domingo, 25 de setembro de 2022

As Origens Profundas da Intolerância e Ódio Entre Nós

Com esta eleição, temos um grande desafio imediato que é criar condições para reestabelecer minimamente as bases democráticas definidas em 1988, que apontam para o reconhecimento mútuo e convivência em base a direitos na diversidade. Concretamente, está possibilidade está sendo apontada por pesquisas eleitorais e por muitos analistas, com a vitória de um bloco de forças democráticas em torno ao Lula no confronto com o presidente atual, postulante à reeleição. Mas  o inominável vem alimentando suspeitas quanto à lisura do processo eleitoral e não esconde suas inclinações golpistas e autoritárias. Esta eleição tornou-se estratégica para  definir um limite a tal possibilidade de fratura social e política, mas não eliminá-la por si só.

Uma democracia e sua institucionalidade definem o modo de enfrentamento das desigualdades ecossociais e dos conflitos que se geram historicamente na sociedade concreta. Para isto, afirmam princípios e valores éticos na forma de direitos de cidadania igual na diversidade. Mas democracia não é um projeto acabado. Trata-se de um processo que pode ser mais ou menos virtuoso em termos de garantir direitos iguais na diversidade, dependendo das circunstâncias, ativismo da cidadania e correlações de forças. E também destas condições depende a possibilidade de ruptura democrática e de plena instalação de regimes autoritários e fascistas. Este segundo cenário se configurou pela atuação das forças em torno ao presidente atual, alimentando e mobilizando abertamente o ódio e a intolerância em nosso seio, com apelo até à religião, numa combinação totalmente esdrúxula de “Deus, Pátria e Família”.

Mas voltando ao ponto, mesmo com a vitória de forças declaradamente democráticas, estaremos fixando um limite ao ódio e à intolerância que se manifestam descaradamente na atualidade. Mas não podemos esquecer que estamos diante de um terço da cidadania apta a votar no Brasil que respalda este modo de agir e viver, apoiando o seu líder candidato à reeleição. Como vamos enfrentar tal legado e como desativá-lo?  

O ódio e a intolerância tem raízes históricas e estruturais profundas. Somos  uma sociedade e um país “independente” formada a pau e fogo pela conquista e colonização,  que implicou na eliminação sistemática de povos originários e na formação de  uma economia baseada no tráfico negreiro e trabalho escrava para sistemático extrativismo destrutivo em busca de matérias primas para o capitalismo nascente. Não cabe aqui examinar as mudanças que foram feitas ao longo do tempo, mas que parecem mais reinventar e modernizar e pouco transformar de fato as relações, as  estruturas e os processos. Enfim, somos ainda hoje uma sociedade profundamente desigual, excludente, violenta e destrutiva,  em termos socais e na relação com a natureza.  

A Constituição de 1988 teve na sua origem potentes movimentos de cidadania contra a ditadura militar e por democracia com mais justiça e igualdade. Por isto, alimentou um imaginário de ser possível enfrentar nossas heranças estruturais fundadas no colonialismo, racismo e patriarcalismo, com violência como norma dominante, em todos os domínios. De algum modo a agenda do enfrentamento obteve legitimidade na esfera pública da sociedade, nas  instituições e na Constituição. Tivemos, sem dúvida, alguns avanços, mas... as mudanças estruturais buscadas não conseguiram criar situações irreversíveis. Este é o desafio de fundo para uma potente democracia entre nós. Saberemos reinventá-la a partir de onde estamos agora? O desafio hoje de não é igual, mas é tão grande como o que tivemos para  derrotar a ditadura.

Como ativista e analista penso no quando e como erramos para chegar à situação que vivemos nos últimos anos. O ódio e a intolerância não foram inventados agora, foram reativados e legitimados no processo que nos levou ao atual governo na esfera pública, como modo de fazer política e alimentar aos seus apoiadores fanáticos. Agora, teremos uma gigante tarefa emergencial para enfrentar a desregulação democrática e o esvaziamento de políticas em várias frentes, com apoio aberto para o desmatamento em vários biomas, com liberação do rearmamento e estímulo à violência no dia a dia, pregação de racismo, misoginia e homofobia, com um ideal que premia os mais competitivos e fortes, a serviço dos donos do agronegócio e empresas quer apoiam isto tudo. O ódio e a intolerância combinados , envernizados pelo apelo a certas manifestações religiosas como mandato de deuses, mostram o tamanho da encrenca.

Vamos precisar muito ativismo cidadão radicalmente democrático e transformador para fazer face a isto. Teremos vontade, força política e saberemos dar conta de tal tarefa inadiável? Ganhar a eleição é estratégico. Mas a vitória do bloco democrático não assegura que a busca de direitos na diversidade e com perspectiva transformadora ecossocial tenha real hegemonia como direção a dar no curso do país. Sem cidadania disputando a hegemonia de tal imaginário, não serão os mandatos conferidos  a  governantes e legisladores que poderão dar conta por si mesmos. Esta é uma tarefa histórica que só a ação cidadã permanente pode impor aos poderes  e, através deles,  à economia.

Os tempos que se aproximam são de muitos desafios. Haja convicção e engajamento! Novamente, a hora é da cidadania fazer a diferença fundamental.

domingo, 18 de setembro de 2022

Reconquistar Potência Democrática

Esta é a questão fundamental  para a cidadania decidir dentro de duas semanas. O problema é que ainda não temos de todo assegurada, no seio da sociedade civil,  a hegemonia da própria ideia de que a democracia, como o modo de viver, divergir e lutar politicamente, é um valor estratégico comum a garantir para enfrentar nossos problemas em busca de justiça ecossocial e bem viver. Qualquer analista sabe que muita gente nossa conterrânea avalia ainda que o problema é a democracia em si, devido aos seus ideais e direitos de maior igualdade e  liberdade para todos, sem discriminações. Trata-se de classes e setores que avaliam ser a própria democracia a causa maior dos seus problemas materiais, valores e crenças, que os leva a apostarem em soluções até autoritárias. O apoio ao golpe parlamentar de 2016, a eleição de 2018 de um defensor da ditadura militar, que, como governante,  “ abriu as porteiras e deixou a boiada passar” sobre direitos e conquistas de políticas de combate às desigualdades ecossociais, até sobre vidas humanas, mostram que o câncer destrutivo da democracia tem raízes profundas na classe dominante e entre amplos setores intermediários. Ou seja, em nosso país, a batalha pela democracia em si, com soberania cidadã e popular, não foi vencida de forma duradoura. Ainda temos que lutar contra heranças estruturais, como o racismo, o patriarcalismo e a violência, profundamente enraizados entre nós. Temos uma atribulada história de país, com autoritarismos e exclusões sociais, baseada na colonização internalizada e subsidiária dos mercados globais, que muda para nada mudar nas estruturas econômicas, sociais e de poder dos donos de tudo. Desafio e tanto!

Colocada a questão com tal perspectiva, as eleições deste ano são as mais decisivas desde que entrou em vigência a institucionalidade democrática reconstruída com a Constituição de 1988. Ela é um marco em nossa democracia, sem dúvida. O potente marco constitucional de 1988, não é algo já acabado e garantido, mas um começo virtuoso, ainda limitado. A história democrática mais intensa e duradoura  ainda precisamos fazê-la para celebrá-la, com lutas por novas conquistas e muita participação cidadã, a real força instituinte e constituinte legítima. As conquistas democráticas que tivemos neste período de pouco mais de três décadas não são desprezíveis. Mas, talvez, tivemos derrotas e retrocessos muito maiores, que hoje nos limitam  e que precisamos superar.

Em todo caso, derrotar a proposta autoritária com viés fascista será um divisor de águas. Trata-se de condição fundamental para voltar a buscar caminhos baseados no potencial da democracia como modo de realizar transformações nas estruturas e processos para garantir direitos ecossociais com igualdade na diversidade. A vitória de uma volta à “normalidade” democrática está sinalizada no processo eleitoral como uma possibilidade real, levando em conta o que as pesquisas e os analistas independentes apontam. Porém, gostaria de assinalar a questão que mais me preocupa para o além das eleições: trata-se de avaliarmos onde estamos como cidadanias ativas e como agiremos para dar potência à democracia a ser revitalizada, evitando futuras derrotas como as que tivemos nos últimos anos, tanto nos Executivos Federal e Estaduais, como, também,  no Congresso Nacional e Legislativos Estaduais.

O desmonte de direitos conquistados constitucionalmente e de políticas efetivas foi de monta. Exigirá um gigantesco processo de reconstrução. Aí aparece como a questão incontornável e de primeira ordem o enfrentamento da “ditadura” do mercado na economia, que não aceita regulação necessária paras atender prioritariamente ao bem comum de todos. Sim, antes de Bolsonaro, fomos derrotados pela busca de “conciliação” com os interesses de bancadas lobistas a serviço dos donos de terras, empresas e bancos, associados ou não de multinacionais, segundo as regras de um capitalismo global sem controle. A ditadura fundamental é a sua internalização,  que não admite nenhuma regulação de mercado e nem a taxação de seus gigantescos lucros privados e vergonhosa concentração de renda. Isto nos fez retroagir em termos de capacidade autônoma e nacional na indústria e privatização das grandes empresas estatais. Voltamos  a depender fundamentalmente da produção e exportação de commodities minerais e do agronegócio, assim como passamos a viver ao ritmo da especulação financeira e da liberdade de acumular sem limites e com fraudulentos paraísos fiscais de proteção aos ricaços. Tudo isto ajustado às tais demandas e regras dos mercados globais, de costas para o nosso país e sua gente.

Para a grande maioria, o que mais voltou a atingir foi o desmonte de políticas sociais como saúde, educação, combate à fome e miséria, assalto aos bens comuns naturais e culturais, especialmente pela redução orçamentária. A adoção de políticas econômicas  de respeito irrestrito e prioritário ao pagamento de juros da dívida pública , com a tal “responsabilidade fiscal”, vem afetando direitos de todas e todos. Destacam-se a redução sistemática de direitos trabalhistas e a aposta na uberização e informalidade do trabalho para grandes contingentes excluídos; a destruição de territórios de povos indígenas, tradicionais e de conservação, para agronegócio e mineração; a violência com rearmamento liberado e incentivado, com periferias controladas por milícias e tráfico. As grandes periferias urbanas e rurais estão sendo privados do essencial para viver e total falta de perspectivas de dias melhores no amanhã.

Aqui estou preocupado em apontar dois grandes desafios incontornáveis para a democracia, além da institucionalidade em si: o mercado totalmente livre e as desigualdades sociais estruturalmente geradas. Neste segundo incluo todo o pacote de racismo estrutural, patriarcalismo e machismo, descriminações múltiplas, colonialidade, violência, desigualdade em renda, habitação, acesso a educação e saúde de qualidade, a centralidade dos bens comuns naturais e culturais para o conjunto.  São duas facetas de uma “ditadura” real  tanto nas relações de poder, como sobretudo nas relações e processos econômicas, sociais e culturais, que uma democracia intensa e potente tem que enfrentar para ter sentido no que promete: liberdade, igualdade, diversidade, participação e solidariedade, em busca de cuidado, convivência e compartilhamento, com reconhecimento e maior respeito mútuo. Tudo isto é uma condição indispensável para reestabelecer uma nova relação com a própria natureza, que dá condições de vida a todas e todos, e poder capacidade para enfrentar a urgente mudança climática e destruição da integridade dos sistemas ecológicos deste imenso território que precisamos cuidar como um comum.

O que defino como ditaduras do mercado e das desigualdades sociais  são criações humanas destrutivas e só nós humanos podemos enfrentá-las com a potência da democracia. Ou seja, pela ação cidadã, num processo virtuoso de pressão e negociação segundo regras comuns institucionalizadas, que permitirá avançar com transformações ecossociais para criar resiliência e novo futuro para todos e todas nós, para a humanidade inteira, de bem com o nosso lugar no planeta, desde os territórios em que vivemos.

O que estamos debatendo na atual disputa eleitoral é apenas um primeiro passo indispensável. O desafio que vislumbro é para muitas gerações e sempre poderá se defrontar com novos desafios. Mas temos que começar agora, antes que a barbárie nos destrua e torne a tarefa quase impossível. Dá para apostar! Ao menos sou parte de todas e todos que ainda acreditam, no Brasil, na região e no mundo. Afinal, a história é uma construção coletiva, sempre podemos nos inspirar nas derrotas e vitórias. Só precisamos olhar mais, com atenção e respeito, para a potencialidade democrática latente no nosso seio, desde as maiorias excluídas, pois é daí que pode vir algo novo e transformador.

 

 

domingo, 11 de setembro de 2022

Quem Somos?

Normalmente, o 07 de Setembro é mais tomado como um feriado para se curtir do que uma data a celebrar. Provavelmente, toda a população, desde a em idade escolar até os mais idosos, sabe que o dia foi fixado no calendário como data da celebração da Independência do Brasil. Não fossem os desfiles militares nas principais cidades, provavelmente muita gente nem lembraria da data. O fato deste ano ser  aniversário de 200 anos da Independência em relação a Portugal não acrescentou muita coisa. O destaque foi a bravata com dinheiro público do “imbrochável” presidente, candidato à reeleição. Algo tragicômico e ainda por cima com conivência explícita das Forças Armadas!

O que vai além da data da Independência em plena  campanha eleitoral, própria do rito democrático instituído, é a apropriação por um candidato dos símbolos e cores da frágil nacionalidade que nos une como povo: hino nacional, a bandeiras e as cores. Será isto uma reedição do “ame ou deixe-o” da ditadura militar de triste memória? No fundo, mais do que em outros 07 de Setembro, dada a grave situação política mais geral que vivemos e à qual somos chamados a definir saídas pela eleição geral,  estamos sendo provocados a pensar quem somos e como chegamos a tal celebração agressiva.

Vale a pena lembrar aqui que já há muitos anos, por iniciativa do MST e agregando movimentos sociais populares, o 07 de Setembro é uma data de manifestações do “Grito dos Excluídos”. O mais importante, de um ponto de vista de ação cidadã, como venho enfatizando, não é o tamanho das manifestações mas seu simbolismo. Afinal, o “Grito dos Excluídos” nos lembra e nos provoca a pensar porque como povo convivemos com “excluídos” da cidadania. E eles são muitos, em muitos territórios urbanos e rurais, conformando os  grandes núcleos de “periferias” onde falta de tudo. No entanto, são brasileiras e brasileiros de direito.

Daí a pergunta: quem somos, afinal? Ou que contradições nos conformam como povo de múltiplas facetas de desigualdades e injustiças ecossociais? Como forjar uma unidade possível? A língua dominante – um linguajar hoje apropriado como um comum, apesar de imposto pela colonização portuguesa – é suficiente para nos fazer um povo? Não estou questionando a importância estratégica deste comum, que o engrandecemos com muitas contribuições e musicalidade sem par, mas precisamos de muito mais para sermos um “povo” politicamente falando.

Vem dos povos indígenas um questionamento pensado mais profundo à nossa identidade como Brasil e povo brasileiro. Não tenho conhecimento do quanto isto está enraizado na cultura dos muitos povos e suas línguas, ainda existentes no território nacional. Dizimados violentamente pela conquista e colonização,  os sobreviventes sofrem até hoje com a invasão de seus territórios, exclusão e invisibilidade. É de intelectuais indígenas a denúncia do que a nossa nacionalidade como Brasil carrega. Para eles, o território do Brasil era chamado Pindorama – a terra das palmeiras. A denominação Brasil vem da primeira commodity colonial, a exploração do pau Brasil na nossa Costa Atlântica, para virar tinta para os teares europeus.

Poucos países no mundo carregam identidades nacionais associados à exploração a que foram submetidos com a colonização. No nosso caso, o nome Brasil nos associa ao desmatamento, dos territórios com pau brasil. Ser brasileiro é ser identificado a uma profissão, a de madeireiro, segundo as regras do português que herdamos como língua. Enfim, algo a pensar, levando em conta que somos ainda um país que internalizou a colonização, com desmatadores munidos de armas, motosseras  e grandes tratores para a “conquista de territórios”, com destruição das florestas originais, em busca de madeira nobre e garimpo de ouro. É uma onda que avança sobre povos indígenas e áreas protegidas. Estão em jogo grandes extensões de terras  a privatizar para o agronegócio ... e, portanto, para produzir commodities. Até quando? Para os remanescente povos indígenas, a nossa Independência não mudou a sua situação de condenados à extinção. Os avanços a celebrar com a Constituição Democrática de 1988, mas ainda questionados pelo agronegócio e o atual governo, é o direito dos povos indígenas a seus territórios de origem.  

Em um outro questionamento, também poderoso, não é sobre o nome em si, mas quem constitui o povo independente e o que celebramos com  a Independência. Afinal, a grande base do trabalho escravo na economia, formada pelo tráfico de aproximadamente 5 milhões de pessoas negras da África – uma commodity fundamental do capitalismo nascente – não foi extinta. Pelo contrário, a Independência se fez pelo alto entre donos de gado e gente, espécie de nobreza agrária assentada no trabalho escravo. A tardia extinção do trabalho escravo no Brasil, sem redistribuição de terras – pelo contrário, dificultando o acesso – e sem real emancipação econômica, social e política, alimentou e alimenta até hoje um racismo estrutural na sociedade brasileira. Aliás, o “imbrochável” nega a própria existência do racismo e o direito da população negra – maioria da população brasileira – de acesso aos direitos de cidadania iguais na diversidade.

As questões sobre quem somos como povo são muitas e envolvem muitos outros segmentos populacionais fundamentais, que nos constituem como povo real. No curto espaço desta reflexão, meu objetivo é chamar a atenção a questões quentes que precisamos enfrentar e transformar democraticamente. Reconheço que muitos outros segmentos se sentem excluídos ou descriminados como parte do mesmo povo.  Afinal, quem é o povo? Quem pode legitimamente reivindicar ser parte do povo?

Enfim, esta parada do quem somos e da titularidade comum a direitos de cidadania, sem desigualdades e discriminações, de termos os comuns e identidade compartilhada, só poderá ser enfrentada por nós mesmos, pluralidades de cidadanias ativas, onde os movimentos negros, dos povos indígenas e tradicionais, feministas, LGBTQI+, também são fundamentais. Enfim, todas e todos que habitam o território comum que compartimos tem direito de reivindicar pertencimento ao mesmo povo. Nunca será um governante de mal consigo mesmo e truculento que poderá definir quem é quem e como integra ou não o povo deste nosso país. Só a cidadania pode definir quem somos como povo e garantir que seja um comum a celebrar, identificando os “inimigos do povo”. Que os temos, penso que não há dúvidas. Estão aí e precisam ser enfrentados politicamente, dentro de regras democráticas radicais.

domingo, 4 de setembro de 2022

Democracia Brasileira na Encruzilhada

Nos termos em que hoje é possível ao menos pensar e almejar, a democracia como concepção  aponta a um processo de busca da maior igualdade possível dentro das diversidades de ser e viver como humanos, em territórios ecossociais também diversos, no planeta Terra. E a igualdade só é possível com o reconhecimento da mais plena liberdade de todas e todos, para participar. Ou seja, para que igualdade, liberdade e participação existam efetivamente precisam ser reconhecidas simultaneamente e ser para todas e todos. Estes princípios políticos tem um fundamento ético de pertencimento ao coletivo social e de reconhecimento mútuo, e são, por isto, definidores de direitos políticos de cidadania, verdadeiros alicerces qualificadores para considerar uma sociedade efetivamente democrática com capacidade de transformação ecossocial.

Tais princípios podem alimentar imaginários de ação cidadã e processos democráticos mais ou menos intensos, estabelecendo  modos de viver juntos, sempre em mudança virtuosa. A democracia se efetiva ou se restringe nos processos e relações das estruturas econômicas, sociais e de poder, nas políticas públicas, nas vivências e valores,  que se medem, em última análise por direitos de cidadania conquistados, percebidos e vividos como iguais para todas e todos, e garantidos pela ação do Estado. Viver em democracia é ter instituído e constituído pela ação cidadã um método participativo de fazer a vida coletiva acontecer, permeado de tensões e contradições. O que torna as democracias viáveis é a participação viva e difícil, assentada na igualdade e na liberdade, com disputas intensas para se chegar a acordos coletivos segundo regras instituídas.

Na prática, nunca temos ou teremos democracias acabadas ou perfeitas, pois elas são um processo de viver em renovada e contínua busca, de intensa disputa, com ameaças e retrocessos, até fracassos. Pior ainda, com fascismos e autoritarismos descarados sempre possíveis, impérios e disputas geopolíticas, com guerras de expansão e conquista de uns países sobre outros. Bem, nunca podemos ignorar o quanto de exploração, destruição e dominação alimentam o capitalismo neoliberal globalizado. Ele é o problema de fundo. Além disto, temos por toda parte as heranças estruturais do colonialismo, racismo e patriarcalismo, com as mais odientas discriminações e desigualdades. E o mais grave de tudo, o mundo e, nele, as democracias reais estão diante do desafio de desmontar uma economia e um poder  a  serviço de 1% de donos de tudo.

Portanto, do que estamos falando quando ainda falamos de democracia?

Como já afirmado, isto soa com um imaginário e um princípio orientador. O mundo real está longe de ser democrático. Aliás, hoje,  quem lidera a destruição da democracia no mundo é exatamente o país  imperial que se considera defensor dela.[i] Tanto avanços como, sobretudo, impasses, retrocessos e fracassos são constantes. Vendo o que está acontecendo no mundo estamos diante da perda do próprio sentido democrático, do local ao mundial. Existem resistências democráticas potencialmente virtuosas, como entre nós os exemplos recentes de Chile, Bolívia e Colômbia demonstram. Sinais de esperança, sem dúvida, e sobretudo uma potente inspiração para não desistirmos. Mas a conjuntura política e econômica global não parece propícia, com as  intensas disputas geopolíticas imperiais, guerras sem fim, com crises e descontroles de toda ordem, em meio a uma mudança climática provocada pela economia movida pela crescimento sem limites, que pode ser devastadora, e um pipocar de novas pandemias devido à destruição da integridade dos sistemas ecológicos da natureza. Tudo isto é mais anúncio de barbárie mundial do que de possível transição para sociedades ecossociais democráticas de viver.

A vivência democrática mais intensa tende a acontecer em territórios de cidadania locais, urbanos e rurais bem delimitados, com práticas de contínua democracia direta nas mais variadas questões. Só que o mundo, por mais que possa ser mapeado como constituído por territórios ecossociais diversos, integra complexos nacionais, regionais e as lógicas do sistema  do capitalismo globalizado, que tolera democracias desde que não ameacem a acumulação sem limites. No horizonte, democracias podem ser fortes ameaças para o sistema dominante, se impulsionadas por movimentos irresistíveis vindo do seio das sociedades.  Esta é a aposta a fazer, apesar de tudo.

Por que trago tudo isto, se o meu objetivo declarado é captar sentidos e rumos nas conjunturas, com uma inspiração de transformação ecossocial democrática? Bem, nós, cidadania brasileira, estamos em pleno processo eleitoral, tendo uma ameaça real de feições autoritárias e fascistas no comando do Estado buscando sua reeleição, pelo voto ou na marra. Podemos evitar isto? Tudo indica que temos possibilidades pelo que as pesquisas eleitorais indicam. Mas pairam dúvidas, ao menos de minha parte, quanto à intensidade de mobilização das cidadanias ativas com potencial democratizador decidindo a parada. Ao levantar as questões acima, minha intenção é chamar a atenção para o que está por trás de disputa eleitoral. De maneira simples e direta: estamos diante de poderosas forças econômicas, financeiras, agrárias e extrativistas, com apoio de setores militares, policiais e milicianos,  e um resiliente setor autoritário no seio das classes médias e igrejas pentecostais que sustentaram até aqui o atual governo do capitão pregador do ódio, pois ele defende o mais predador capitalismo em nosso seio. A possibilidade de obter  apoio eleitoral de parte destes setores para um governo  alternativo  é  só com  garantia de manutenção do atual modelo de inserção no capitalismo neoliberal globalizado, com um poder estatal  a serviço de uma economia produtora de commodities e totalmente sujeita às regras do mercado. Podem acontecer ajustes, mas não mudanças. E isto parece ausente da disputa eleitoral, pois basicamente são anunciadas políticas compensatórias e distributivas como prioridades. Reinventar o “neoliberalismo progressista” é insuficiente, como demonstraram as experiências governamentais de esquerda no Brasil e América Latina.  Isto não basta para enfrentar o desafio de renovar a aposta democrática transformadora, que nos fez derrotar a ditadura décadas atrás e reconquistar a democracia.

Anunciando este problema de fundo, destaco que o autoritarismo e o fascismo tem raízes profundas no capitalismo globalizado para poucos, muito além dos truculentos pregadores de ódio e discriminação, com violência armada, ao serviço da continuidade de um economia regulada pelo mercado, destruidora e excludente em termos ecossociais. Desqualificar o Bolsonaro pelo voto é estrategicamente importante, condição sine qua non. Mas é preciso assegurar uma virada mais ousada e determinada diante do enorme problema de mudanças democráticas ecossociais que precisamos. Só assim a democracia poderá voltar a ter sentido profundo para os grandes contingentes de conterrâneos condenados às precárias periferias rurais e urbanas do país. Esta é a grande encruzilhada diante de nós, para alcançarmos  uma  democracia mais intensa como modo de nos organizar e viver coletivamente.



[i] Ver o instigante artigo de Aram Aharonian. AHARINIAN, Aram. “Hablemos Del golpe de Estado em Estados Unidos. Retos e amenazas de la democracia americana.” Bitacora, Montevideo, (951), 22 de agosto de 2021.