulação privada, o desenvolvimento depende de exploração de trabalho, extrativismo sem limites, tecnologias predatórias e consumismo. Produz riqueza e, ao mesmo tempo, desigualdades, pobreza, fome e exclusões, além da mudança climática. Na sua origem, o desenvolvimento capitalista submeteu povos inteiros à exploração colonial, escravidão e destruição dos seus territórios. Foi e continua sendo patriarcal. O desenvolvimento não respeita os limites da vida  e da natureza. É antropocêntrico, excludente e destruidor, ao mesmo tempo. A mudança climática é causada pelo desenvolvimento como paradigma dominante.

Desde as últimas décadas do século passado, quando a expansão da globalização capitalista tomou conta do mundo inteiro e se declarava sem alternativas, mas condição indispensável para a humanidade e seus problemas, comecei a me engajar em iniciativas brasileiras e mundiais em busca de alternativas.  Comecei militando contra a criação da OMC a partir do antigo GATT e contra o BM e FMI e suas políticas impositivas a todos os países, como condição de desenvolvimento. Participei de muitos eventos de organizações sindicais, movimentos sociais e ONGs desde que abandonei a vida acadêmica e me tornei diretor do IBASE, a convite do Betinho, em 1990. Fui totalmente engajado no Comitê Organizador que deu origem, em 2001, ao FSM com a ideia de que “outro mundo é possível”. Mas é partir dos impasses no FSM, sobretudo depois de 2009, que passei a me engajar mais em  redes e fóruns, especialmente mundiais, que discutem Novos Paradigmas Civilizatórios, já não mais o “desenvolvimento” e sim de crítica e superação dele enquanto tal. É esta busca em que continuo engajado até hoje. E é como parte dela que vejo a questão da mudança climática.

Foi em 2011, num processo de debate em rede mundial para intervir politicamente na Rio+20 sobre o Desenvolvimento Sustentável, que sintetizei num texto o acumulado de críticas e de buscas até então. O texto incorpora como central a ideia de “biocivilização” para outro mundo possível.[ii] O impacto das análises, reflexões e propostas contidas no texto foi quase nulo,  tanto na Conferência Oficial da Rio+20, no Rio Centro, como no evento da sociedade civil no Aterro do Flamengo. Mas animou uma rede latinoamericana sobre a busca de transição de paradigma civilizatório.

Volto a este tema depois de ler um texto nesta semana sobre  a conferência do ativista e escritor indígena Ailton Krenak na abertura de evento recente na ENSP, no Rio, sobre Mudança Climática e Saúde. Concordo inteiramente com a sua análise sobre a mudança climática e a transformação profunda de perspectiva que precisamos fazer. Segundo Krenak “As mudanças climáticas precisam ser observadas da relação de nosso corpo humano com o corpo da Terra, que é nossa mãe. Se olharmos as mudanças nessa perspectiva biocêntrica, não antropocêntrica, vamos aprender mais e vamos nos tornar mais resilientes a elas. As mudanças climáticas virão, não adianta esperar, e quem tem que mudar somos nós”. Questiona os “direitos humanos” como posição de superioridade, que chama como especismo  humano. O sujeito Terra, como organismo vivo, hoje revindica seu próprio direito. Enfim, olha para as mudanças climática com um olhar de centralidade da vida, de toda vida. Não poderia ser mais claro.[iii]

Enfim, volto à questão dos impasses, limitações e beco sem saída das negociações sobre enfrentamento das mudanças climáticas nas COPs. Sou taxativo em afirmar que onde as negociações acabam enquadradas pela busca de desenvolvimento sustentável nada de virtuoso virá e nem poderá vir. Mas existem propostas virtuosas em que muita gente está engajada e numa busca coletiva continua, inspirados em lutas e propostas territoriais muito potentes e transformadoras, com respeito à integridade e possibilidades dos próprios territórios e da vida da gente que os compartem. Buscar o desenvolvimento como solução é aprofundar as próprias mudanças climáticas, que podem ser devastadoras de toda vida e do planeta Terra, nosso comum maior.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[i] Sob o título de Mantra do Desenvolvimento, fiz uma série de postagens no meu blog “Sentidos e Rumos”.

[ii] O meu texto original recebeu o título de “Caminhos e Descaminhos para a Biocivilização: que fundamentos  filosóficos, éticos e políticos”. Rio de Janeiro, Ibase, 2011. Foi escrito como subsídio para o Ateliê Internacional Biocivilização para a Sustentabilidade da Vida e do Planeta, realizado no Rio de Janeiro , de 9 a 12 agosto de 2011. Depois,  produzi diferentes versões dele, atendendo  demandas de eventos mundiais sobre o tema.

[iii] A fala está destacada no texto de Barbara Souza. “A saúde acontece na  fricção entre nosso corpo e a Terra; Ailton Krenak plesta sobre mudanças climática na ENST. Informe Ensp. Acesso obtido pela postagem no Combate Racismo Ambiental, de 28 de novembro de 2024.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A Desconstrução do Sentido de Viver em Coletividade como Estratégia da Extrema Direita a Serviço de um Liberalismo Total e contra a Democracia

 Na semana passada, aqui no Brasil, vivemos duas expressões opostas  das contradições e possibilidades políticas em que estamos mergulhados. De um lado, o simbolismo, a relevância e o reconhecimento do lugar do Brasil democrático no mundo, sob liderança do Presidente Lula, na presidência do G20, num mundo em turbulência geopolítica. De outro, a investigação e o indiciamento pela Polícia Federal dos envolvidos na trama golpista contra a democracia, urdida a partir do Palácio do Planalto com o conluio decisivo de militares de alta patente, diante da perda na disputa eleitoral para a presidência, em fins de 2022 e posse do Lula no início de 2023. Não há como ignorar os intensos debates  que daí resultaram. Mas o que de mais relevantes estes fatos revelam é uma sensação de perplexidade, como cidadanias do Brasil. Há pouco saímos de um processo eleitoral municipal com resultados que refletem  a perda de rumo e intensidade da democracia  que estamos vivendo. Pois não dá para esquecer que estamos  encurralados tanto pela extrema direita, com seu discurso destrutivo, como pelo “mercado” insaciável em busca de acumulação, exigindo o tal ajuste fiscal.  Tais  processos impedem qualquer política ecossocial virtuosa em busca de direitos iguais na diversidade, que tanto precisamos.

Gostaria de aprofundar a questão democrática em si, contestada pela extrema direita, pois isto compromete profundamente as possibilidades de transformação democrática do Brasil para nos libertar do neoliberalismo capitalista extremado. Na verdade, como vemos em outros países pelo mundo de hoje, com destaque especial para o que se passa nos EUA e Europa, além de expressões aqui na AL, diante de impasses, o “mercado” não duvida em apoiar a extrema direita e seus golpes para defender os seus interesses acima de tudo.

O processo de desconstrução e encurralamento da democracia, como assistimos  no Brasil desde meados da década passada, causou um estrago profundo, sobretudo nas esperanças de um futuro melhor. Criou-se um descrédito na própria democracia. Foi uma combinação de fatores. Sem dúvida, os dois mandatos de Lula na primeira década marcaram uma redefinição de rumos, mas sem grandes transformações estruturais em termos de direitos. Basta lembrar que o programa mais exemplar e festejado - o Bolsa Família no combate à fome – foi mais uma política emergencial necessária e de sucesso, inspirada em propostas do Banco Mundial, mas longe de ser uma política de garantia direito fundamental transformador. As iniciativas de acesso às Universidades, com cotas para a população negra e pobres, foi de longe algo muito mais virtuoso, difícil de reverter num país de tanta desigualdade como o Brasil. A política desenvolvimentista, beneficiada pelo “boom das commodities”, não esteve voltada para transformar a economia, mas sim para reprimarizá-la, tornando-nos ainda mais dependentes do agronegócio e mineração em geral. Não é por aí que avançaremos em termos de democracia ecossocial.

Quando as insatisfações e demandas por mais e mais direitos começaram se manifestar a partir de 2013, já com Dilma presidente, o governo não teve sensibilidade política para entender o ambiente político novo e, num certo sentido, normal dada a combinação de muita pobreza em meio a vergonhosa riqueza de poucos, desigualdades e discriminação, violência e injustiça,com obras suntuosas para as Olimpíadas no lugar de mais hospitais e escola. Neste caldo, as forças mais retrógradas do agronegócio e empresariado nacional, as interferências estrangeiras  diante de certo ressurgimento do Brasil no plano geoeconômico e político, especialmente dos EUA, e um clima de mundial de ascendência de extremas direitas pelo mundo, desencadeou muitos processos internos anti democráticos.

Foi uma combinação, que se alimentou da criminosa “Lava Jato” e o que levou ao Impeachment da presidente Dilma, prisão ilegal de Lula e tudo o que veio junto e depois. Basta lembrar o processo criminoso e entreguista em nome do combate à corrupção, o radical ajuste fiscal, o corte nos gastos constitucionais para educação e saúde, flexibilização dos direitos de trabalho em geral, a subserviência aos Estados Unidos e a reverência às direitas em ascensão pelo mundo. Isto tudo foi o caldo em que se deu a eleição do extremista e autoritário Bolsonaro em 2018,  com  pregação de ódio contra as esquerdas, desprezo a direitos de igualdade na diversidade, ideologia do individualismo extremado, a pregação do mérito individual pelo empreendedorismo,  a negação e o descaso com a pandemia da Covid, com grande número de mortes em consequência, a agressiva política de ataque à proteção ambiental, entre tantas mazelas.

Felizmente, Lula ganhou a eleição presidencial de 2022, por estreita margem, mas enfrenta enormes desafios porque a ameaça não acabou. Basta ver o poder do “Centrão” no Congresso, com  suas bancadas corporativas e agendas privatistas, capazes de impedir tudo o que interessa para avançar minimamente com políticas democráticas .

Nunca é demais lembrar que a tarefa democrática depende essencialmente de intenso ativismo e, ao mesmo tempo, de vigorosa e virtuosa atuação do Estado democrático como provedor de políticas sociais voltadas aos direitos iguais na diversidade e regulador da economia para servir à sociedade, desde os territórios e as regiões até o nacional. As estratégias do “mercado” e da extrema direita são diferentes em forma e conteúdo, mas entrelaçadas contra o Estado que se proponha a promover políticas de cuidado com a gente e a natureza, garantindo mais e mais direitos ecossociais iguais, sem deixar ninguém para trás. Ou seja, a extrema direita não um problema para o “mercado”, mas muitas vezes tábua de salvação.

É neste quadro que precisamos dar atenção estratégica à disputa política de hegemonia, numa luta essencialmente no coração da sociedade civil. Trata-se de disputa dos imaginários, valores e princípios, que definam sentidos e rumos, levando em conta as profundas mudanças que estão ocorrendo, aqui e no mundo todo, pois vivemos em territórios concretos, num mundo profundamente diverso mas interdependente, tanto ecologicamente, como em termos socioculturais, econômicos e políticos. Trata-se de construir um mundo onde caibam muitos mundos, como afirmam enfaticamente os “zapatistas” do México. No entanto, as ameaças são essencialmente de exclusão de todas e todos que ousam não se subordinar à lógica dominante homogenizadora e destruidora de gente e da natureza.

Gostaria de chamar uma particular atenção para a enorme contaminação que a pregação individualista e excludente da extrema direita provocou na sociedade brasileira, destruição com a qual convivemos e não sabemos como enfrentar. Além de urdir um golpe contra a democracia, a pregação contaminou profundamente a sociedade enquanto tal, contra a ideia de democracia, de pertencimento e solidariedade entre todas e todos, com respeito à diversidade. Combater isto em nome de resgatar uma democracia virtuosa em transformações e promoção de direitos  vai exigir enorme esforço das cidadanias e esquerdas que se pautam por imaginários, princípios e valores fundados em direitos ecossociais iguais para todas e todos. Na crítica passagem política do ano de 2022 e início de 2023, nas eleições, vitória do Lula e posse, os adeptos da pregação da direita extrema tomaram ruas e espaços públicos (como na diplomação do Lula, os acampamentos em torno aos quartéis militares, o 08 de janeiro de 2023, naquela invasão bárbara e destruição na Praça dos Três Poderes, em Brasília, entre tantos outros).

Estamos diante de um processo de fragmentação individualista da sociedade e de perda de sentido de pertencimento às comunidades onde levamos a vida.[i]Não temos mais capacidade de promover grandes manifestações no espaço público de sociedade civil capaz de agregar. A pregação difusa e aberta dominante que existe tem por mote o mérito individual como garantia de prosperidade. Ao mesmo tempo, em nome do combate à péssima e pejorativa de definição de “identitarismo” das diversas lutas, toda afirmação sociocultural como base de diversidade e de direitos é negada para a grande população negra e quilombola, os pertencentes aos povos indígenas, as mulheres em geral que lutam pelo reconhecimento de sua igualdade e contra o machismo e violência, o movimento LGBTQ+, o total desrespeito a práticas religiosas que não o cristianismo. Sem contar a pregação contra qualquer proteção da natureza e mudança climática.  Mas não termina aí a ameaça. “Deus, Pátria e Família” como slogan da extrema direita, não passa de um discurso extremamente excludente, só para os que confessam a mesma crença e valores.

A isto tudo se agregam a perda dos espaços de comunicação, prevalecendo as novas mídias digitais e seus influenciadores, com pregação de notícias falsas e visões extremamente individualistas. Temos mais consumidores de mensagens curtas por celular nas grandes plataformas mundiais, não temos referências culturais e comunicacionais comuns e agregadoras.  As grandes plataformas são propriedades,  elas mesmas, de super ricos “donos”, que se gabam de sua riqueza e se definem como defensores da liberdade de expressão, mas na verdade interessados em sua acumulação privada acima de tudo e sem nenhum compromisso em impedir o discurso de ódio ou notícias falsas anti democráticas.[ii]

Fora alguns movimentos sociais virtuosos e muito ativos – Povos Indígenas, Quilombolas e Movimento Negro, MST, MTST, ambulantes,  como principais -  estamos sem grande   capacidade de mobilização. Talvez a luta pela mudança da prática de jornadas de trabalho 6 x 1, especialmente no comércio e serviços, seja capaz de despertar  alguma mobilização mais significativa. De toda forma, nada comparável politicamente à densidade de movimentos por democratização que tivemos no passado não tão distante. Considero este fato o mais revelador para entender a nossa aparente incapacidade de tomar as ruas...

Na verdade, não temos uma sociedade civil articulada em defesa e promoção da democracia nos dias de hoje. Ter o Supremo Tribunal Federal – um poder institucional democrático, mas não eleito ou identificado com movimentos sociais, é pouco, muito pouco, pois essencialmente passivo.   Defender uma identidade comum compartida e diversificada entre campos, matas e cidades diante de poderosas mobilizações da direita é, de meu ponto de vista, a maior e mais desafiante força a manter viva para a democracia. Nem esta pressão por ajuste fiscal a todo custo, especialmente sobre investimentos e gastos com políticas sociais na garantia de direitos iguais na diversidade, foi capaz de nos mobilizar. A esfera pública tornou-se atomizada, também, tomada de assalto por interesses corporativos como o Congresso e suas bancadas, articuladas pelo Centrão e suas emendas parlamentares privatizantes do dinheiro público.

A importância do Estado democrático como regulador foi posta em questão. Sem dúvidas, o Governo Lula tenta, mas não estamos fazendo a nossa parte, decisiva no jogo político. A individualização e a busca do próprio interesse dominam, fenômeno que assistimos onde a extrema direita se afirma e conquista poder, seja na Argentina, EUA, Itália, França, Hungria, Holanda... ou entre nós. Como nos lembra Carlo Galli, analisando o caso da Itália e governo da Meloni, “La derecha no cree en la intervenión del Estado; reponde a la crisis rompiendo el país”. [iii]  

Quem sabe, o indiciamento e julgamento democrático dos que arquitetaram o golpe de Estado contra a democracia e mais a luta contra a Anistia aos criminosos, podem n abrir-nos novos horizontes. O problema é quanto tempo nos resta, como cidadanias e esquerdas democráticas, para reverter quadro tão sombrio em nosso país.

 



[i] Lembro aqui um texto de Ana Ester Ceceña, ainda no início da década de 2000, quando o FSM parecia capaz de despertar um nova onda mobilizadora contra a globalização capitalista e por outro mundo. Ver: CECEÑA, A.E.  A Guerra como Razón Del Mundo que Queremos Transformar. In: Reforma ou Revoluão? Para além do capitalismo neoliberal: concepções, atores e estratégia. Fundação Roa Luxemburr e Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p.19-38

[ii]O caso de Elon Musk é emblemático a respeito. Ver: ELORDUY,Pablo. X como Como Megáfono Reaccionario. Las guerras que Elon Musk poderia perde. Nueva Sociedad, Guerra, paz e multilateralismo. Buenos Aires, nº 313, Septiembre-Ocubre 2024.

[iii] GALLI, C. La extrema derecha prolonga, pero no resuelve la crisis del neoliberlismo italiano. (Entrevista). Bitacora. Montevideo, 18 noviembre, 2024, Año XXIII, nº 1064.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

As Cúpulas Governamentais em meio a um Mundo Desgovernado


Nestes dias, está acontecendo a COP-29 sobre mudanças climáticas num país totalmente dependente do petróleo, o Azerbaijan, e mais uma vez sob a presidência de alguém totalmente ligado ao setor, estando claro que o grande vilã das emissões na origem do problema climático é a energia fóssil.  O que esperar? Muitos debates acalorados e um “acordo final de compromissos”..., que sabemos não será impositivo. Enquanto isto, a mudança climática se acelera a cada ano, devastando territórios e suas populações, no planeta inteiro. Com a destruição da integridade dos sistemas ecológicos estamos caminhando para um cenário ameaçador e desconhecido, tudo devido ao poder incontrolável dos “donos do mundo” em busca de acumulação capitalista e poder, sem limites.

Quase ao mesmo tempo, vai ocorrer na semana próxima, no Rio de Janeiro, a cúpula do G-20, dos líderes estatais das maiores economias do planeta. A intenção oficial é buscar acordos de cooperação mundial diante de um mundo em processo de grandes mudanças geoeconômicas e políticas. Mas, no fundo, é mais uma tentativa de  tentar mudar para fazer sobreviver este capitalismo globalizado e financeirizado, em processo de concentração de acumulação e poder nas mãos de poucos, com os seus novos “monstros”: punhado de Big-Techs e grandes Fundos de Ações, ao lado das petroleiras, com conluio de governos de extrema direita proliferando pelo mundo. Não podemos esquecer nunca que o G-20  é cria do imperialismo americano e países aliados – o G7 (criado em 1975, entre EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Canadá e Japão) diante das recorrentes crises econômicas, ameaças  e necessidade de evitar grandes mudanças na ordem mundial.

Apesar de se realizar no Brasil – foi acordada uma rotação anual na “presidência” do grupo – com a reconhecida habilidade e legitimidade do Lula em eventos globais, além do transtorno para a população da cidade do Rio com questões de segurança para uma cúpula de Chefes de Estado e seus principais assessores, nada sairá daí, além de declaração de boas intenções. E isto diante de uma gigantesca aceleração de tudo: 1)  governos de extrema direita ameaçando as democracias liberais encurraladas, nos países centrais e no Sul Global; 2) poucos dias após a vitória do extremista Trump nos EUA, com seu projeto MAGA (Make America Great Again), contando com o poder das Big-Techs e de livres emissões de dólar, sem limite - moeda ainda dominante nas transações globais - além do poderoso arsenal militar e indústria de armas, mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo, como pilar da economia capitlista; 3) num contexto de guerras entre Rússia x Ucrânia/OTAN,  Israel x Hamas e o genocídio de Povo Palestino por Netaniahu, financiado pelos países do G-7; 4) logo após  a recente reunião dos países do BRICS ampliado, que se apresenta como alternativa ao imperialismo americano e seus aliados, especialmente com transações comerciais sem dependência do dólar; 5) a questão da mudança climática como ameaça ao planeta inteiro; e 6) para não estender muito o balaio de ameaças de toda ordem, lembro aqui as questões humanitárias mais grave: a fome, a pobreza e a desigualdade social que persistem e a questão migratória, denunciando a natureza intrínseca e excludente da ordem capitalista mundial. Sem dúvidas, o Brasil, sob liderança do Lula, vai propor uma prioridade de enfrentamento global à fome, pobreza e desigualdade social. Terá algum resultado? Declarações pomposas virão, compromissos efetivos, não!

Volto a reafirmar que precisamos nos engajar em processos mais consistentes a partir do que já acontece nos territórios de vida e produção. O desafio é nos conectar e entrelaçar a partir do chão da sociedade e criar um poder mobilizador planetário, uma onda irresistível de transformação democrática radical em busca de direitos ecossociais iguais, com respeito à diversidade, com cuidado, convivência e compartilhamento entre humanos e a natureza que nos dá a vida. Mero ideal ou sonho?  Sem dúvida um sonho que não sabemos  quanto é compartilhado neste mundão, tornando-se um ideal que precisamos ainda disputar muito para tonar-se  hegemônico. O fato é que são ideais e sonhos que movem a humanidade. Disputemos isto sem medo, com determinação e esperança diante dos que se consideram “donos” – de gente e da natureza –, aqui e no mundo todo. O que precisamos é chegar a corações e mentes, com propostas de solidariedade entre todas e todos, e assim  engaiolar a fera do “mercado” excludente e destruidor!

Precisamos olhar mais para o chão da sociedade, para os territórios em que levamos a vida. Aí está a potência transformadora. Apesar do avanço dos anos, ainda guardo a gana de ativista cidadão nas ruas contra as potências estatais subservientes ao mercado e ao sistema capitalista dominante.

Termino dizendo que “sim”, devemos olhar, tentar participar e pressionar as periódicas cúpulas oficias e, sobretudo, já que nem todo mundo tem condições de acompanhar tais eventos, divulgar massivamente o que aí ocorre, para deslegitimar os discursos eloquentes, mas nada consequentes, e reafirmar que o que importa é o cuidado de gente e da integridade do planeta, da vida enfim.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Desafios, Buscas e Dúvidas Políticas: Para onde nos movemos?

 


Não hesito em afirmar que, como esquerdas no Brasil, não estamos sabendo  nos reinventar para disputar hegemonia e incidir na política atual, onde tudo parece estar nos levando à uma perda de rumo. Para a minha geração, aquela insurreição cidadã de muitas frentes, dos anos 1980, de conquista da institucionalidade democrática, depois de 24 anos de ditadura militar violenta, gera um saudosismo e, talvez, uma distorção no ver o que está acontecendo. A continuidade da extrema desigualdade social interna, com racismo, machismo, intolerâncias, violências e exclusões de toda ordem, sem controle, ameaças políticas autoritárias, reprimarização da economia e dependência de commodities nos fazem duvidar sobre a capacidade da democracia dar conta de tantos desafios. O capitalismo neoliberal globalizado, com seu “mantra do desenvolvimento” em busca de acumulação a qualquer custo, alimentam tudo isso e também o extrativismo destrutivo, a colonização em novo estilo e as disputas geopolíticas pelo controle de territórios e mercados. Estamos vivendo um processo de aprisionando e crise das democracias no mundo todo e alimentando a onda de extremas direitas, com seus monstros. E isto se conjuga com colonização e destruição de grandes territórios e contaminação da atmosfera pelas emissões, gerando a mudança climática, com efeitos devastadores já sentidos em toda parte, nesse momento histórico que nos cabe viver. Aliás, ameaças negadas ou proteladas e, sobretudo, ignoradas pelos que detêm o poder real, os tais 1% de super ricos, sem legitimidade, é claro, mas que subordinam tudo e a todos aos seus interesses mais imediatos de acumulação sem limites.

Sonhamos com democracia intensa e transformações, mas estamos encurralados 30 e tantos anos depois. No nosso Brasil, como quase em todo mundo, dominam os impasses ou rupturas violentas. Quase não existem virtudes políticas a celebrar. A sensação é que já estamos mergulhados em uma nova guerra mundial, provocadas pelas disputas geopolíticas e guerras larvais abertas, em curso, até no interior de países, com genocídios, apagamentos e intolerâncias de toda ordem.  E convivemos com incertezas sobre o amanhã. A sensação imediata é que estamos caminhando para uma catástrofe. O que fazer? É a pergunta que não sai do radar! Mas as propostas são raras e, num certo sentido, medíocres diante do desafio. A sina é buscar, buscar... e não desistir, pois viver é assim mesmo.[i]

Com as minhas dúvidas, estou me referindo particularmente à necessidade de sermos portadores de ideias e valores para uma democracia intensa e transformadora no Brasil e no mundo todo, no aqui e agora, em busca de direitos iguais para todas e todos, na maravilhosa diversidade que carregamos como humanidade, regendo-nos pelo cuidado, convivência e compartilhamento da vida e preservando a integridade do planeta Terra, o grande bem comum. Reconheço que isto, ao mesmo tempo, nos divide social e culturalmente, mais do que agrega, levando a exclusões, violências e discriminações, como a história da humanidade até aqui testemunha.

Estamos no mesmo mundo, mas sempre territorializados, porque neles construímos muitos mundos humanos diversos a partir do lugar que ocupamos no planeta e da história que nosso povo vem fazendo nele, com as nossas capacidades humanas de criar culturas e, também domínios, exclusões e mortes. Os desafios são comuns e, ao mesmo tempo, diferenciados. Como dar conta disto? O problema prioritário e intransferível é o que fazemos onde levamos nossas vidas, mas sabendo que tem impactos para além dos territórios onde estamos. Tudo está interconectado. Mas, nos dividimos em povos e nações e, dentro delas, em classes sociais opostas, em luta sem fim. Bota desafio nisto! De qualquer ponto de vista, a democracia liberal – melhor que qualquer ditadura – está se revelando um modo político de gestão coletiva impotente e em crise sem saída à vista.

Aqui no Brasil, neste momento, ainda estamos em um processo eleitoral democrático para definir os governos municipais, com um segundo turno dentro de poucos dias, especialmente em capitais dos Estados e nos maiores municípios em termos de população. Não dá para ter dúvidas que os resultados apontam correlações de forças políticas nada virtuosas. E muitas análises foram publicadas a respeito.[ii] Mas o que tais correlações políticas significam vai muito além das eleições, uma expressão democrática periódica. Precisamos ser mais profundos nas análises sobre estrutura de classes, suas frações e suas estratégias de ação, para saber como se situar e como agir com os objetivos e valores éticos que nos movem para lutar politicamente.

As sociedades são estruturas duras mas com limites gelatinosos, por assim dizer, onde o poder real dos que se consideram “donos” pode se dissimular, manipular, com dinheiro, propaganda e mentiras, angariando apoio e até o comprando se necessário. Basta ter presente o bloco de poderosos especuladores acionistas sob o disfarce de mercado, que manipulam a economias segundo seus interesses em nome da regra da liberdade.

Esta classe e seus asseclas operadores são proporcionalmente pouco, mas constituem um bloco poderoso – da “Faria Lima” como é conhecido - que condiciona diretamente governos e especialmente a política fiscal e monetária do país, sem limites, geralmente na penumbra.  Seu poder de classe, apesar de pequeno em termos de cidadania, influencia em muito as eleições, especialmente nas grandes cidades e capitais, onde muitos exercem seu poder de modo especial. Mas as grandes e médias cidades contem em seus territórios milícias e traficantes, o lado abertamente criminoso dos que nos dominam.

Por outro lado, no vasto território rural temos a versão moderna de “coronéis” do  grande agronegócio brasileiro, integrantes da classe dominante. Esta fração, de grandes proprietários de terras, que se auto consideram e se proclamam pela televisão como “agro é tec,  o agro é pop, o agro é tudo”. Não criam muitos empregos estáveis, mas se valem de grileiros, pistoleiros e desmatadores e até de formas de trabalho semelhante ao escravo, especialmente na abertura de novas áreas anexadas criminalmente ou recentemente adquiridas. A seu modo é um grupo poderoso, sem limites no agir baseado no seu controle territorial. Praticam muita violência, especialmente contra quem ousa se opor à sua expansão ou questiona a sua legitimidade e legalidade, defendendo o próprio direito à terra. O “agro” dá particular atenção à política em todos os níveis, ocupando espaços de poder diretamente ou por cúmplices. Quando eleitos para o executivo municipal ou sua Câmara, tendem a considerar a coisa pública como sua, como direito. Pior ainda quando se elegem para governos e legislativos estaduais ou para o Senado e Câmara de Deputados, juntando-se em “frentes” e “bancadas” na defesa seus interesses paroquiais. Hoje são os maiores beneficiados com emendas parlamentares para seus redutos.

Tal estrutura no claro-escuro limita a democracia. Hoje é parte fundamental do “Centrão” no Congresso Nacional. E tem o enorme fundo eleitoral público proporcional ao tamanho de cada partido. Mas mesmo com regras legais definidas,  manipulam e controlam tais regras pois se consideram “donos” dos próprios partidos. Mas o fundo das campanhas é alimentado ainda pelos grandes doadores/financiadores, nada transparentes, em geral de grandes empresas, ricaços especuladores nas bolsas ou diretamente do agronegócio, sempre em busca de seus interesses de acumulação, em nome da liberdade de mercado, como se democracia também fosse uma forma de mercado de votos. Dá para imaginar a distorção praticada por tais “eleitores”.

Mas tem mais, pois hoje as grandes redes socais puxadas por “influenciadores”, contando com o enorme poder das próprias operadores e servidoras da internet, alimentam e contaminam o   “ambiente público democrático”. O “fenômeno” Marçal, em São Paulo, coração econômico e político do Brasil, é um caso emblemático a respeito, mas não se restringe a ele, pois é uma forma particularmente usada pela extrema direita em muitos países. O caso do super rico Musk, dono da X – outro monstro gerado pelo capitalismo – mesmo não sendo brasileiro, revela toda a ameaça democrática que significa a manipulação da informação e propagação de notícias falsas e de ódio entre nós, aqui no Brasil, sempre em nome do direito de “liberdade de expressão”. Mas os outros que fazem parte do “grupito” de ricaços proprietários de empresas que controlam a grandes empresas provedores de internet no mundo podem ser um pouco mais moderados e pouco falantes, mas o modo de operar é o mesmo ou só menos espalhafatoso do que o Musk. O fato é que o ambiente das redes sociais digitais parece um mundo selvagem onde tudo é permitido.

A complexidade do momento brasileiro se exprime de algum modo neste processo eleitoral. Ainda faltam os resultados finais, incluindo o segundo turno, para traçar uma geografia eleitoral, especialmente partidária, na complexidade e variedade de partidos que temos no momento. Sempre as questões vividas nos territórios dos mais de 5.500 municípios que temos e vinte e seis Estados Federados, de tamanho populacional e territorial diverso, complicam mais ainda uma análise de correlação de forças locais e seu impacto no conjunto do país. A este fato se soma o tamanho de eleitores/as que se abstiveram  de votar ou anularam o voto. Tudo isto precisa ser visto e avaliado por representar importantes sinalizadores de tendências políticas e formas diversas do viver, agir e pensar, dado o tamanho do país, base  fundamental  para avaliar o “estado” da democracia. Vai ser necessário termos disponíveis os números totais de cada partido, fazendo uma espécie de geografia do voto com os resultados, levando em conta as coalizões partidárias, tarefa analítica um tanto complexa, dado o tamanho e as múltiplas diversidades de toda ordem do Brasil. Aliás, um aspecto que destaco é que não podemos tirar conclusões apressadas, mas sim elementos para alimentar o debate e direções de nossas escolhas e estratégias políticas para frente, enquanto “esquerdas”.[iii]

Gostaria de contribuir com algumas questões que merecem investigação mais profunda. Não dá para negar que a influência do “bolsonarismo” foi grande, mas não o suficiente, dado  a  ambição política e empenho de seu líder com um autoritarismo extremado. Não dá também para reconhecer a perda de vitalidade e capacidade de disputa hegemônica do PT, perdendo de intensidade, mas o tamanho do estrago não é o que se anunciava. Além disto merece destaque o caso de São Paulo, com a polaridade surgida no primeiro turno, com o Boulos chegando ao segundo turno numa aliança entre PSOL e PT, acima do Marçal e atrás  do Nunes com a turma do governador Tarcísio, da centro-direita e da “Faria Lima”.  No país como um todo, os sinais até aqui indicam a centro-direita, com o seu balaio de várias expressões partidárias, como vitoriosa. Mas o que representa isto, pois as identidades e diferenças não podem ser ignoradas. A sinalizar a insignificância dos herdeiros do PSDB. Como tais sinais irão impactar a disputa de hegemonia para as eleições estaduais e nacionais, dentro de dois anos, é algo que temos que aprofundar e entender o que significa como desafio político para a democracia e nós da esquerda. Por fim, um sinal preocupante foi a falta de grandes mobilizações e tomada do espaço público de cidades de nossa parte, numa conjuntura tão desafiadora

Mas gostaria de destacar, assim mesmo, a atenção especial que devemos dar aos os “monstros”e sua atuação, alguns velhos e outros bem novos, como as forças e expressões de extrema direita. Vou deixar tão desafiante questões para um nova postagem, já depois do segundo turno.

 

 

 

 

 

 



[i] Não faltam análises, mas elas revelam mais as complexidades do momento do que algum consenso básico. Diante de tal dificuldade entre analistas, que considero referência na construção de minha própria análise, parei com as postagens mais regulares no meu blog. Dei-me um tempo para pesquisar e refletir. Mesmo sem muitas respostas, volto a compartir algumas pistas que a pesquisa e a reflexão feitas me apontam.

[ii] Eu me limitei às muitas análises do campo democrático de esquerda que temos, sem dar conta de todas.  Por  isto não apresento  os autores e os artigos a que tive acesso, tanto antes como após as eleições, ainda mais com o segundo turno   em várias  capitais estaduais  e maiores municípios, em termos de população, estão ainda indefinidos. Reconheço que não estou seguindo particularmente alguma delas, mas todas de algum modo alimentam o debate. Espero que a minha postagem aporte algo novo para a análise coletiva necessária neste momento, sobretudo dos desafios pela frente com eleições para o poder federal daqui a dois anos.

[iii] No Ibase, quando diretor, apoiei iniciativas de geografia eleitoral a partir do voto, especialmente na primeira década em contexto democrático após ditadura. O mapa surpreende pelas interrelações reais entre vitórias eleitorais e políticas públicas ou  acesso a serviços públicos como água e eletricidade, por exemplo.

Desafios, Buscas e Dúvidas Políticas: Para onde nos movemos?

 


Não hesito em afirmar que, como esquerdas no Brasil, não estamos sabendo  nos reinventar para disputar hegemonia e incidir na política atual, onde tudo parece estar nos levando à uma perda de rumo. Para a minha geração, aquela insurreição cidadã de muitas frentes, dos anos 1980, de conquista da institucionalidade democrática, depois de 24 anos de ditadura militar violenta, gera um saudosismo e, talvez, uma distorção no ver o que está acontecendo. A continuidade da extrema desigualdade social interna, com racismo, machismo, intolerâncias, violências e exclusões de toda ordem, sem controle, ameaças políticas autoritárias, reprimarização da economia e dependência de commodities nos fazem duvidar sobre a capacidade da democracia dar conta de tantos desafios. O capitalismo neoliberal globalizado, com seu “mantra do desenvolvimento” em busca de acumulação a qualquer custo, alimentam tudo isso e também o extrativismo destrutivo, a colonização em novo estilo e as disputas geopolíticas pelo controle de territórios e mercados. Estamos vivendo um processo de aprisionando e crise das democracias no mundo todo e alimentando a onda de extremas direitas, com seus monstros. E isto se conjuga com colonização e destruição de grandes territórios e contaminação da atmosfera pelas emissões, gerando a mudança climática, com efeitos devastadores já sentidos em toda parte, nesse momento histórico que nos cabe viver. Aliás, ameaças negadas ou proteladas e, sobretudo, ignoradas pelos que detêm o poder real, os tais 1% de super ricos, sem legitimidade, é claro, mas que subordinam tudo e a todos aos seus interesses mais imediatos de acumulação sem limites.

Sonhamos com democracia intensa e transformações, mas estamos encurralados 30 e tantos anos depois. No nosso Brasil, como quase em todo mundo, dominam os impasses ou rupturas violentas. Quase não existem virtudes políticas a celebrar. A sensação é que já estamos mergulhados em uma nova guerra mundial, provocadas pelas disputas geopolíticas e guerras larvais abertas, em curso, até no interior de países, com genocídios, apagamentos e intolerâncias de toda ordem.  E convivemos com incertezas sobre o amanhã. A sensação imediata é que estamos caminhando para uma catástrofe. O que fazer? É a pergunta que não sai do radar! Mas as propostas são raras e, num certo sentido, medíocres diante do desafio. A sina é buscar, buscar... e não desistir, pois viver é assim mesmo.[i]

Com as minhas dúvidas, estou me referindo particularmente à necessidade de sermos portadores de ideias e valores para uma democracia intensa e transformadora no Brasil e no mundo todo, no aqui e agora, em busca de direitos iguais para todas e todos, na maravilhosa diversidade que carregamos como humanidade, regendo-nos pelo cuidado, convivência e compartilhamento da vida e preservando a integridade do planeta Terra, o grande bem comum. Reconheço que isto, ao mesmo tempo, nos divide social e culturalmente, mais do que agrega, levando a exclusões, violências e discriminações, como a história da humanidade até aqui testemunha.

Estamos no mesmo mundo, mas sempre territorializados, porque neles construímos muitos mundos humanos diversos a partir do lugar que ocupamos no planeta e da história que nosso povo vem fazendo nele, com as nossas capacidades humanas de criar culturas e, também domínios, exclusões e mortes. Os desafios são comuns e, ao mesmo tempo, diferenciados. Como dar conta disto? O problema prioritário e intransferível é o que fazemos onde levamos nossas vidas, mas sabendo que tem impactos para além dos territórios onde estamos. Tudo está interconectado. Mas, nos dividimos em povos e nações e, dentro delas, em classes sociais opostas, em luta sem fim. Bota desafio nisto! De qualquer ponto de vista, a democracia liberal – melhor que qualquer ditadura – está se revelando um modo político de gestão coletiva impotente e em crise sem saída à vista.

Aqui no Brasil, neste momento, ainda estamos em um processo eleitoral democrático para definir os governos municipais, com um segundo turno dentro de poucos dias, especialmente em capitais dos Estados e nos maiores municípios em termos de população. Não dá para ter dúvidas que os resultados apontam correlações de forças políticas nada virtuosas. E muitas análises foram publicadas a respeito.[ii] Mas o que tais correlações políticas significam vai muito além das eleições, uma expressão democrática periódica. Precisamos ser mais profundos nas análises sobre estrutura de classes, suas frações e suas estratégias de ação, para saber como se situar e como agir com os objetivos e valores éticos que nos movem para lutar politicamente.

As sociedades são estruturas duras mas com limites gelatinosos, por assim dizer, onde o poder real dos que se consideram “donos” pode se dissimular, manipular, com dinheiro, propaganda e mentiras, angariando apoio e até o comprando se necessário. Basta ter presente o bloco de poderosos especuladores acionistas sob o disfarce de mercado, que manipulam a economias segundo seus interesses em nome da regra da liberdade.

Esta classe e seus asseclas operadores são proporcionalmente pouco, mas constituem um bloco poderoso – da “Faria Lima” como é conhecido - que condiciona diretamente governos e especialmente a política fiscal e monetária do país, sem limites, geralmente na penumbra.  Seu poder de classe, apesar de pequeno em termos de cidadania, influencia em muito as eleições, especialmente nas grandes cidades e capitais, onde muitos exercem seu poder de modo especial. Mas as grandes e médias cidades contem em seus territórios milícias e traficantes, o lado abertamente criminoso dos que nos dominam.

Por outro lado, no vasto território rural temos a versão moderna de “coronéis” do  grande agronegócio brasileiro, integrantes da classe dominante. Esta fração, de grandes proprietários de terras, que se auto consideram e se proclamam pela televisão como “agro é tec,  o agro é pop, o agro é tudo”. Não criam muitos empregos estáveis, mas se valem de grileiros, pistoleiros e desmatadores e até de formas de trabalho semelhante ao escravo, especialmente na abertura de novas áreas anexadas criminalmente ou recentemente adquiridas. A seu modo é um grupo poderoso, sem limites no agir baseado no seu controle territorial. Praticam muita violência, especialmente contra quem ousa se opor à sua expansão ou questiona a sua legitimidade e legalidade, defendendo o próprio direito à terra. O “agro” dá particular atenção à política em todos os níveis, ocupando espaços de poder diretamente ou por cúmplices. Quando eleitos para o executivo municipal ou sua Câmara, tendem a considerar a coisa pública como sua, como direito. Pior ainda quando se elegem para governos e legislativos estaduais ou para o Senado e Câmara de Deputados, juntando-se em “frentes” e “bancadas” na defesa seus interesses paroquiais. Hoje são os maiores beneficiados com emendas parlamentares para seus redutos.

Tal estrutura no claro-escuro limita a democracia. Hoje é parte fundamental do “Centrão” no Congresso Nacional. E tem o enorme fundo eleitoral público proporcional ao tamanho de cada partido. Mas mesmo com regras legais definidas,  manipulam e controlam tais regras pois se consideram “donos” dos próprios partidos. Mas o fundo das campanhas é alimentado ainda pelos grandes doadores/financiadores, nada transparentes, em geral de grandes empresas, ricaços especuladores nas bolsas ou diretamente do agronegócio, sempre em busca de seus interesses de acumulação, em nome da liberdade de mercado, como se democracia também fosse uma forma de mercado de votos. Dá para imaginar a distorção praticada por tais “eleitores”.

Mas tem mais, pois hoje as grandes redes socais puxadas por “influenciadores”, contando com o enorme poder das próprias operadores e servidoras da internet, alimentam e contaminam o   “ambiente público democrático”. O “fenômeno” Marçal, em São Paulo, coração econômico e político do Brasil, é um caso emblemático a respeito, mas não se restringe a ele, pois é uma forma particularmente usada pela extrema direita em muitos países. O caso do super rico Musk, dono da X – outro monstro gerado pelo capitalismo – mesmo não sendo brasileiro, revela toda a ameaça democrática que significa a manipulação da informação e propagação de notícias falsas e de ódio entre nós, aqui no Brasil, sempre em nome do direito de “liberdade de expressão”. Mas os outros que fazem parte do “grupito” de ricaços proprietários de empresas que controlam a grandes empresas provedores de internet no mundo podem ser um pouco mais moderados e pouco falantes, mas o modo de operar é o mesmo ou só menos espalhafatoso do que o Musk. O fato é que o ambiente das redes sociais digitais parece um mundo selvagem onde tudo é permitido.

A complexidade do momento brasileiro se exprime de algum modo neste processo eleitoral. Ainda faltam os resultados finais, incluindo o segundo turno, para traçar uma geografia eleitoral, especialmente partidária, na complexidade e variedade de partidos que temos no momento. Sempre as questões vividas nos territórios dos mais de 5.500 municípios que temos e vinte e seis Estados Federados, de tamanho populacional e territorial diverso, complicam mais ainda uma análise de correlação de forças locais e seu impacto no conjunto do país. A este fato se soma o tamanho de eleitores/as que se abstiveram  de votar ou anularam o voto. Tudo isto precisa ser visto e avaliado por representar importantes sinalizadores de tendências políticas e formas diversas do viver, agir e pensar, dado o tamanho do país, base  fundamental  para avaliar o “estado” da democracia. Vai ser necessário termos disponíveis os números totais de cada partido, fazendo uma espécie de geografia do voto com os resultados, levando em conta as coalizões partidárias, tarefa analítica um tanto complexa, dado o tamanho e as múltiplas diversidades de toda ordem do Brasil. Aliás, um aspecto que destaco é que não podemos tirar conclusões apressadas, mas sim elementos para alimentar o debate e direções de nossas escolhas e estratégias políticas para frente, enquanto “esquerdas”.[iii]

Gostaria de contribuir com algumas questões que merecem investigação mais profunda. Não dá para negar que a influência do “bolsonarismo” foi grande, mas não o suficiente, dado  a  ambição política e empenho de seu líder com um autoritarismo extremado. Não dá também para reconhecer a perda de vitalidade e capacidade de disputa hegemônica do PT, perdendo de intensidade, mas o tamanho do estrago não é o que se anunciava. Além disto merece destaque o caso de São Paulo, com a polaridade surgida no primeiro turno, com o Boulos chegando ao segundo turno numa aliança entre PSOL e PT, acima do Marçal e atrás  do Nunes com a turma do governador Tarcísio, da centro-direita e da “Faria Lima”.  No país como um todo, os sinais até aqui indicam a centro-direita, com o seu balaio de várias expressões partidárias, como vitoriosa. Mas o que representa isto, pois as identidades e diferenças não podem ser ignoradas. A sinalizar a insignificância dos herdeiros do PSDB. Como tais sinais irão impactar a disputa de hegemonia para as eleições estaduais e nacionais, dentro de dois anos, é algo que temos que aprofundar e entender o que significa como desafio político para a democracia e nós da esquerda. Por fim, um sinal preocupante foi a falta de grandes mobilizações e tomada do espaço público de cidades de nossa parte, numa conjuntura tão desafiadora

Mas gostaria de destacar, assim mesmo, a atenção especial que devemos dar aos os “monstros”e sua atuação, alguns velhos e outros bem novos, como as forças e expressões de extrema direita. Vou deixar tão desafiante questões para um nova postagem, já depois do segundo turno.

 

 

 

 

 



[i] Não faltam análises, mas elas revelam mais as complexidades do momento do que algum consenso básico. Diante de tal dificuldade entre analistas, que considero referência na construção de minha própria análise, parei com as postagens mais regulares no meu blog. Dei-me um tempo para pesquisar e refletir. Mesmo sem muitas respostas, volto a compartir algumas pistas que a pesquisa e a reflexão feitas me apontam.

[ii] Eu me limitei às muitas análises do campo democrático de esquerda que temos, sem dar conta de todas.  Por  isto não apresento  os autores e os artigos a que tive acesso, tanto antes como após as eleições, ainda mais com o segundo turno   em várias  capitais estaduais  e maiores municípios, em termos de população, estão ainda indefinidos. Reconheço que não estou seguindo particularmente alguma delas, mas todas de algum modo alimentam o debate. Espero que a minha postagem aporte algo novo para a análise coletiva necessária neste momento, sobretudo dos desafios pela frente com eleições para o poder federal daqui a dois anos.

[iii] No Ibase, quando diretor, apoiei iniciativas de geografia eleitoral a partir do voto, especialmente na primeira década em contexto democrático após ditadura. O mapa surpreende pelas interrelações reais entre vitórias eleitorais e políticas públicas ou  acesso a serviços públicos como água e eletricidade, por exemplo.

sábado, 24 de agosto de 2024

A Busca Democrática do Comum na Diversidade: Desafios para a Construção de Contra Hegemonia


Precisamos ter presente os momentos históricos da própria tomada de consciência e as lutas efetivas contra o bloco político dominante do capitalismo, que conta com o poder de Estado como expressão de sua hegemonia. Não podemos achar que temos hegemonia democrática transformadora. O Lula, atual presidente, que ganhou uma  eleição democrática, com ampla e extremamente heterogênea aliança, diante de um candidato com propostas de extrema direita autoritária, não expressa nossa hegemonia. Ela carrega uma proposta democrática para gerir o capitalismo que temos. A governabilidade possível imediata é nos limites de tal realidade estatal, considerando os três poderes e a nossa Constituição. Evitamos o pior, a destruição da própria democracia. Mas o capitalismo, em sua versão de neoliberalismo globalizado e financeirizado continua sendo o pilar, dentro de limites democráticas, menos destrutivos e excludentes. No jargão jornalístico vivemos o comando do “mercado” ou, de maneira mais emblemática, sob a hegemonia da “Faria Lima” – das entidades empresariais dos diversos setores econômicos, líderes dos 1% mais ricos.

Considero que é fundamental termos política e analiticamente bem claro isto para podermos avaliar os limites das possibilidades de avanços em tal encruzilhada histórica. O capitalismo  é um câncer social bem implantado no Brasil. É bom que se diga que ele se dá melhor em contexto democrático, apesar de seus representantes nunca duvidarem de apelar a ditaduras e guerras, se necessário for, para preservar seus interesses de acumulação. O fato de termos ganho um governo democrático diante da proposta da extrema direita foi fundamental no momento histórico, sem dúvida. Mas não transformou a lógica do Estado. Este Estado, as instituições, os processos e as políticas continuam dentro das “regras do livre mercado capitalista”, com possibilidades de ajustes e maior atenção ao social, claro, mas dentro de limites estruturais. Basta lembrar do mantra do teto de gastos e ajuste fiscal, como cláusulas pétreas, não da Constituição, mas do mercado. No entanto, precisamos reconhecer e nos sentir aliviados com o Governo Lula, pois vivemos uma condição melhor para ação política no imediato e no longo prazo para conquistar hegemonia política transformadora.

Para enfrentar a questão da construção e conquista de hegemonia temos que olhar para nós mesmos, cidadanias diversas, para as oportunidades que se abrem em tal contexto. Para lidar com a oportunidade e o desafio, esclareço a perspectiva em que me situo: alinho-me com quem defende uma visão e proposta de democracia ecossocial transformadora, intensa pela participação social em busca de direitos ecossociais iguais plenos, na diversidade do que somos. Nesta visão, nada ortodoxa ou dogmática, que tenta não se aferrar aos enferrujados dogmas doutrinários, as correlações de forças e lutas de classes continuam a ser a base do movimento, de formas muito combinadas e complexas, essencialmente num cenário mundial. Não convivemos mais com locomotivas e navios a vapor, mas com jatos, satélites e naves espaciais, ao mesmo tempo com miséria, fome e grandes periferias, internas e entre países. Como em todos os momentos históricos, o desafio é nos reinventarmos pois vivemos este momento histórico, nem passado e nem futuro, mas presente desafiador, cruel por um lado e estimulante por outro.

Talvez este seja o maior desafio! A construção de hegemonia não se faz a partir do Estado. A hegemonia se expressa no poder estatal, mas o processo de disputa que a gera precisa ter raízes profundas no chão da sociedade, construindo adesão política majoritária, para conquistar um poder político democrático necessário para a transformação do Estado e da Economia.[i] Tarefa política desafiadora, contínua, muito aquém e além dos ritos democráticos de eleições periódicas. Trata-se de forjar o bloco histórico dos explorados, excluídos, dominados e discriminados, nunca nos  esquecendo que  convivemos com vergonhosa injustiça social e descontrolada destruição ecológica. Mas, ao mesmo tempo, temos diante de nós enorme diversidades de modos de ser e agir, gente tomando consciência de si e para si, assim como de outras e outros, criando identidades coletivas compartilhadas, propostas, organização e formas de luta cidadã, forjando coalizões em redes e fóruns... até partidos políticos.

Aí é que reside o desafio de construção de contra hegemonia cidadã ecossocial. Ela não depende do Estado, depende de nós mesmos, cidadanias ativas. Não podemos ser dogmáticos diante do desafio, pois a teoria política nunca substitui a análise de situações concretas, sempre, em complexo movimento histórico, único ao seu modo. A teoria é uma referência fundamental, mas não substitui a necessária tarefa política de análise da história passada, da situação atual, e da conjuntura de relações de forças no momento vivido, assim como possíveis perspectivas.  Tal tarefa precisa ser feita e renovada continuamente, pois implica em decompor uma realidade em complexo movimento histórico e recompô-la como uma realidade politicamente pensada, capaz de inspirar ações e rumos da ação política cidadã.

A hegemonia assenta na unidade de forças políticas – bloco político – forjada em torno a valores e princípios orientadores comuns, análises e propostas agregadas num grande saber cidadão compartilhado como um bem comum, formas de ação diversas mas coalizionadas organicamente, como um modo comum de agir com autonomia de cada segmento, num disputa política e cultural no palco da sociedade.

O comum na diversidade não é um dado, precisa ser construído a partir da sociedade num país extremamente diverso, em formas de viver e territórios ecossociais diversos, para que o bloco político democrático dos dominados  possa adquirir unidade e consistência diante do bloco de classes  dominantes capitalistas, levando a sua ação a adquirir capacidade politicamente transformadora.

Carregamos heranças da conquista e colonização, de extermínio de povos originários e apropriação de seus territórios – ainda intensa até hoje, só não vê quem não quer – , de tráfico negreiro e trabalho escravo, de patriarcalismo, de extrativismos cíclicos, ainda centrais numa economia voltada para fora, com uma tardia industrialização tardia. Estamos vivendo sob o poder e dependentes de donos de gado, gente e grandes latifúndios, tanto tradicionais como modernos, em coalizão com os “donos do mercado” – em conluio com seus operadores e especuladores nas bolsas. “Os donos”, combinados, provocam migrações internas de grande escala, com grandes periferias urbanas e rurais, entregues ao festim de milicianos e traficantes e sua economia paralela. Apesar de certa ousadia de Lula, o bloco político das classes dominantes nem está aí – aliás nunca esteve - por  ocupar um lugar dependente no concerto das nações, apesar de nosso tamanho territorial, populacional e econômico.

Mas, não duvidemos, se trata de um minúsculo bloco de classes capitalistas de grande poder, que dita, em última análise, a lógica em que assenta o Estado, suas possibilidades e limites. O grande horizonte é buscar a transformação do próprio Estado para poder transformar a economia do Brasil e conquistar uma possibilidade de “viver saboroso” ou “bem viver”. E a força transformadora só poderá emergir do coração da sociedade, da diversidade de situações de vida e trabalho, num bloco político histórico dos dominados e excluídos, que conquista  hegemonia, definindo rumos e possibilidades democráticas de ecossociais para todos, sem esquecer ninguém.

Dito isto – e nem é tudo – volto ao ponto central: não vamos construir hegemonia democrática ecossocial e transformadora sem dar conta da enorme diversidade social contida neste nosso maravilhoso país, com seu povo e território, sofridos apesar de, muitas vezes, celebrados. Não existe luta maior ou menor, mas lutas necessárias, todas estratégicas. Com os dogmatismos de esquerda caminhamos para acumular derrotas políticas. Temos alternativas, muitas e variadas, que são um patrimônio coletivo da cultura, da arte, da educação, da ciência, da comunicação, até da fé e prática religiosa. O desafio e sua valorização já foi pontuado pelo memorável Paulo Freire, que nos propôs o método da troca de conhecimentos,  inspirado em muitos  saberes de resistência e de busca de autonomia. Aliás, é de autonomia, de libertação, de criatividade político-cultural que se trata. Temos de sobra, mas sem articulação política na escala necessária. Tal tarefa política, educativa, cultural e de comunicação, com um viés de liberdade de disputa de visões, narrativas e modos de agir, traduzidos e difundidos discursos significantes por todos os meios – arte, festas, música, literatura, redes, rádios comunitárias, alto falantes, manifestações,  etc.– tomada da rua como o espaço cidadão por excelência – é o campo da disputa de hegemonia que cria raízes.

(Deixo tal tema desafiante para futuras postagens...)

 

 

 

 



[i] Não é meu objetivo aprofundar esta questão teórica. Pessoalmente me inspiro nas obras de A.Gramsci e nos muitos que “garimparam” e sistematizaram a complexidade de seu pensamento, especialmente  a partir dos “Cadernos do Cárcere”.