segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Visões Políticas e Contradições Sociais

 


A questão maior para as cidadanias ativas brasileiras diante da difícil conjuntura carrega um duplo desafio. De um lado, conter e desmontar a ameaça fascista mais imediata. De outro e ao mesmo tempo, renovar a perspectiva democrática e lhe dar bases mais sólidas e virtuosas como processo transformador do capitalismo neoliberal à la brasileira e como modo de construir uma sociedade mais justa e sustentável, de direitos iguais na diversidade. Trata-se de um processo longo e profundo, para muitas gerações, mas que precisa ser encarado desde aqui e agora, como nosso compromisso existencial. Assim visto o desafio, precisamos ter presente que a tarefa é um desconstruir para construir, ou, construir destruindo. A democracia em frangalhos a que chegamos não é renovável pura simplesmente, pois está profundamente contaminada e esgarçada. Ela necessita de transformações profundas, que não foram realizadas no Brasil a partir do fim da ditadura militar e da conquista da Constituição de 1988. Felizmente, não voltamos à estaca zero, mas chegamos perto com os retrocessos que aconteceram após o golpe de 2016 e nos levaram ao desastroso governo de extrema direita e pregação fascista. O fato é que hoje sabemos mais onde incidir,  o que precisa ser feito e como fazer, apesar dos limites estruturais e políticos.

Tão grave e urgente desafio não pode ser enfrentado sem situá-lo num contexto maior de crises de ordem econômica, social, geopolítica e civilizatória do capitalismo nesta encruzilhada histórica. Esta advertência não é para desestimular a luta, mas para ter presente os múltiplos processos de interdependências e contradições de toda ordem, do local ao mundial. Teremos que explorar estrategicamente as possibilidades de nossa ação nos limites históricos dados de hoje, para criar maiores possibilidades de sucesso no futuro. Cuidar de gente é uma perspectiva radical e transformadora para um modo de fazer democrático de alta intensidade em face do capitalismo. Mas como cuidar de gente com todas as adversidades estruturais, econômicas, sociais, culturais e políticas existentes?

A perda de intensidade da referência política democrática pelo mundo se deve à hegemonia do neoliberalismo desde as décadas de 1970 e 1980, como base do capitalismo globalizado controlado pelas grandes corporações econômicas e financeiras. Trata-se da hegemonia de um capitalismo de acionistas, de especuladores nos grandes mercados, que priorizam a acumulação de valores e não a produção de bens e serviços necessários para se viver, não importa a que custo social, ecológico e político. Aí cabe destacar o crescente papel do Fórum Econômico Mundial, em Davos, desde os anos 1970, como centro de encontro de magnatas e asseclas e referência para a consolidação da hegemonia neoliberal. Isto tudo se apoiou também nos financiamentos de grandes empresas globalizadas direcionados a centros pensantes não governamentais e grandes escolas de economia, como a de Chicago, como difusores do neoliberalismo, tornando-o um modo de pensar e viver legitimador do capitalismo. Mais, forjou-se o chamado “consenso de Washington”, que transformou as instituições multilaterais – FMI, BM, a nascente OMC e a própria União Europeia – em forças promotores do neoliberalismo e esvaziou de vez o projeto multilateral da ONU para evitar a guerra, criada no pós II Guerra Mundial.

O neoliberalismo não dispensa o Estado. Pelo contrário, propõe o ajuste fiscal e das políticas às necessidades do livre mercado e dos interesses dos grandes controladores de empresas e bancos, minimizando tudo o que se refere ao bem estar social. Ao se tornar hegemônico em escala mundial, o neoliberalismo fragilizou as conquistas de direitos humanos, as políticas sociais e as regulações democráticas de todo tipo. Um aspecto relevante a se ter presente é o quadro de disputas geopolíticas e econômicas que se gestou a partir das transformações engendradas pelo neoliberalismo, como o fim da Guerra Fria (1989) e da bipolaridade que dividia o mundo desde a II Guerra Mundial. Guerras pontuais pelo mundo passaram a ser uma constante como modo de exercer hegemonia e defender a globalização capitalista sob o manto imperial dos EUA. Refugiados e migrantes se multiplicaram aos milhões abrindo uma nova crise nas relações internacionais e globais. A extrema desigualdade social gerada, para dentro e entre países, e a intensa destruição ecológica, com a crise climática chegando a um ponto de não retorno,  estão nos levando  uma crise civilizatória planetária sem precedentes. Estamos diante do risco de colapso do planeta Terra e da própria humanidade.

São muitas as contradições sociais que a hegemonia do neoliberalismo vem amplificando para os 1% mais ricos e o domínio absoluto do capitalismo. As alternativas democráticas, que geraram alguma esperança, também não foram tão vigorosas assim. Mesmo a democracia social com o Estado de Bem Estar, do após II Guerra, com sua convivência regulada do capitalismo, sem transformações estruturais mais contundentes, não resistiu à investida do neoliberalismo e ao desmonte de importantes conquistas de direitos, pois dependentes do crescimento do próprio capitalismo. Uma contradição em si, limitadora política da democracia. O socialismo real, comandado por um poder burocrático fossilizado e dominante no comando do Estado, autoritário a seu modo, foi incapaz de responder às insatisfações e demandas de suas próprias populações e se rendeu ao capitalismo neoliberal, em 1989. Parecia que as alternativas a isto tudo haviam sumido por completo.

O slogan síntese de domínio neoliberal é exatamente este: “não existem alternativas”. Ele foi cunhado por Thatcher, que conduziu o poder com mão de ferro, impondo as reformas necessárias no Reino Unido, para esta nova etapa do domínio capitalista. Reagan fez o mesmo nos EUA. Aliás, desde a década de 1970, os EUA financiaram golpes e ditaduras pelo mundo, quando necessário, para garantir a hegemonia neoliberal e seu poder imperial. Nesta visão política, o que importava e ainda importa, pois continua, é a total sujeição às regras do “livre mercado”. Indicadores como IDH e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, promovidos pela ONU, apontam problemas e boas intenções, pois são adaptações e concessões das classes dominantes inconsequentes, na medida que são incapazes de gerar decisões políticas multilaterais impositivas. O “capitalismo verde” é o que o nome anuncia, uma maquiagem do neoliberalismo capitalista. O que conta, e muito, para os especuladores acionistas são  os índices econômicos de crescimento, especialmente das ações em Bolsas de Valores, como Wall Street e das principais praças financeiras do mundo eurocêntrico. Para as sociedades, os epeculadores, com olho no situação fiscal, vem propondo menos Estado e menos políticas sociais, não importa a quantos atinge e onde. Na visão do neoliberalismo, só contam indivíduos e suas capacidades em buscar o seu próprio interesse, com um exacerbado individualismo, como medida do sucesso. O problema do profundo fracasso em termos sociais do neoliberalismo é diagnosticado como devido a um suposto excesso de Estado e falta de mais e mais mercado, visto como a única forma capaz de gerar crescimento (definido como desenvolvimento!) e bem estar social duradouro. Só que os fatos e as análises apontam como probabilidade maior a catástrofe humanitária e planetária como resultado da continuidade deste modelo.

Mas, falando em democracia, onde estavam as classes trabalhadoras, os movimentos sociais, os fóruns e redes de cidadania, locais, nacionais, regionais, mundiais em face da hegemonia neoliberal e seu avanço sobre o mundo inteiro? Enfim, está é também uma questão incontornável para as cidadanias ativas – na minha definição - se queremos pensar a democracia diante do neoliberalismo.  Afinal, afirmo e reafirmo que as cidadanias ativas são as únicas forças inspiradoras e capazes de instituir e constituir democracias voltadas para cuidar de gente. Isto as cidadanias o fazem disputando concepções, valores, propostas no seio da sociedade civil e na esfera política estatal, através de sua mobilização e ação política contundente. Conquistando  hegemonia democrática, têm capacidade de gerar um virtuoso processo de transformações, como a própria história tem demonstrado de algum modo.

O fato inconteste a registrar aqui é a reconhecida multiplicação de identidades e vozes de cidadania ativa nesta etapa histórica de hegemonia capitalista neoliberal. Alguns movimentos são memoráveis pelo impacto no seio da sociedade civil mundial com desdobramentos na esfera política estatal. Não cabe aqui mapear tudo, pois o foco central é onde nós, cidadanias ativas brasileiras, nos situamos num processo que também é de mundialização da questão cidadã. Basta lembrar aqui o profundo significado do levante dos indígenas de Chiapas, do México, nos anos 1990, por exemplo. Ele ganhou enorme legitimidade política cidadã e levou a constatar a enorme diversidade e inspiração que os povos originários pelo mundo inteiro significam como forças cidadãs capazes de apontar rumos e transformações necessárias a partir de suas visões de como viver e conviver, entre si e com a natureza. Na região da América Latina, por exemplo, ressurge com vigor algo que sempre esteve presente, o “Bien Vivir” e a “Pachamama”, mas até então pouco conhecido e valorizado fora da região e, pior, nem visível para o grande público. Foi obra de movimentos de povos indígenas andinos a conquista do princípio constitucional da pluralidade nacional na Bolívia e no Equador. No Equador, também foi conquistado, pela primeira vez no mundo, o reconhecimento dos direitos da Mãe Terra.  Versão que dialoga com o Bem Viver da América Latina é o “Ubuntu” da África. Existem muitas outras, em diferentes partes do mundo, com a mesma raiz e capacidade inspiradora para cidadanias ativas. O fato é que nossos indígenas e povos originários, em geral, tem muito a nos ensinar com sua sabedoria histórica sobre os desafios e crises do presente.

Cabe destacar ainda, sem entrar em detalhes, o vigor dos movimentos contra o racismo estrutural e a xenofobia – modalidade atual de expansão do racismo sobre grupos étnicos, culturais e religiosos, em especial. O racismo aponta para relações estruturantes do capitalismo desde sempre, com o colonialismo e o racismo ainda vigente hoje enquanto lógica de exploração e legitimação. Do mesmo modo, os movimentos feministas e LGBTQIA+, com poder e legitimidade de contestação da ordem moralista e dominação violenta existente, estão nos mostrando quanto o patriarcalismo é fundamental para o capitalismo machista que nos explora e domina e que contamina a nós mesmos, nossos lares e famílias, territórios, em todo mundo.

Um aspecto que merece ser lembrado aqui e que ainda nós mesmos, cidadanias ativas, não analisamos na profundidade que merece, é o lugar do movimento sindical e das classes operárias neste capitalismo de especuladores. O certo é que os movimentos sindicais foram centrais desde o nascimento do capitalismo industrial e tiveram durante o século 19 e ao largo do século 20 um papel protagonista, conquistando legitimidade diretiva entre os dominados e explorados pelo capitalismo,  nos países centrais do Norte Global. Mas isto aconteceu  também no Sul Global, de forma mais tardia, como bem demonstra o exemplo do Brasil, entre os países chamados “subdesenvolvidos”. O fato é que hoje ganhou legitimidade uma concepção mais abrangente e includente de trabalhadores e trabalhadoras, todos os e as que vivem de trabalho, tanto operários, como assalariados de todo tipo, uberizados, informais e com trabalho autônomo, camponeses sem terra e com terra, quilombolas, pescadores, etc. Uma concepção fundada no trabalho acabou sendo muito estratégica e ampla e está ajudando a processar isto de forma virtuosa. Novamente lembro as exemplares trajetórias dos movimentos MST e do MTST, no Brasil.  A tarefa política de construção de coalizões e blocos políticos da diversidade no interior das classes trabalhadores pode ser  difícil, mas ela está no nosso próprio seio, de cidadanias ativas. Já acontece.

O fato é que as cidadanias ativas estiveram, de algum modo, sempre presentes e com vigor nestes anos todos do neoliberalismo, desde a sua consolidação como hegemonia capitalista nos anos 80 do século passado. Lembro aqui as mobilizações em torno ao ciclo de conferências da ONU nos anos 90, as reuniões do G7 desde a sua origem, os eventos do BM e FMI, que impuseram as políticas de liberação comercial e ajuste estrutural, e  os encontros da OMC, desde seu nascedouro. Destaco aqui a memorável “tomada da praça” pelos manifestantes do mundo inteiro contra as negociações da OMC em Seattle, nos EUA, em 1999, que levou à sua interrupção. No processo, lembro aqui a formação da Via Campesina, uma das maiores, mais abrangentes e inspiradoras redes mundiais de campesinos e pescadores na atualidade. Para nós da América Latina, cabe lembrar a pressão feita pelas cidadanias nas ruas de diferentes países que levou ao fim do projeto da ALCA de Clinton. Muito inspiradores e renovadores foram o “Occupy Wall Street, nos EUA, o “M15” na Espanha, a “Primavera Árabe”, entre tantas outras mobilizações. Recentemente, as feministas e os movimentos negros tem se destacado no cenário político como poderosas expressões de cidadania ativa em vários países.  

Cabe ainda lembrar a memorável conquista do movimento antiapartheid na África do Sul sob liderança de Mandela. Também cabe aí a onda de governantes progressistas de esquerda que as cidadanias ativas criaram em vários países da América Latina no começo do século 20.

Um destaque especial merece o Fórum Social Mundial (FSM). Surgiu em 2001, no Brasil, como uma novidade no contexto da globalização neoliberal. Com o mote mobilizador de “outro mundo é possível”, o FSM galvanizou as crescentes mobilizações e lutas pelo mundo que contestavam o FEM de Davos, o BM, o FMI, a OMC, o G7, o OCDE, os rumos da EU, a dívida externa dos países do Sul Global. Enfim, a ordem neoliberal mundial, com o seu desmonte de políticas e de conquistas de direitos em nome da ditadura do mercado, esteve no centro dos diálogos e debates do FSM. Foi surpreendente como o ele conseguiu crescer e se expandir por vários países, com eventos mundiais, regionais, nacionais, locais e temáticos. O FSM se autodefiniu como espaço aberto, para incluir a diversidade de cidadanias ativas do mundo, mas se negou a assumir um papel de ator político para denunciar os processos e mazelas do neoliberalismo e poder disputar politicamente outras visões e propostas para o mundo. A perda total de vitalidade do FSM,  com o correr dos anos, demonstra por si a grande autoderrota que nos infringimos como cidadanias ativas frente ao neoliberalismo, sua arrogância, seus paraísos fiscais e suas crises, cada vez maiores. Pior ainda foi perdermos capacidade de ação diante das emergências sociais e climáticas que precisam ser enfrentadas por nós,  acima de tudo. Os conglomerados econômicos, financeiros e os governos estatais manietados por eles não aceitam assumir a sua responsabilidade pelos processos e injustiças ecossociais que produzem.

É neste caldo social e político que voltou a crescer o fascismo, como proposta de direitas em escala mundial. Essencialmente, fora o surpreendente ativismo nas redes e nas ruas, e os sucessos eleitorais que vem conquistando, o “neofascismo” tem pouco de novo e muito do velho fascismo em suas concepções. As suas propostas vão no sentido de radicalizar o neoliberalismo para poucos, fazendo ajustes com perspectiva autoritária, nacionalista e moral, em nome de “Deus, Pátria e Família”, para beneficiar os “bons” e eliminar os “maus e indesejáveis”. Isto implica em impor um “ajuste político pela exclusão social”, pura e simples, das amplas maiorias “indesejáveis”: pobres, indígenas, negros, migrantes, diferentes, fracassados e opositores.

Para isto, no caso do Brasil, o governo assumiu como sua tarefa prioritária o incentivo a toda forma de violência contra todos a serem excluídos, com rearmamento individual, com legitimação de milícias e policias violentas, racistas e assassinas. As propostas vem enlatadas num moralismo vulgar e excludente, em nome dos considerados “bons e dignos”. Atacam o sistema educacional e a cultura, bens públicos que valorizam e ganham com a diversidade do que somos como povo. Ao mesmo tempo, radicalizam o ajuste econômico neoliberal,  atendendo zelosamente as demandas do “mercado”, reduzindo tudo que é considerado gasto social com saúde, combate à fome e miséria e o cuidado em geral. Suas propostas de políticas públicas vão no sentido de favorecer institucional e individualmente aos que buscam acima de tudo o seu interesse econômico e se mostrarem capazes de ter sucesso, mesmo que seja ao arrepio das leis regulatórias. Proposta fascista, como praticado pelo governo passado no Brasil, privilegia em particular os extrativismos de todo tipo, mineral, petroleiro e agrícola, para os exploradores dos recursos naturais, incentivado “a boiada passar” a pau e fogo, segundo a expressão do ministro do meio ambiente. No seu rasto fica a conquista e desmatamento de terras, a grilagem, a contaminação de rios, a agressão exterminadora de povos indígenas, quilombolas, pescadores.   

O núcleo da direita fascista brasileiro, pelo tamanho populacional e territorial do país, se tornou um dos mais estratégicos para a onda de direita que  vem crescendo no mundo. A situação política com Lula presidente é desafiante, mas também de esperança, o que nunca é pouca coisa. Infligimos uma derrota eleitoral de contenção ao fascismo. Mas ele está presente no seio da sociedade civil brasileira. O fato é que temos que enfrentar imediatamente o fascismo, sem perder a visão estratégica fundamental do combate ao neoliberalismo, que o gestou e até foi o mais beneficiado pelo desmonte democrático, violência, destruição e morte que infringiu ao Brasil como um todo. Isto sem contar as nossas heranças históricas do colonialismo e do racismo reativados, que tem raízes estruturais profundas do que somos como país, com chagas ecossociais visíveis nos territórios humanos, urbanos e rurais, do presente.

A busca de democracia ecossocial transformadora como referência política é para nos dar maior potência a nós mesmos, cidadanias ativas, diante dos desafios e transformações que precisam ser empreendidas pelo Estado. Aqui devemos considerar primeiro aquelas ações ecossociais emergenciais, que não podem esperar, como o combate à fome, à violência e ao racismo de todo tipo, o desmatamento e destruição ecológica, especialmente de territórios indígenas e ares de conservação, a contenção legal e penal dos responsáveis pelos desmontes feitos pelo governo fascista. Mas isto precisa ser feito com uma estratégia que vá abrindo o caminho para construir outro Brasil possível, num horizonte que vai se ampliando a cada dia, mais resiliente ecossocialmente e democraticamente, território bom para nós e gerações futuras, sem exclusões, assim como para o planeta e para a humanidade. Nunca podemos esquecer as contradições sociais e forças poderosas e muito ativas que temos pela frente.

É neste quadro que coloco a disputa de hegemonia de uma visão política ecossocial democrática, que supõe a construção de vigorosa e inspiradora cultura como referência hegemônica no seio da sociedade civil. Assunto para próximas postagens...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Princípios, Valores e Sentidos do Viver e Conviver Democrático: DISPUTA DE HEGEMONIA

 

Estamos diante de uma possibilidade histórica real, no Brasil, de renovação democrática. Mas os desafios e obstáculos são muitos. Sabemos que o Governo Lula e sua equipe ministerial, apesar das dificuldades que vão enfrentar no próprio aparelho do Governo Federal (Forças Armadas e desmonte institucional do governo anterior), no Congresso (que obriga à buscar a conciliação política) e a ditadura dos rentistas do mercado (com seu dogma de ajuste fiscal), vai dar o melhor de si e com determinação para reconstruir instituições públicas e políticas, até mais vigorosas que aquelas dos governos petistas passados. Só que a renovação democrática só acontecerá de fato se as cidadanias ativas também renovarem seu ativismo e suas propostas naquilo que só elas podem fazer.

Sei que imediatamente a gente é levada a pensar em “governo participativo”. Por sinal, o Lula já assinou decreto a respeito e atribuiu à Secretaria da Presidência a tarefa de coordenar tudo o que diz respeito à participação social no governo. Nos dois períodos passadas do Lula na Presidência se avançou em espaços de participação, com conselhos de participação de representantes da sociedade civil em muitas políticas – mas não nas “duras” voltadas à economia e o mercado, a raiz do atraso e dos privilégios vergonhosos – e com o ciclo de grandes conferências nacionais, para lembrar as iniciativas mais importantes. Criou entusiasmo e abriu grandes expectativas. O funcionamento foi muito desigual, com alguns bons resultados em algumas áreas, mas gerou igualmente grandes frustrações na maior parte. O melhor do processo de então foi o avanço em debates e propostas, gerando um aprendizado cidadão sobre limites e possibilidades de um governo participativo pra valer. Mas como afirmava o ministro do Governo Lula com atribuições de coordenação, no então, foi mais um processo de “consulta forte” do que de real compromisso do governo com as propostas feitas e encaminhadas pelos conselhos e conferências. Cabe acreditar que desta vez a aposta em “governo participativo” seja algo mais ousado, apesar das dificuldades.[i]

Por mais importante e necessária que seja a participação direta no governo e suas políticas, também nos espaços do Congresso, há uma ação política estratégica para a democracia de alta intensidade que só um bloco histórico de cidadanias ativas em permanente renovação  pode propiciar: forjar uma potente cultura democrática  como imaginário agregador e mobilizador capaz de conquistar hegemonia na sociedade civil, condição indispensável para um governo democrático participativo e transformador. É esta questão, a mais desafiante e, portanto, a mais difícil na conjuntura política e encruzilhada histórica em que estamos, que precisamos enfrentar urgente e consequentemente. E ela depende mais de nós, as cidadanias em ação, do que do Estado.

Para enfrentar um desafio assim é indispensável não minimizar o enorme avanço e suporte que conquistou na sociedade a onda fascista da direita. Descobrimos, até meio espantados, que o imaginário democrático foi posto em questão de forma sistemática. E, pior, vimos que a onda fascista em nome de “Deus, Pátria e Família”, racista, misógina, homofóbica, armamentista, miliciana e violenta conquistou corações e mentes e esgarçou a sociedade. Tudo alimentado por muito ódio e fakenews espalhados de forma sistemática nas redes sociais. Usou o governo para abrir as porteiras e “passar a boiada” sobre territórios, instituições, políticas e  conquistas democráticas desde a Constituição de 1988. E por fim, mas não menos importante, se mostrou muito oportuno e útil para negócios legais e ilegais, especialmente o desmatamento e a grilagem de terras, os garimpos em terras indígenas, os grandes extrativismos minerais e do agronegócio, e o poderoso mundo do mercado dominado pelas grandes corporações econômicas e financeiras.

A cultura democrática viva e transformadora que precisamos para enfrentar tal onda é um desafiante processo coletivo de nos pautar por um modo de ver, pensar e agir democrático. Trata-se de um esforço permanente para a construção de imaginários no seio da sociedade, assentados em princípios e valores de busca do reconhecimento de direitos comuns da liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade, interligados entre si, como bases do pertencimento, cuidado, convivência e compartilhamento, sem exclusões ou discriminações, como cimento agregador e vivência no seio da sociedade civil e de se sentir parte de uma nação. A cultura democrática pode ganhar potência e renovação diante dos  desafios que enfrentamos. Trata-se de priorizar isto como um processo sistemático de criar espaços e formas de diálogo entre nós, as cidadanias ativas, sobre a diversidade de situações e relações vividas, que nos motivam a nos organizar e lutar, sempre em busca por direitos negados.  O saber e o imaginário coletivo desta prática de trocas de vivências, experiências, lutas e reflexões, integrado organicamente, é a base para um pensamento político estratégico do que é e como fazer democracia ecossocial transformadora e disputar hegemonia na sociedade civil. Cultura democrática não é um modelo acabado de sociedade, mas um modo de fazer e uma orientação em busca do possível e do melhor para a maioria e, num certo sentido, para todo mundo. Sempre baseado no poder instituinte e constituinte da cidadania. Por isto, cultura democrática é um processo de empoderamento de nós mesmos que, a partir de nossas lutas, abraçamos a democracia como processo transformador por mais justiça ecossocial.

Conquistar hegemonia democrática é trazer ao centro do viver um modo de pensar e fazer a política baseado na sociedade civil, definindo que Estado/poder e que  Economia/mercado precisamos. Numa sociedade de classes, com suas múltiplas formas de exploração, dominação e exclusão, é um processo contraditório de luta política, permeado pelas relações, estruturas e situações sociais e históricas dadas, com extremas injustiças ecossociais, onde os princípios e valores democráticos apontados acima estão longe de serem compartidos.

Não podemos confundir a última vitória eleitoral do bloco de forças em torno a Lula como resultado de uma hegemonia política democrática. O maior erro na conjuntura atual é menosprezar a onda fascista e de ódio que se implantou entre nós. Criar uma poderosa e transformadora cultura democrática como hegemonia tem como fundamento consentimento ativo majoritário, não apenas eleitoral. Isto supõe um permanente movimento de aprendizado em trocas e em disputas na sociedade de como se ver e perceber a si e todas e todos os demais, os seres humanos e não humanos vivos e da própria base de todas as formas de vida, a natureza, de como pertencer e viver em coletividade compartida, territorial, nacional, regional, mundial, num Planeta Terra único. A hegemonia política de uma visão e cultura democrática será consequente e virtuosa se for capaz de moldar e cobrar do poder as políticas promotores de direitos iguais na diversidade social e, também, formular e executar consistentes políticas para uma economia sustentável, baseada na preservação da integridade dos sistemas ecológicos e biomas naturais, para produzir os bens e serviços que precisamos.

Colocado assim o desafio político, a cultura democrática ecossocial precisa se renovar de forma permanente pela ação das cidadanias ativas, por práticas culturais e políticas no nosso seio de sociedade civil, que qualifiquem uma visão democrática estratégica, onde cabe a valorização da igualdade na diversidade, o combate às discriminações de qualquer tipo e as violências praticadas, a defesa dos comuns naturais e dos produzidos. Isto implica em pensarmos estrategicamente a comunicação e a informação ampla e responsável, contra as fakenews. A disputa de hegemonia é uma tarefa essencialmente política a ser feita no seio da sociedade civil. Será mais potente quanto mais procurarmos os elos comuns da vibrante diversidade que existe entre nós mesmos, cidadanias em ação.  

 

 

 

 

 

 

 



[i] Cabe lembrar aqui a reflexão sobre participação e governo participativo feitas por Olívio Dutra, do PT, que como prefeito de Porto Alegre introduziu o “orçamento participativo”, uma experiência mais direta e consequente de participação, com repercussão nacional e mundial. No pequeno período como Ministro das cidades no primeiro Governo Lula, Dutra não conseguiu avançar a respeito. Ver entrevista de Olívio Dutra a Glauco Faria, para o Brasil de Fato. Acessado  no blog Combate Racismo Ambiental, de 6 de fevereiro de 2023.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

As Intransferíveis Tarefas da Cidadania Ativa

Inicialmente, quero clarificar os conceitos de cidadania que uso e seu sentido. Em democracia políticas reais sempre acaba sendo estabelecido, em suas constituições, um conceito político de cidadania, como sua única força instituinte e constituinte, base legal e jurídica dos direitos políticos iguais, em especial o de votar e com isto definir mandatos temporários para chefes de governos e legisladores, como seus representantes no Congresso. Fundamental, sem dúvida, mas insuficiente. Sempre é possível ter cidadania legítima clamando por democracia, sem ter nenhum reconhecimento constitucional/legal, como é o caso predominante de quem luta contra ditaduras e fascismos. E sempre haverá cidadania política para além do voto legalmente definido em democracias de qualquer tipo, das meramente eleitoreiras até aquelas de alta intensidade, de mais e mais democracia. Aliás, nunca podemos esquecer que o que diferencia democracias transformadoras de democracias de baixa intensidade é a cidadania ativa e se ela está em ação para buscar mais direitos iguais na diversidade, contra negações, exclusões, violações e invisibilidades existentes, assim como para não abdicar de seu direito intransferível de força instituinte e constituinte de votar e lutar por direitos e por políticas públicas voltadas aos direitos.

Para dar conta analítica deste fato político em democracias uso o conceito de cidadania ativa ou, também, cidadania em ação como sujeito político coletivo. A cidadania ativa não depende do Estado, mas o Estado democrático depende dela. Quanto mais cidadania ativa, mais democrático será o Estado, não o contrário. Tal concepção me leva a falar em cidadanias ativas, na diversidade ou no pluriverso de modos de ser cidadania ativa como sujeitos políticos coletivos, não estatais, que cabem na  sociedade civil, a dinamizam politicamente disputando a hegemonia, na definição dada por Gramsci. Cidadanias ativas não necessariamente são reconhecidas e legitimadas pelos estatutos legais e pelas políticas estatais, onde as relações políticas são de forças de poder estatal, que Gramsci define como relações militares. Ainda cabe destacar que as  concepções de cidadania, apontadas aqui, não são e nunca foram unanimidade, em nenhum lugar do mundo. Independentemente de conceitos, só a cidadania em ação na sociedade civil e mirando incidir legitimamente no Estado tem capacidade para fazer parte da disputa virtuosa em democracias, levando a transformações estratégicas. Penso que pensar e avaliar Estados de democracia liberal, socialdemocracia ou democracia socialista, entre tantas, importa pois são diferentes. Porém, isto é olhar para o Estado e a partir dele, mas não para quem pode politicamente qualificar a democracia como modo de ação e transformação ecossocial, em última análise. Esta é a forma como venho me apropriando conceitualmente das importantes contribuições a respeito feitas pela memorável analista e ativista Rosa Luxemburg.

Um desafio democrático de ordem estrutural, que nunca dá para ignorar, diz respeito às classes dominantes e sua atuação. As exclusões e destruições ecossociais, com violência, racismo e patriarcalismo são causadas pela estrutura de relações e processos econômicos e sociais com uma lógica de exploração e dominação a serviço das classes proprietárias privilegiadas.   Esta questão fundamental extrapola o foco principal da análise aqui feita: concentro-me nos sujeitos coletivos que se expressam como cidadanias ativas dos dominados, explorados e excluídos em busca dos direitos ecossociais iguais, vistas como forças políticas impulsoras da transformação possíveis em democracias. Mas temos que analisar e ter presente sempre o poder de tal realidade estrutural na conformação de forças políticas, no nosso caso o Brasil, pois a transformação democrática ecossocial acontecerá realmente se chegar nas relações sociais de classes,  nos processos e nas estruturas que organizam o modo de produzir e se apropriar de bens e serviços na sociedade como um todo. Os setores dominantes também se constituem e se expressam como sujeitos coletivos para manter seus privilégios de classe e, se possível, impedir ameaças a seu domínio e para desconstruir conquistas democráticas das classes populares, o “povo” na expressão política de Lula em sua posse. Classes dominantes estão sempre presentes nas correlações de forças políticas em parlamentos e governos democráticos. Atuam através de suas organizações e associações públicas, mas mais ainda por financiamento e compra de “lealdades”. Suas práticas vão desde os financiamentos e controle de meios de comunicação e, cada vez mais, de redes sociais, para difundir seu modo de ver e seus valores. Na esfera estatal, escolhem prioritariamente defender seus interesses de classe através de seus lobistas eleitos com assento no Congresso e intensa atividade de negociações, nem sempre tão transparentes, nos gabinetes do poder governamental.

Voltando ao foco central da análise, a renovação democrática nesta conjuntura do Brasil, para acontecer de forma virtuosa precisa ser pensada estrategicamente como uma tarefa compartida. De um lado do Estado, onde temos o Governo Lula, seus ministérios e políticas, e aquele “arranjo” possível para a governabilidade no  Congresso Nacional, com suas atribuições legais, e do Poder Judiciário enquanto zelador da legalidade; de outro, está o pluriverso de cidadanias ativas, para além da cidadania eleitoral. Ou seja, de modo tout court, pelo voto ganhamos a eleição legítima e botamos Lula lá, com uma quase exemplar equipe ministerial, depois de tudo que aconteceu de desconstrução democrática e ameaças do governo de vocação fascista manifestada publicamente.  Mas não conseguimos a mesma vitória eleitoral para a composição do Congresso Nacional, dominantemente de direita e muitos declaradamente apoiadores de uma “solução” autoritária. Uma composição assim obriga o Governo Lula a conciliar com diferentes e até opostos e suas múltiplas agendas lobistas. Isto sem contar a difícil situação política em grande parte Estados da Federação. Mais uma vez, afirmo e reafirmo que a democracia de mais intensidade que precisamos depende acima de tudo da capacidade política de cidadanias ativas de pressionar e “desempatar” relações de forças na esfera estatal, contando com a  cumplicidade estratégica do Governo Lula, nos quatro anos de seu mandato.

A tarefa de derrotar e eliminar ou, ao menos, conter a ameaça fascista e seu ódio apenas está começando. Não sabemos se o modo de democrático de construir uma nação mais ecossocialmente justa, includente e de “viver saboroso” vamos conseguir criar maior resiliência democrática no curto prazo de quatro anos. Afinal, forças da direita autoritária tem raízes fortes entre nós e contam com o apoio de fascismos que se propagam como uma onda vigorosa e perigosa pelo mundo inteiro contra democracias. Porém, não é só a direita fascista que nos ameaça. Temos uma poderosa direita que se aliou e se beneficia do “capitalismo de acionistas”, voltado exclusivamente à acumulação e globalizado pelo neoliberalismo. Esta etapa dominante do capitalismo hoje em dia levou o próprio capitalismo a um impasse sem saída. É inaceitável o nível absurdo de desigualdade social a que estamos chegando no mundo todo, com ampla destruição da base natural de vida, passando todos os limites planetários,  acelerando a mudança climática e a destruição da biodiversidade, levando o nosso bem comum, Planeta Terra, a uma provável inviabilidade de garantir a sobrevivência da própria humanidade. O que não podemos é esperar para ver. Este é o desafio e a possibilidade de uma democracia mais intensa para enfrentar o fascismo e o capitalismo da barbárie (pregando que é civilizado!) que o sustenta. Dado o tamanho territorial e populacional do Brasil, podemos sim nos constituir como país de avanço dos direitos iguais assentado no cuidado, convivência e compartilhamento de todas e todos e com a natureza, levando a economia e a sociedade brasileira mais democrática a se tornarem uma grande contribuição à sustentabilidade do planeta e à vida da humanidade inteira.

Ficando em nosso Brasil, mesmo se a questão é de ordem planetária, temos tarefas intransferíveis para a cidadania brasileira na conjuntura imediata. Afinal, enfrentamos um monstro político de inspiração autoritária e fascista. O líder foi derrotado. Mas estamos longe de celebrar vitória sobre o que surgiu no seio da sociedade civil como “direitas ativas” se sentindo legitimadas, compartilhando um discurso de ódio, intolerância, racismo, machismo, rearmamento individual, ataques às áreas protegidas e territórios de povos tradicionais. Tudo isto foi incentivado desde 2016 e amplificado com o governo do inominável. Sua estratégia política, não nos iludamos, teve  por base um processo bem definido de criação e difusão sistemática de fakenews e mensagens por redes sociais contra  a democracia e os pequenos avanços conseguidos desde o fim da ditadura militar em 1985. O pior é que conseguiu agregar desde saudosistas da ditadura militar, contando com uma não disfarçada simpatia e cumplicidade das Forças Armadas, com amplos setores do poderoso agronegócio e com os novos “piratas” do setor capitalista desregulado que temos, com amplos setores de classes médias que se sentem ameaçados em suas pequenas conquistas individuais, até com setores das classes populares manipulados pelos pastores mercadores da fé. Enfim, estamos diante de um grande e complexo processo alimentador do autoritarismo no seio da população brasileira, que precisa ser bem analisado, distinguindo o que é orgânico do ocasional, dada a conjuntura que vivemos e os imaginários fascistas amplamente difundidos. Sim, aconteceu um enorme retrocesso em sonhos e perspectivas, nos desafiando a renovar e dar mais sustentabilidade à democracia como modo de viver e enfrentar nossos múltiplos desafios e problemas, para além da central conciliação embutido na Constituição de 1988. Isto exige determinação e disputa ideológica e política, sem tréguas e anistias ética e politicamente inaceitáveis.

Para analisar, propor e nos organizar como cidadanias ativas na renovação democrática que se impõe, vejo várias frentes principais de ativismo, estreitamente interdependentes entre si e sempre com raízes fortes nos territórios humanos e de cidadania em que vivemos, o chão da sociedade civil. Uma condição sine qua non de cidadanias ativas, como tarefa coletiva permanente, totalmente independente de Estados e mercados,  é  se constituir, se fortalecer e incidir enquanto cidadanias ativas diversas a partir de e nos próprios territórios. Não existe cidadania ativa como coletivo humano territorial sem sujeitos que se vem como titulares de direitos iguais na diversidade, que lhes são negados de alguma forma pelas relações e processos ecossociais estruturais e políticas existentes, com destruição sistemática da integridade da natureza, impondo exploração, exclusão, precariedade, desigualdade e violência. Como condição de conquistar direitos, cidadanias ativas se organizam e buscam formas de lutar a partir de suas vivências, carências e formas de dominação a enfrentar. Trata-se de um aprendizado coletivo em busca da emancipação e da autonomia feito na luta, que acaba permitindo ver a si e todos as e os demais na mesma situação, de se sentir parte e juntos definir o que e como fazer, construindo no processo uma identidade social e política  compartida entre os e as participantes. É um processo virtuoso em que se forjam sujeitos coletivos solidários, condição de qualquer ação cidadã em democracias vivas.

Como desafio para cidadanias ativas, esta frente de ação é fundamental, mas apenas uma base. Existe muito a celebrar a respeito, mas, também, muito ainda a fazer neste nível. O desafio maior para cidadanias ativas é superar a fragmentação de agendas e lutas, sem negar suas legítimas identidades e vozes, fragilizando-as de algum modo. É tarefa exclusiva de cidadanias ativas se articular e formar movimentos amplos entre si para maior impacto nos vários níveis, do territorial até o plano nacional, regional e mundial, com identidade coletiva compartida. Um outro nível e frente estratégica democrática no seio da sociedade civil é criar coalizões entre diferentes cidadanias ativas, organizadas em redes e fóruns, com propostas e agendas comuns, buscando espraiar-se e adesão em territórios urbanos e rurais. Não confundir esta frente com formação de partidos, também necessários em democracia e que podem tornar-se mais virtuosos quando impregnados pelo ativismo cidadão, como temos exemplos no Brasil. Há muito a fazer na construção de um bloco histórico de cidadanias ativas para construir e disputar uma cultura democrática e ser uma hegemonia política definidora de horizontes e rumos, para ser reconhecida amplamente no seio da sociedade civil, alcançando os partidos de esquerda, para além do governo e parlamentares de turno.  

Não dá para confundir tudo isto na atual conjuntura com a participação política institucional em espaços do Governo Lula e do Congresso, através de conformação de conselhos paritários, comissões, conferências, consultas. Isto é bom retomar, como Lula já está implantando e buscando para ser um “governo participativo”. Isto, certamente, pode dar muita virtude ao Estado. Mas é  insuficiente. A maior contribuição de cidadanias ativas é na criação de uma potente cultura democrática no seio da sociedade civil e no universo das redes sociais, com ativa e permanente comunicação, eventos culturais, universidades e todo o aparato institucional da educação, onde se encontram os ativistas culturais e educadores que precisamos neste momento. Trata-se de enfrentar o discurso de ódio que é potencializado pelas direitas, tanto as declaradamente fascistas como todas as demais, especialmente as das classes estruturais identificadas como “forças do mercado” e os extrativistas, mineradoras e agronegócio, pois daí nunca saiu e nem vai sair mais democracia.

Enfim, a disputa de hegemonia já começou mas não dá para dizer que estamos preparados. Temos capacidade e determinação para a disputa? Ou vamos esperar o Lula fazer? Penso que a bola está no nosso campo e não podemos errar como já erramos.