domingo, 24 de março de 2024

Por Que a Nossa Democracia Continua Encurralada?

 

Volto a uma questão central em minhas análises e reflexões sobre a democracia de baixa intensidade que temos. A conjuntura política atual me impõe tal questão. No início do Governo Lula 3 levantei a hipótese do desencurralamento da democracia brasileira como um necessidade e uma possibilidade, desde que...houvesse  tal objetivo estratégico e vontade política. Mas parece que estamos mais patinando do que avançando com determinação no enfrentamento de uma questão central para sonharmos com uma democracia ecossocial transformadora, em busca de direitos de igualdade na diversidade, como forma de cuidar de gente e da natureza.[i]

Já se foram um ano e alguns meses do Lula 3 e até agora não vejo sinais de desencurralamento a partir do Poder Executivo, que recebeu nosso voto vitorioso na última eleição. As maiores novidades ainda continuam sendo produzidas pelo Poder Judiciário, num lento mas virtuoso processo institucional, que cabe a ele mesmo, de desmonte e condenação dos responsáveis pela trama criminosa de golpe que vinha sendo armado desde o Palácio do Planalto, pelo governo da extrema direita. Seu papel é este mesmo, dentro da institucionalidade democrática. Mas isto tudo é pouco diante dos desafios que temos para voltar a acreditar e sonhar que “outro Brasil é possível”. Retomada de políticas sociais, praticadas no período dos governos petistas de 2003-2016, vem se mostrando importante, mas por si só é pobre para a reconstrução democrática necessária. Precisamos, sobretudo, voltar a pensar e construir estrategicamente um projeto de país de democracia viva, que supõe disputar e conquistar hegemonia democrática desde o chão da sociedade. Lamentavelmente, tal tarefa é adiada, em nome da governabilidade. É isto que queremos? Ficar patinando e se contentando com pequenos avanços aqui e ali? Deixar a extrema direta definir a agenda e o quanto dá ou não dá para avançar? Isto não é ter um projeto democrático!

Será que o Governo Lula tem alguma estratégia para romper com o que nunca foi rompido politicamente e que impede  a democracia brasileira de avançar? Afinal, se houve o golpe de 2016 e depois a derrota eleitoral, em 2018, e um governo de extrema direita com uma agenda autoritária e fascista entre 2019-2022 é porque nossa democracia ainda não conseguiu extirpar o câncer destrutivo que vem lá da ditadura. Os grandes avanços na Constituição de  1988 não foram capazes de impedir a “conciliação de interesses e forças” como regra institucional de governabilidade.  Ela se manifesta no imaginário poiticamente fraco, que não nos permite avançar em “memória, verdade e reparação”, no controle democrático das Forças Armadas, portanto na segurança cidadã, nem num elemento fundamental  que é ter um Congresso Nacional  com um genuína representação da diversidade do que somos como povo e nação.

Propor o “avançar com calma” é não romper o encurralamento da democracia. Pior do que isto, é não ter perspectiva de real mudança. Evitar o enfretamento político somente com composições caso a caso, cedendo sempre aqui e lá, em votações no Congresso é se entregando ao poder do Centrão conciliador, “das bancadas do agronegócio, da mineração, da bíblia e da bala”, não é uma estratégia de desmonte do mal antidemocrático. Pequenos avanços combinados com concessões só são vantajosos para a estratégia da extrema direita e suas bases, contando com o Centrão fisiológico em seu apoio. Isto é um sinal desmobilizador, que não nos incentiva a participar para romper correlações de forças na intensidade e determinação necessárias, sabendo que temos as estratégicas eleições municipais deste ano, nos territórios locais em que vivemos todas e todos.

Sem dúvida, como cidadanias ativas não estamos fazendo a nossa parte, pois também estamos encurralados e nem sabemos onde e como incidir a partir do chão da sociedade. Queremos  desencurralar o governo e livrá-lo das artimanhas que diariamente lhe são impostas para governar, mas precisamos de sinalizações de rumos possíveis. Nossas lideranças de movimentos sociais e de partidos de esquerda parecem estar esperando por algo, quando deveriam assumir seu papel com mais vontade e garra.  A disputa de ideias está como que adiada, apesar do pipocar de iniciativas as mais diversas entre nós mesmos, porém sem maior impacto no seio da sociedade civil.  O imaginário caldo de visões, análises e ideias, criado pela difusão sistemática de fakenews, articulada pela extrema direita através de redes sociais, penetra no cotidiano de grandes contingentes da população. Estamos diante de um desafio estratégico, que não é fazer o mesmo de nosso lado, mas fazer com responsabilidade, criatividade e determinação a disputa de ideias e propostas.

 O fato objetivo é que não vemos sinais e nem sentimos vontade por parte de nossos representantes lá na esfera do poder estatal em relação a tal questão estratégica. Creio que os setores mais organizados das redes de cidadanias ativas concordam comigo de que  não foram abertos verdadeiros canais de comunicação, participação social  e diálogo virtuoso para nos mobilizar nas ruas em torno a propostas que valham a pena. Não existem dúvidas, na minha análise, sobre o quão fundamental que foi a vitória eleitoral de 2022. Mas o 8 de janeiro de 2023 mostrou a cruel realidade política polarizada que temos. E o que nos é passado pela estratégia governamental é para ter paciência... que os bons resultados virão... algum dia. Virão mesmo? 

Celebrar algo aqui e lá é não ter estratégia de enfrentamento da disputa de propostas e de políticas para a nossa democracia encurralada há muito tempo. O trabalho político fundamental está longe de se limitar às necessárias  negociações democráticas no Congresso, que é parte da institucionalidade, mas não é espaço de monopólio da política capaz de fazer avançar as coisas. A disputa democrática para valer se faz no chão da sociedade e não lá no Planalto!

O que está sendo produzido e comunicado pelo Governo Lula não está sendo no tamanho e na direção necessária.  Os índices de aprovação do governo, em baixa, demonstram muito bem que algo fundamental não está funcionando.  Fazer bom discurso lá fora ajuda e aumenta nossa autoestima,  mas... não desencurrala a democracia aqui dentro. Também pouco ou nada ajuda a mera retomada de boas políticas, sem um verdadeiro desmonte das ruins e, sobretudo, sem inovações e novos horizontes. Pior de tudo, ficamos de fora e não temos  nenhum sinal virtuoso no desmonte  do cruel arcabouço fiscal feito sob medida para a “convivência” com o parasitário financismo dos 1% de especuladores, a maior demonstração que continuamos com uma agenda neoliberal antidemocrática, limitante fundamental para avanços em mudanças econômicas democraticamente necessárias.

A sensação que está no ar é que a estratégia do Governo Lula 3 é mais de composição com o Congresso e menos de composição com a cidadania que o elegeu e que precisa ser alargada, para realmente evitar que a extrema direita volte. Temos um inimigo claro a enfrentar para poder avançar com uma democracia  ecossocial capaz de realizar transformações: o bloco da direita autoritária, sua estratégia e seus apoios fortes entre empresários e até no meio popular, sobretudo pela estratégia das igrejas de teologia do empreendedorismo e sucesso individual. Apostar numa estratégia de “desmonte  da polarização” escancarada na sociedade e no ambiente político  é deixar uma avenida aberta para a direita antidemocrática e suas agressivas estratégias de comunicação, com muitas inverdades, mas eficazes na construção do ambiente político, como nos lembra o Altman. [ii]

Uma questão intrigante é já ter passado quase um terço do mandato de Lula 3 e ainda não termos retomado e renovado um pacto amplo entre as forças políticas democráticas com mandatos, as lideranças partidárias, especialmente da esquerda, mas também muitas do centro democrático. Temos necessidade de um potente projeto inspirador para o Brasil. Mas projeto que precisa reconhecer  o fundamental papel das cidadania ativas, suas redes e fóruns, verdadeiros celeiros de iniciativas e ideias, com elaboração e disputa de propostas. São as cidadanias ativas organizadas que se articulam virtuosamente com expressões territoriais e locais, nas cidades, periferias, campos, rios e matas. Um potente projeto de democracia só poderá ser inspirador e mobilizador se valorizar a vibrante diversidade e potencialidade das milhares de iniciativas territoriais locais, no enfrentamento das questões cotidianas, onde a vida real se faz. Afinal, penso que concordamos que a democracia que queremos precisa cuidar de gente e da natureza, como sua razão de ser.

Mas voltando ao mal-estar com a perigosa continuidade do encurralamento da democracia, como defino, não podemos esperar para ver no que vai dar. Ou assumimos de forma mais incisiva a tarefa da reconstrução com Lula e seu governo ou o deixaremos amarrado aos impasses do Centrão e das investidas da direita autoritária. Pior, vamos continuar tendo um governo que se vê obrigado a contemporizar com as Forças Armadas e nos pede para esquecer o que foi a ditadura. Mas, também, não podemos simplesmente nos render ao agronegócio, mineração e petróleo, porque daí nunca virá outra economia voltada ao cuidado de gente e da natureza.

Extraio uma indicação imediata de algo  a ser feito de conversas de conjuntura, de que participo, junto com um pequeno grupo de parceiros de várias décadas, verdadeiros cúmplices da empreitada por um outro Brasil. No grupo temos lembrado a necessidade de fortalecer nossos meios alternativos de comunicação, que funcionam como referência para cidadanias ativas. Mas são frágeis. Como combatemos os “donos de gado e gente” não podemos esperar daí financiamento necessário e que amplie  o impacto de nossos meios na tarefa de disputa de  ideias e propostas. Estamos dependentes dos fracos apoios solidários, fundamentais para a autonomia política, mas por si só são insuficientes. Para ampliar impacto dependemos da atenção e comprometimento estratégico de forças políticas democráticas, especialmente as que tem acesso ao Estado, pois do outro lado nada virá. São destinados importantes recursos públicos aos grandes meios de comunicação, especialmente TVs, em geral mais inclinados à direita e centro-direita, pouco ou nada sensíveis às iniciativas, agendas e propostas de cidadanias ativas. O pior é que os meios mais importantes para o ativismo democrático são ignoradas pelas políticas públicas. Mas estes meio voltando atenção às cidadanias ativas organizadas, com potentes narrativas e avaliações de quem está com a gente, são estratégicos para a questão que levanto nesta postagem.

Termino, lembrando que não se trata de submeter as iniciativas a uma determinação e orientação política governamental. Pelo contrário, trata-se de reconhecer a potência democrática que brota da sociedade civil em termos de produção de análise de propostas de qualidade, muitas vezes até com críticas construtivas aos responsáveis políticos do nosso campo. Não conseguiremos desencurralar a democracia se tais iniciativas foram deixadas  na sombra, entregues à própria sorte. São estas iniciativas que privilegiam a investigação dos sinais virtuosos que brotam do chão da sociedade. Desconhecer isto é um grande risco para a tarefa do necessário desencurralamento e, sobretudo, de disputa de hegemonia democrática ecossocial de direitos iguais para todas e todos. Está dado o recado, para quem está disposto a ouvir!

 



[i] Nas minhas postagens mais antigas no blog desenvolvi com mais profundidade o que defino como encurralamento da democracia e indiquei pesquisas e artigos meus a respeito.

[ii] Lembro o Breno Altman aqui, pois foi ouvindo uma recente participação dele numa live (durante na sua viagem pelo Nordeste do Brasil, para lançamento do seu livro Contra o Sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista) ele enfatizou esta questão estratégica, mas de um modo muito mais adequado do estou fazendo. Infelizmente não tenho a referência exata. De todos os modos, me inpirou para retomar o veião do encurralamento democrático que venho explorando há tempo.

terça-feira, 12 de março de 2024

A Importância da Análise de Conjuntura Para Ativistas: um Saber Fazer Essencial

Tenho a sensação que, como cidadanias diversas, estamos atolados, literalmente. Não estou me referindo, no momento, às chuvas torrenciais em boa parte do Brasil, algo alarmante em si mesmo, pelos sofrimentos e estragos para muita gente, sinal evidente de mudanças na integridade do ecossistema climático. Meu olhar aqui, mais imediato, é ao perigo do atoleiro político, à falta de um claro protagonismo da ação política cidadã democrática ecossocial na atual conjuntura nacional. A vitória eleitoral de 2022 foi fundamental, mesmo apertada como foi. Mas as forças inimigas da democracia estão vivas e muito ativas. O 8 de janeiro de 2023, apenas uma semana após a posse foi um susto. Mas o fato essencial é a complexa rede de cumplicidades e financiamentos que foi criada pela extrema direita e que alimenta o ativismo político de seus seguidores.

O Judiciário, a Polícia Federal e a Procuradoria Geral estão fazendo a sua parte, demonstrando certa fortaleza das instituições que construímos democraticamente nos últimos trinta e poucos anos. Mas...,  democracia viva,  transformadora, de direitos ecossociais democráticos na diversidade,  só avançará e se firmará se as cidadanias ativas a agarrarem como seu projeto. As instituições políticas tem que fazer a sua parte, mas o farão se as cidadanias o exigirem, simples assim! E onde estamos? O que estamos esperando? Vamos simplesmente reagir aos atos dos que temos como inimigos a combater? Por que não buscamos uma agenda mais consistente, que nos empodere, ao invés de nos comparar aos que declaradamente são forças antidemocráticas e contra qualquer mudança substantiva, além de apoiados por criminosos.

Vou destacar alguns aspectos essenciais, que precisamos dar mais atenção, com análise e pressão política. Aliás, a diversidade de visões de tais questões precisa ser posta na mesa e discutida, pois todo mundo que busca transformação e justiça ecossocial é essencial para um vigoroso processo de elaboração de um pensamento estratégico. Não adianta ficarmos reclamando que o Governo Lula III precisa ser mais ousado, que está devendo transformações mais virtuosas aqui dentro, pois a boa performance lá fora ajuda e recupera a autoestima nacional, mas nada transforma aqui no país. Temos que reconhecer que, na institucionalidade política democrática que temos, está difícil para o governo romper a barreira – verdadeiro atoleiro político – que as forças do Centrão impõem desde o Congresso. Além disto, temos que ter presente o peso do financismo especulativo na definição da política monetária e fiscal do país, desde o Banco Central e seu Conselho Monetário, amarrando o Ministério da Fazenda. Estamos diante de uma espécie de câncer corrosivo da economia do Brasil, pois o financismo nada produz, só suga os recursos que seriam fundamentais para a construção de políticas transformadoras nas diferentes áreas da vida coletiva.  As muitas iniciativas governamentais não tem como avançarem esbarrando nas imposições e amarras do poder dos especuladores financeiros, das forças políticas do Centrão e da direita fascistóide.  

Poderes reais na sociedade se enfrentam construindo poder democrático e com inspiração transformadora. Como cidadanias com poder de voto, ganhamos a eleição em 2022 e elegemos Lula, mas numa margem bastante apertada. Mas isto não foi e nunca será suficiente, pro si só, para ampliar o poder político e para avançar em mudanças essenciais. Bem, basta olhar para ver: decididamente, nada de realmente transformador está acontecendo, apesar de retomada de muitas políticas virtuosas já implementadas no passado. Não penso que isto seja suficiente para nos livrar das ameaças fascistas, da violência, destruição, racismo, machismo e exclusão, nem da escandalosa desigualdade social.

Sei que as análises necessárias - histórica, antropológica, social, política e econômica - enquanto tais, não mudam nada, por melhor que sejam, pois só podem diagnosticar, apontar problemas e, nem sempre,  indicar algumas pistas para possíveis transformações. Mas quando associadas  e motivadas pela ação de cidadanias ativas – o caso de análises de conjuntura por ativistas, como o Betinho lembrava – tem a virtude de empoderar para ação. Análises produzidas de forma compartilhada, com intencionalidade democrática, emancipam o pensar de ativistas e, ao mesmo tempo apontam caminhos a seguir, tanto para ação no seio da sociedade –  na disputa de ideias, valores, princípios, propostas, buscando construir hegemonia -  como para participar de eleições, de espaços na implantação de políticas e para a pressão sobre as instituições governamentais e parlamentos. Isto é o que pode, e de fato faz, criar um pensamento estratégico voltado à ação, transformador. Daí a importância da análise de conjuntura, da situação concreta, num esforço coletivo voltado pra saber onde e como incidir. Ela precisa começar nos círculos de amizade, de proximidade,  de lazer, de trabalho, num ato prazeiroso de viver e compartilhar a vida. A análise de conjuntura vira  essencial nos grupos de ativismo cidadão, instituídos ou não, formando associações, redes, fóruns. Sem análise permanente nunca conseguiremos disputar e fazer a luta política que nos cabe – a disputa de hegemonia de um pensamento democrático transformador para garantir direitos ecossociais iguais na diversidade de cidadanias e de territórios do país que temos.

O fato é que está no ar uma sensação de espera, sem estar claro o que esperamos. Enquanto isto, o financismo impõe regras econômicas, monetárias e fiscais. O Centrão, por outro lado, avança com suas demandas das bancadas corporativas e de redutos eleitorais,  ganhando poder de controle sobre o governo federal.  E a onda fascista na sociedade mostra a sua capacidade de tomar as ruas. Além disto, os estrategistas do fascismo tem um plano claro para as eleições municipais deste ano, buscando  ampliar o seu  controle sobre  a base territorial onde vivemos todas e todos, que de certo modo organizam o nosso próprio cotidiano. Bem, territórios onde milicianos, criminosos e polícias cúmplices – aliadas de primeira hora do fascismo armado e destruidor -  tem um super poder real para afetar a vida de todos, matando muita gente no seu caminho. O que estamos fazendo a respeito como cidadanias ativas democráticas? Este chão é a base. Não podemos menosprezá-lo numa estratégica efetiva de construção e transformação democrática.

Reconheço que não faltam resistências e iniciativas cidadãs muito diversas e virtuosas a partir dos territórios. Em geral, se constituem para lutar por causas e direitos fundamentais na vida cotidiana: contra a violência, por  acesso à água e ao esgoto, habitação, saúde, creche e educação para filhas e filhos, contra tráfico de drogas e domínio de milicianos, por transporte decente, renda, direito à cidade, até para iniciativas de produção agroecológica em terrenos baldios nas periferias ou territórios de vida no campo, sempre para produção e acesso a alimentos de qualidade. E por aí vai a prática cidadã de resistência, quase sempre sob liderança de mulheres. Agenda concreta, tão concreta como a vida. Mas, em geral, algo um tanto “invisível” para os poderes instituídos estaduais e municipais, que agem mais como “bombeiros” em emergências – temporais e inundações, crimes escandalosos, etc. – quando não são eles mesmos os agentes dos vários problemas nos territórios da periferia, com ações policiais de extermínio, como vemos diariamente nos noticiários.   

Já temos conhecimento acumulado sobre as virtudes emancipatórias da multiplicidade de  resistências enraizadas no territórios locais, de um saber-fazer fundamental para a construção de práticas baseadas em princípios e valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, indispensáveis para uma sociedade de bem viver, de viver saboroso. E temos a inspiração do que nos propôs Paulo Freire como sendo isto a base da emancipação política e da construção de hegemonia democrática.

O que nos falta, então? Ouso dizer que não estamos valorizando estrategicamente e suficientemente a construção do tapete coletivo de tais experiências virtuosas, tapete grande e forte, que nos entrelace e dê força política diante dos desafios que temos pela frente. Precisamos “olhar mais para a planície, e menos para o Planalto”, mas sem descuidar dele. Nossa força está aqui, na planície onde levamos a vida. Está força só chegará lá com poder para influir politicamente se estiver forte aqui! Neste sentido, na tarefa da construção do tapete coletivo, destaco que o que temos de mais virtuoso e promissor são o MST e o MTST, junto com Povos Indígenas e Quilombolas, com sua história desde os territórios. O movimento sindical surgiu com vigor e foi fundamental na redemocratização, mas não soube se reinventar diante da avassaladora globalização e seu financismo parasitário, nem diante do extrativismo e do agronegócio de características coloniais, dada a sua prática de expansão pela conquista e destruição de nosso grande território.

Termino reconhecendo que, finalmente, surgiu um esforço de organizar um ato amplo de cidadanias de esquerda em defesa da democracia. Mas qual é exatamente a bandeira mobilizadora e unificadora? Qual é a nossa agenda? Não podemos simplesmente reagir à provocação feita pela direita fascista, o que será um desastre anunciado, no meu modo de ver a conjuntura. Precisamos dar as costas para eles e fazer o que até aqui não fizemos: retomar o protagonismo nas ruas com bandeiras que tem sentido agregador para a diversidade de identidades e vozes de cidadania pelo Brasil afora. Precisamos olhar mais para o chão em que vivemos e, talvez, menos para o drama que se desenrola nas instituições. O desempate se não vier do chão da sociedade, simplesmente não virá! Mas, de todo modo, é de louvar o despertar, a intenção de buscar caminhos, de agir como cidadanias, condição para uma verdadeira conquista de hegemonia. Antes tarde do que nunca!

A análise de conjuntura não substitui a ação cidadã, pois ela mesma é um momento de construção da ação, da incidência política, e, ao mesmo tempo, um momento de avaliação para nova ação... O ativismo cidadão é um modo de agir, viver em coletividade, em células democráticas. Quando tais células se agregam organicamente e com uma estratégia de conquista de hegemonia, tornam-se irresistíveis. As “redes sociais” podem ser um privilegiado espaço como território de disputa de ideias,  do modo de nos agregar e de adquirir força. Estamos fazendo o necessário?

  

segunda-feira, 4 de março de 2024

Momento de Perplexidades

Sinto-me sem visão clara para definir uma direção do que fazer nesta conjuntura. Claro, ação individual é apenas a expressão de uma atitude ética de viver e agir, pois o que conta, em última análise, é o processo coletivo, algo como uma onda que se move e arrasta tudo e todos. No entanto, como ativista e analista, que assume buscar sinais e apontar possibilidades que tenham sentido, nas mais diferentes conjunturas, é se sentir numa espécie de dever de  olhar com lentes afinadas o que se passa no cotidiano, pesquisar, auscultar, mapear ações e reações, examinar céus, rios e mares, florestas, o burburinho cotidiano das cidades, as oscilações dos mercados especulativos, o jogo incansável dos que estão exercendo o poder político, o vai-e-vem da vida,  sempre em busca de brechas sobre o que precisamos fazer,  onde incidir e como avançar. É o que o coletivo – a que a gente pertence de modo afetivo, solidário, e de proximidade territorial e afinidade política – espera de umas e uns, de outras e outros, cada qual fazendo a sua parte indispensável. É a aventura do viver lidando com perplexidades, sem saber o que fazer.

Sim, muita coisa está acontecendo ao mesmo tempo. Não é a falta de vida cheia de surpresas, do local ao nacional e ao mundial que está faltando. O que faltam são sinais mais potentes que não sejam de destruição, guerra e morte, mas  de propostas virtuosas, de esperança, de luz no horizonte. O que assistimos é um “desarranjo” de tudo: a economia predatória e excludente continua se refestelando; o clima com surpresas diárias e sempre ameaçadoras para contingentes populacionais das periferias do mundo; guerras de extermínio genocida; fome imposta a populações inteiras; governos que financiam tais guerras (falo especialmente dos EUA) e ainda, cinicamente, enviam alimentos de paraquedas para as populações sob ataque; malucos que falam e escutam conselhos de cachorros e destroem conquistas democráticas, como Milei na Argentina; fascismos que se assumem como tais, sem vergonha, e fazem encontros para se vangloriar de suas façanhas assassinas, como a direita mundial sob liderança de Trump; regimes autoritários com arsenais nucleares capazes de destruir o planeta; ou, ainda, como no Brasil, uma direita descarada que realiza manifestações apropriando símbolos nacionais e os associam ao genocídio praticada por Israel contra o povo palestino, tudo isto para sustentar propostas golpistas de destruição da nossa sofrida democracia e os direitos duramente conquistados. No meio de tudo, realizam  Fóruns oficiais, como o da última COP, para discutir mudanças climáticas, sob a presidência de alto executivo de petroleira do mundo árabe! Ou ainda, como  nas reuniões reservadas do G-20, das maiores economias nacionais do planeta, para celebrar entre si, num clube fechado, e para nada decidir de relevante para os povos do mundo.

Enfim, o que pensar e dizer disto tudo? Mais, o que fazer e como agir num momento assim? Sei que a pior solução é desistir, deixar para lá, ficar com seus  botões e meu jardim, levando a vida. Mas não dá, definitivamente! Viver é não se entregar e no meu caso, dada a idade, é não deixar o “velho tomar conta”. Mas a dúvida que teima em perturbar a consciência é sobre como contribuir com a palavra e a reflexão engajada para dar a volta por cima, desde aqui e agora. Sei e reafirmo com convicção que mudanças só podem vir de lá onde vivemos e levamos nossas vidas, dos territórios comuns, cada uma e cada um se engajando e fazendo a sua parte. Afinal, não existe uma fórmula ou solução mágica e simples para um mundo humano e um planeta comum extremamente complexo para o que a  vida proporciona, cuja especificidade é ser muito diversa. Mas estamos fazendo a nossa parte?

De onde olho, daqui da periferia rural da Região Metropolitana do Rio, sinto que estamos perplexos e paralisados. Todas e todos estamos esperando! O que exatamente? Claro, temos uma situação política mais aberta e de esperança, depois do desastroso governo do inominável, com aquele pacote de políticas destrutivas e ataque à democracia. Parece que até perdemos a própria referência do viver em coletividade, baseado nos princípios fundamentais que são de cuidado mútuo, de convivência e de compartilhamento, de direitos iguais na diversidade, entre todas e todos, condição de uma democracia ecossocial  necessária e virtuosa para um país onde cabe toda a sociedade,  sem exclusões, discriminações ou violência. Mas será que ficar esperando algum momento mais propício nos leva para algum lugar? O que podemos e devemos fazer em um contexto contraditório e de pouca luz?

Não descarto que, talvez, todas as perplexidades que estou apontando – e tem muito mais outras – sejam mais minhas do que coletivas, compartilhadas entre muitos ou ao menos de algum modo vividas por setores mais amplos de cidadanias ativas. O que sinto é a falta de sinais de inquietação no nosso seio, de mal-estar e de buscas consequentes. Talvez seja a falta de acesso à comunicação de qualidade, hoje realizada basicamente por redes digitais que invadem, com muita informação – muitas vezes falsa – mas que pouco ou nada de substantivo informam.

Porém, como tive uma vida toda de analista e ativista, está difícil de desistir agora. Tornou-se um jeito de viver. Mas não ter aquela roda acolhedora e de cumplicidades compartidas é um buraco na vida cotidiana. A análise de conjuntura compartida, feita  regularmente,  me faz falta, ainda mais em momentos de perplexidades como o atual. Afinal, o saber político é algo coletivo, nunca particular. Ele se faz em conjunto e em comunhão. Esta é a condição de análise de conjuntura ser feita para agir, cada uma e cada um, de onde está, do seu lugar único na sociedade, do local ao mundial. Como reconstruir espaços de busca de saber coletivo, um desafio permanente para analistas que são ativistas? As ideias e os argumentos criados na troca e no debate tem uma qualidade única. Trata-se de análise que funciona como poderoso cimento agregador de bloco social, de força política coletiva. Mas, parece, que estamos sendo atropelados pelas informações fáceis e abundantes das tais redes sociais digitais e estamos deixando de pensar estrategicamente. Sem dúvida, estamos juntos num certo sentido, mas não criamos consistência orgânica, que nos leve à ação, com os meios possíveis.

Tenho sinalizado nas postagens do blog a falta de protagonismo cidadão na conjuntura que vivemos. Acho que uma tal questão completa o momento de perplexidades sentidas. Mas protagonismo coletivo não surge espontaneamente. Precisa ser construído e com paciência. O que estamos fazendo a respeito? O ato convocado para o dia 23 deste mês tem alguma chance de expressar uma volta do protagonismo de cidadanias com nossa diversidade? Não estou vendo aquela troca fecunda de ideias capazes de dar vida e criar liga para um ato assim!

Assim, no meu caso, aumentam as perplexidades. Tomara que eu esteja enganado. Que precisamos reconstruir protagonismo cidadão democrático é indiscutível. Mas como? Pensei que a vitória eleitoral de 2022, com todas as merecidas emoções que propiciou, nos faria despertar aos perigos que nos rondam e nos levar a se engajar num processo de “desencurralamento” da democracia brasileira. Bastou uma semana desde a posse para acontecer aquele surto destrutivo e ameaçador do dia 8 de janeiro de 2023. Mas, já no segundo ano, vejo que ainda estamos esperando... O que exatamente? Não sei! Aliás, será difícil encontrar a resposta se não começarmos desde aqui e agora a assumir a tarefa de reconstrução democrática no seio da sociedade civil. É bom que o governo faça o possível e que Lula use a sua genialidade política para romper barreiras. Mas, de um ponto de vista de democracia intensa, somos nós – cidadanias ativas – que não estamos fazendo a nossa parte. Estamos deixando o governo entregue à lógica da institucionalidade política e jurídica, tendo que lidar com as demandas de um Congresso dominado pelas “bancadas do boi, da bala e da fé”, com seus currais eleitorais. Falando curto e grosso, falta pressão cidadã na conjuntura. Não confundir o que estou apontando com a volta da representação cidadã formal nos muitos conselhos de políticas. A questão que aponto é o ativismo no nosso território extremamente diverso, no chão da sociedade, onde podemos fazer a diferença.

Não estou simplesmente vendo aquela imagem de bandeiras do Brasil e da Israel juntas dos bolsonaristas. Todas e todos sabemos que a direita fascista tem espaço em nossa sociedade e voltou a não ter vergonha de se manifestar e carregar as suas bandeiras, emporcalhando os nossos símbolos. Estou falando do “vazio político” que nossa atitude coletiva, de cidadanias ativas democráticas, produz ao ficar calada, vendo e resmungando, sem ação inovadora. Não se trata de fazer o mesmo, pois não é simplesmente fazer grandes manifestações. O que precisamos é reconstruir o tecido cidadão, a vibrante diversidade que existe na sociedade brasileira, ativa no local, mas que parece não conectada nacionalmente no momento histórico crucial que vivemos. Precisamos assumir o protagonismo na disputa de hegemonia, entendida como um modo de ver, pensar e agir, guiado por princípios e valores democráticos transformadores, em busca de direitos iguais na legítima e fundamental diversidade do que somos como uma das grandes populações nacionais do mundo, extremamente diversa, mas que sabe produzir felicidade quando necessário, num território único e fundamental para a humanidade e o Planeta Terra, como um todo de interdependências vitais.

Não existem fórmulas para  resolver isto. Mas existem muitas pistas. Temos que olhar mais para as planícies da sociedade – os dramas vividos e enfrentados cotidianamente  nos territórios – mais do que para o poder lá no Planalto Central. A democracia se faz nos territórios ou não se faz como democracia intensa e transformadora. Se vamos superar as perplexidades ou não, ou então criar outras, não sei. Só sei que as perplexidades podem inspirar a reação. É isto que precisamos! Aliás, está talvez seja a única possibilidade de dar a volta por cima. O que estamos esperando?