quarta-feira, 24 de maio de 2023

A Questão do Petróleo


O parecer técnico de Rodrigo Agostinho, presidente do IBAMA, no dia 18/05, negando a licença ambiental para a Petrobras no caso da Perfuração do Bloco 59 na Foz do Amazonas, destampou um panelão de interesses e pressões políticas, especialmente no seio do Governo Lula 3. O  líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues, senador pelo Amapá, reagiu indignado e rompeu com Marina Silva, figura central da Rede Sustentabilidade e Ministra do Meio Ambiente. O ministro de Minas e Energia também protestou. Estamos diante de uma crise política na coalizão governamental? Sem dúvida![1] Isto num momento de muitas negociações para a aprovação do novo arcabouço fiscal no Congresso.

No entanto, cabe exclusivamente ao IBAMA,  como órgão do Estado, com autonomia, sem interferência política, fazer a avaliação da proposta e dar seu parecer técnico no caso de licenciamento ambiental. Afinal, a Petrobras não apresentou estudo técnico dos possíveis impactos para a integridade do complexo sistema ecológico na Bacia da Foz do Amazonas, o maior rio do Planeta. Até hoje nunca foi feita uma avaliação da sua complexidade, levando em conta todos os sedimentos que joga o Rio Amazonas no Oceano Atlântico equatorial, com seus corais, grande biodiversidade e correntes marinhas. Enfim, o IBAMA fez o que lhe cabe: avaliar riscos ecológicos à integridade do sistema e demandar os estudos necessários para, se for o caso, poder conceder a devida licença ambiental de exploração.[2]

Dá para entender os interesses em jogo e o que representaria para o Amapá, de Randolfe Rodrigues, uma nova frente exploração de petróleo liderada pela Petrobrás. Afinal, Randolfe pretende ser candidato a governador e sua aposta conta com os grandes investimentos que a exploração do petróleo, neste Governo Lula 3, pode representar para o seu Estado. No entanto, a encrenca é muito maior: estamos diante de uma questão complexa que pode definir o próprio rumo do Governo Lula e o quanto a democracia brasileira poderá avançar num caminho de reconstrução e renovação, com uma proposta ecossocial transformadora.

O petróleo, o carvão e o gás, grandes fontes de energia fóssil, foram essenciais para a própria revolução industrial e até hoje movem a máquina do capitalismo globalizado. Neste sentido, continuam sendo  recursos estratégicos, especialmente petróleo e gás, estando no centro das grandes questões geopolíticas e das guerras que movem o capitalismo.  Mas estas fontes de energia fóssil são o grande vilão da mudança climática, que pode nos levar a uma catástrofe planetária e até à inviabilidade da vida. Tão ameaçador e complexo assim!

Meu objetivo não é entrar no debate técnico e econômico em si, pois nem tenho qualificação para tanto. No entanto, reconheço que a questão petróleo está profundamente imbricada nos caminhos e descaminhos de nossa história econômica e política, pelo menos, no último século. Foi uma memorável campanha na sociedade civil - “O petróleo é nosso!” -, nos anos 1950, que levou o governo Getúlio Vargas a criar a PETROBRAS em outubro de 1953. Foi num período de industrialização do Brasil com grande protagonismo do Estado.[3] A PETROBRAS  se tornou a mais importante empresa brasileira e, hoje, uma das mais importantes petrolíferas a nível mundial. Não cabe aqui entrar em seu complexo desenvolvimento no centro de lutas políticas que marcam a história do Brasil. O fato mais importante é seu avanço tecnológico e as descobertas das Bacias de Campos e do Pré-Sal. É um grande patrimônio nacional, indispensável para a questão estratégica da energia. A questão é que energia fóssil está com os dias contados, dada a necessidade de profundas mudanças em tal matriz  para enfrentar as mudanças climáticas. O problema reside no fato que o petróleo não é renovável e é um dos vilões mais centrais em termos de emissões de CO².

O que precisamos enfrentar é um debate mais espinhoso sobre o petróleo em si e a base energética do Brasil, levando em conta o próprio mote do Governo Lula 3:”cuidar de gente e da natureza”. Temos uma grande base hidrelétrica para geração de eletricidade, vista como algo virtuoso no contexto mundial, apesar dos enormes e desastrosos impactos ecossociais nas populações e territórios em que foram instaladas as usinas, com as suas grandes e destrutivas barragens. Povos indígenas e tradicionais, pescadores e pequenos agricultores familiares tem sido sistematicamente agredidos e expulsos de seus territórios  em nome de um bem comum maior. Sem dúvida, hidrelétricas produzem energia de qualidade, mas o balanço ecossocial final não é tão favorável. Para não ir muito longe, lembro a tragédia ecossocial em curso com a implantação de Belo Monte, na grande curva do Rio Madeira, no Amazonas, atingindo milhares de indígenas e acabando com a própria integridade do rio, base de seu sistema de vida. Não seria possível um outro modelo hidrelétrico, sem as grandes usinas, mais adequado à fantástica diversidade territorial e do sistema de rios, e respeitando as populações locais e seus modos de vida?

Hoje, é de saudar a ampliação rápida e sistemática da base eólica e solar na produção de eletricidade. Algo também visto como virtuoso, pois renovável. Mas fora dos territórios em que são instaladas as grandes unidades de produção, solares e eólicas, pouco se sabe de seus impactos nos territórios e suas populações. No caso, novamente, será que os grandes empreendimentos – verdadeiras “fazendas” de energia, a seu modo invasoras e excludentes, como o agronegócio – são a melhor solução? Ou algo mais descentralizado seria mais integrado e respeitoso com a população local, seus territórios e modos de vida?

O certo é que água, sol e vento, como forças vivas e renováveis, são melhores do quer queimar petróleo, gás ou carvão, reservas fósseis naturais formadas a milhões de anos, em processo de destruição sistemática. Queimar tais recursos tão complexos e não renováveis é como comprometer o amanhã de seres vivos, humanos e não humanos, assim como o complexo sistema ecológico do Planeta que nos dá a vida. Lamentavelmente, devido aos problemas climáticos que mais frequentes e intensos, para não sofrer o temido “apagão”, o Brasil ainda vem aumentando as usinas elétricas a gás (menos mal que óleo ou carvão).

O petróleo é central para mover o sistema de transporte no Brasil nos dias de hoje. Para favorecer a industrialização – no caso, a produção industrial interna de caminhões, ônibus e veículos de passeio – desde meados dos anos 1950 foi sendo sucateada e abandonada, ao invés de modernizá-la,  a importante malha de transporte ferroviário de cargas e até de passageiros que tínhamos. Pior, como as frentes de expansão econômica vão no sentido Centro, Oeste e Norte, tudo se fez na base de rodovias, com caminhões para carga e ônibus para passageiros. Também se expandiu a malha de aeroportos. Tudo movido a derivados de petróleo. Os sinais de insustentabilidade de tal opção já vem de longe. Custos de transporte de carga por caminhão, movidos a óleo, pesam enormemente no custo final das mercadorias, sem contar o próprio custo de ampliação e manutenção das rodovias. Nas grandes cidades os engarrafamentos são quase diários, dadas a prioridade de cidades feitas para caros e não para o bem comum coletivo. O transporte coletivo urbano virou um drama pela superlotação e o alargamento dos tempos de descolamento, especialmente para a população pobre das grandes periferias  Nas grandes metrópoles, com um atraso enorme, lentamente,  vem se expandindo a malha de metrô, longe de ser satisfatória.

Uma exceção no quesito transporte de cargas são  algumas ferrovias de mineradoras.  O grosso da safra do agronegócio é deslocada para os portos via rodovia. Claro, algumas iniciativas surgiram, como o transporte fluvial, mas ainda pouco importante levando em conta o monumental sistema de bacias hidrográficas do país. Hoje, é na Amazônia onde o transporte fluvial ainda é dominante para grandes distâncias.

Enfim, este panorama grosseiramente assinalado, mostra como o país não pode andar hoje sem petróleo, especialmente óleo, gasolina e querosene. Apesar do avanço em termos de produção e uso do álcool, a partir da crise de petróleo dos anos 1970, e depois o biodisel, a realidade é que não podemos prescindir do petróleo. Num certo sentido chegamos à autossuficiência em termos de produção, mas a desastrosa política seguida depois da Lava Jato e do Golpe de 2016, com ameaça de privatização e com a paridade de preços ao valor do barril no mercado mundial, a PETROBRAS se tornou uma extrativista exportadora de petróleo bruto e importadora de refinados. E cresceu a fatia do setor privado na própria extração, com os leilões de lotes de exploração. Uma tragédia comprometedora do futuro do país que não podemos ignorar! Aliás, por mais petróleo no mundo nos compromete com mais emissões, mesmo que não sejam aqui. Só os financiadores privados ganharam vultosos dividendos com os lucros da Petrobras. Cadê o projeto de industrialização? Viramos uma economia primária exportadora de commodities do extrativismo mineral e do agronegócio. Podermos fazer justiça social e ecológica com esta base?

De todo modo, o desafio hoje, em nome da democracia e da justiça ecossocial é fazer uma profunda revisão e, sobretudo, mudança de rumos. Será impossível “cuidar de gente e da natureza” com a base econômica destroçada e reprimarizada que temos, a serviço de um punhado de especuladores nacionais e internacionais. Mais, precisamos de outra economia, pois não podemos depender desta que destrói territórios comuns e exclui as maiorias deste país. Nesta equação o petróleo ocupa um dos lugares centrais. Não é a “tábua de salvação nacional”, algo festejado nesta nossa democracia de “conciliação” com predadores de todos os tipos. A tarefa é gigante e em muitas frentes.

Não tenho dúvidas sobre o quanto o petróleo é estratégico, mas não podemos tratá-lo somente ou prioritariamente como combustível. Ele é fonte de muitos recursos, até de medicinas. Claro, para realizar uma transição na questão energética muita coisa precisa ser feita, mas não pode ser adiada. Além disto, qualquer transição tem necessariamente impactos ecossociais que precisam ser levados em conta,  pois necessitam de recursos naturais, seja água, sol e vento, como extração de minerais para painéis e baterias.[4] Enfim, a vida se faz na relação com a natureza e dela depende. Importa o modo como estabelecemos tal relação.

É neste panorama que situo o embate em curso desencadeado pela negativa do Ibama na demanda de licença ambiental para a perfuração de um poço exploratório da Bacia do Foz do Amazonas.O buraco e a ameaça é muito maior! O quadro em que a questão petróleo precisa ser colocada é dos engajamentos do Governo Lula  quanto ao enfrentamento democrático da inadiável agenda ecossocial para o país, dados os problemas de exclusão, miséria, fome e desigualdades que temos e os processos de invasão e destruição de matas e áreas protegidas. Além disto, é inegável a importância do território brasileiro, sua biodiversidade e sua população em termos regionais e planetários, pelo tamanho  e vibrante capacidade cultural do que somos como povo para construir o Brasil que nós precisamos e o mundo precisa.

 



[1] Climainfo. “Petróeo na foz do Amazonas é primeiro ‘teste de fogo’ da política climática do governo Lula”. Disponível em: Combate Racismo Ambiental. 22 de maio de 2023. Ed. Matinal.

[2] Giovana Girardi. “Licença não pode ser no Grito, diz ex-presidente do Ibama sobre petróleo no Amazonas”. Agência Pública. Disponível em Combte Racismo Ambiental. 22 de maio de 2023. Ed. Matinal

[3] PETROBRAS junto com ELETROBRAS, BNDES e SUDENE se constituíram como agências do Estado para a industrialização do Brasil, especialmente no período de 1950 a 1980.

[4] Bruno Milanez. “Transição Energética. Existe uma iluão de que a ‘tecnologia’ vai encontrar um caminho e as economias poderão crescer indefinidamente”. Em entrevista para Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Newsletter IHU. São Leopoldo, 11.05.2023

terça-feira, 9 de maio de 2023

O Centrão e Sua Capacidade de Encurralar

 

Não foi necessário muito tempo para o Centrão mostrar a sua capacidade de encurralar a democracia que reconquistamos com Lula e a complexa frente formada para a vitória eleitoral de 2022. Trata-se de uma espécie de maioria parlamentar no Congresso Nacional sem nenhum compromisso com a democracia enquanto tal, mas que se articula em torno à primazia de interesses pessoais, paroquiais (seus redutos eleitorais) e de bancadas corporativas, acima de qualquer compromisso programático e partidário. São parlamentares que agem, se articulam e votam sempre em busca de vantagens. Nunca se pautam pelo bem comum ou aportam algo a ele.  Foram fiéis bolsonaristas enquanto convinha. Agora são lulistas enquanto convier. Mas não dá para menosprezar seu poder no Congresso Nacional.

O mal político, uma espécie de câncer de sete vidas, vai mudando de posição, conforme as conjunturas, para garantir que nada de essencial mude. Até parece que está no próprio DNA de nossa República. Como Arena – Aliança Renovadora Nacional  (que ironia!) - foram forças de apoio à ditadura militar no que se manteve como Parlamento expurgado e manietado pela Ditadura Militar e seus Atos Institucionais. Seu líder, o Sarney, até se tornou o presidente da Nova República, em 1985, marcando o fim da ditadura militar (outra ironia que nossa história nos pregou!). Mas como Centrão se conformou pela primeira vez no processo que gerou a Constituição Democrática de 1988, a base constitucional que temos até hoje. Com grandes virtudes e conquistas de direitos constitucionais, diga-se de passagem. Mas também com o câncer da governabilidade conciliadora embutido nela. Como já afirmei muitas vezes, temos uma jovem democracia encurralada e até aqui não soubemos encontrar brechas de saída democrática que não seja o “brete” estreito e sofrido do curral ... do Centrão no Congresso.

Desde então, o Centrão tem mantido os governos federais que se sucederam como reféns de seus interesses. A proliferação de partidos e o troca-troca partidário são as maneiras de acomodar interesses que são, acima de tudo, nada republicanos e democráticos. Acontece, sem dúvida, alguma renovação em termos de pessoas e até de métodos de agir, mas sempre cobrando favores para si ou seus redutos eleitorais e financiadores. É um modo de ser e agir que muda para nada mudar. Sem dúvida, não são todos os membros eleitos do Parlamento que, sob nomes  partidários diversos e mutantes, acabam compondo o Centrão. Existe claramente uma esquerda e uma direita, mas minoritárias. É Centrão que aglutina a maior bancada, com poder de veto em iniciativas de leis e mudanças no Congresso Nacional. Como governar em tal situação? Eis o desafio para quem comanda o Poder Executivo Federal.

É importante que fique claro algo próprio de democracias: as disputas acirradas nos Parlamentos são partes constitutivas do método democrático de fazer governo. Esta é, inclusive, sua virtude maior em contraposição a qualquer autoritarismo. Na dúvida, sempre existe o Poder Judiciário autônomo, como garantia da ordem constitucional vigente, para dirimir dúvidas e impasses em termos legais. O Executivo é um grande poder propositivo e operativo, mas para mudanças mais significativas depende de leis debatidas e votadas pelo Parlamento, assim como da aprovação do próprio orçamento federal para executar as políticas propostas.

Mas, se temos Centrão e aquela profusão de siglas partidárias, sem compromisso democrático e programático real, onde está a sua origem? A lei estabelece regras, mas quem vota e tem poder instituinte e constituinte somos nós, cidadanias com direito ao voto.  Nós delegamos, pelo voto, poder a todos os membros do Parlamento, assim como ao Presidente e Vice-Presidente. Somos nós, os milhões com direito ao voto -  votando ou nos abstendo – que fazemos nossas escolhas e conferimos mandatos de tempo definido. Sempre é possível a renovação, assim como a reeleição, mas sempre através do voto dado por eleitores e eleitoras.

Não é o caso aqui de entrar mais aprofundadamente nas artimanhas constitucionais que enviesam o peso dos votos. Não temos distritos eleitorais pulverizados pelo território nacional, mas temos – no caso da Câmara e do Senado, que conformam o Congresso Nacional – grandes distritos que são os Estados. Cada Estado da Federação elege um mínimo de 8 deputados federais, como Roraima e outros pouco populosos, e um máximo de 70, em São Paulo. Todas as bancadas estaduais  ficam dentro de tais limites mínimo e máximo. Em Roraima, em 2022, menor colégio eleitoral do país, bastaram menos de 46 mil  para eleger um deputado. Na prática é menos que isto, pois só valem os votos válidos, sem as abstenções ou nulos. Em São Paulo, o maior colégio,  para eleger um deputado federal o quociente foi de mais de 494 mil, na prática menos que isto, mas dá para ter ideia do tamanho da diferença. Além disto, não importando o tamanho do colégio eleitoral estadual, cada Estado tem direito a 3 senadores. No caso, 3 para Roraima e 3 para São Paulo. Dada a distribuição extremamente desigual em tamanho populacional dos Estados, dá para ver a distorção na expressão do voto da cidadania para um dos poderes maiores e mais representativos da democracia brasileira: o Congresso Nacional.

Não sei se algum dia poderemos alterar isto, mas é dentro destas bases constitucionais que elegemos os congressistas brasileiros. Não dá para negar que são representantes legítimos, porque eleitos segundo as leis, mas que distorção da vontade das cidadanias que votam! Todas as múltiplas e diversas cidadanias deste país acabam mascaradas por regras e poderes nada democráticos, está é a verdade.  Felizmente, tais regras não valem para a eleição da Presidência da República, onde decidem os votos majoritários em eleição nacional, permitindo refletir melhor a composição da diversidade social e política cidadã do Brasil.

O problema concreto para governar a partir do Executivo é que se faz necessário compor politicamente com o Congresso assim conformado. Não indo muito longe e ficando no período inaugurado pela Constituição de 1988, a conciliação com o Congresso é uma regra que limita o poder do Governo eleito. E, ainda pior, há o Centrão fisiológico onde quase nada se aprova sem ele. O Centrão é, em termos institucionais, uma baliza delimitadora do que é possível negociar com sucesso em votações no Congresso.

Não tenho dúvidas que o desempate nessas condições de qualquer proposta que tem que passar pelo Congresso supõe concessões por parte do Executivo ou, então, uma espécie de paralisia. Felizmente, nem tudo precisa passar pelo Congresso, ou seja, pelo Centrão. Mas, se alguma possibilidade existe, ela depende e muito de nós cidadanias ativas, exercendo nosso papel político, a partir da sociedade civil, para além do voto em eleições periódicas. A vitalidade da democracia pressupõe, em última análise, o quanto a democracia em si é ou não uma proposta hegemônica na sociedade. Se o Congresso pressiona por concessões, nós com debates e ativismo, podemos definir os limites para concessões. É assim que funcionam as democracias: nós não nos desobrigamos do ativismo contínuo por votar periodicamente. Pelo contrário, precisamos exercer pressão cidadã para fazer valer o voto majoritário concedido na eleição do Executivo mor, no caso o Presidente Lula. Simples e complexo assim.[1]

Mas isto não é tudo, enquanto limites para a democracia. Temos um sujeito político sem cara nem voto, mas é de pessoas da classe dos 1%, que se apresenta como “mercado” e veta tudo que pode significar algo menos para tal classe. Claro, tem um representante como presidente do Banco Central “autônomo” (melhor dito, não sujeito à política e à vontade da cidadania), mas com muito poder real para produzir o impasse total num país como o Brasil. Aí o osso é duro e o ministro Haddad  não parece estar conseguindo grande coisa nas suas muitas conversas reservadas com aqueles pouquíssimos representantes dos que gostam de se chamar “mercado”. Que mercado é este que impõe tais limites para a democracia no Brasil? O Lula tem falado grosso, mas o “mercado” não tem ouvidos, só poder real de veto, sem voto para tanto. O problema é que retomar o caminho de uma democracia um pouco mais virtuosa em sua capacidade de promover o cuidado de gente e da natureza (como venho enfatizando) colide com uma economia voltada essencialmente à acumulação privada de uma fraçãozinha de gente. Este tal mercado é um fantasma, mas real. E os lobistas do Centrão são por ele financiados. Temos que encontrar formas de peitá-lo algum dia. Novamente, uma questão para a cidadania enfrentar gerando força política com capacidade de levar a uma democracia ecossocial transformadora que precisamos, que precisa passar por mudanças profundas na economia.

Vale a pena dar uma olhadinha na nossa volta, na América do Sul, nos governos com propostas minimamente progressistas. Os problemas que enfrentam são semelhantes, mas do que sei não posso afirmar que se manifestam do mesmo modo. Pela proximidade maior, vale a pena acompanhar o caso argentino, com Fernandez Presidente, totalmente encurralado pelo mercado, de forma particular pelo FMI/BM e os “fundos abutres” por trás. Ele já anunciou que não vai buscar a reeleição, pois não vê saídas para o impasse.

O caso chileno é emblemático, que precisamos avaliar para aprender onde a cidadania errou. Não vou entrar em detalhes, mas foi o país com a maior insurreição cidadã da região nestes tempos recentes. Conquistou uma Constituinte Exclusiva, ganhou a maioria na sua composição, propôs uma fantástica Constituição e... perdeu no voto majoritário que precisava referendá-la. Isto que tinha eleito um jovem presidente, o Bóric, vindo da militância, desde o movimento estudantil, contra tudo o que o ditador Pinochet impôs ao Chile,  no que se tornou então o mais radical experimento neoliberal da região. Pior, agora, numa nova eleição para redigir outra Constituição, a direita chilena acabou de ganhar a maioria. Tudo voltou a estaca zero. Tem que ser assim? Não, mas temos que aprender a nunca deixar de ser vigilantes e ativos como cidadanias.

O caso da Colômbia é, talvez, mais parecido ao da gente. A vitória de Petro foi um marco de grande significado democrático, depois de um século sem governos de esquerda e muita divisão, até guerrilhas por mais de 50 anos, exército paralelo, produção e tráfico de cocaína, bases militares dos EUA. A seu modo, a eleição que deu a vitória a Petro foi empolgante e revigorante. Mas a coalizão política em torno a Petro não obteve maioria no Congresso. Como Lula, ele soube costurar um apoio parlamentar, compondo um governo amplo. Mas em nove meses, o centro do programa que o elegeu – grandes reformas, especialmente na saúde, no trabalho e na questão agrária – submetido à aprovação no Congresso acabou perdendo. Pior, perdeu com o votos de partidos com ministros no governo. A reforma na saúde, financiado pelo setor público mas implementada totalmente por prestadores privados, é a sua proposta mais ousada até agora, mas nem o partido da ministra da saúde apoiou. Assim, Petro apostou numa remodelação total do seu governo, demitindo os ministros de partidos infiéis. Agora está decidido a fazer o que sabe fazer melhor: apelar para a cidadania nas ruas. Sem dúvida, algo ousado, mas caminho possível e virtuoso em democracias para valer. Veremos em breve o resultado.

Aponto isto tudo que se passa na nossa região para afirmar que não existe mais espaço para governos de “progressismo neoliberal”, como formam muitos dos governos de esquerda no Continente, sobretudo na primeira década do século, aproveitando o boom das commodities, provocado pela demanda da China em fantástica expansão capitalista. Hoje a situação é outra e isto o Governo Lula já demonstrou que sabe e está jogando suas cartas, com maestria e reconhecimento, na esfera geopolítica.

Mas para dentro, para nossas emergências e urgências ecossociais que demandam cuidado com gente e com a natureza, com virtuosidade transformadora,  tem o Governo Lula forças políticas? Até onde dá para ser conivente com o Centrão e com o fantasma “mercado”? Penso que nós, cidadanias diversas, podemos não ter resposta, porque nem estamos lá de forma a decidir. Mas, sim, podemos influir se assumirmos que um tarefa nossa e que só nós poderemos desenvolver: a legítima pressão cidadã no chão da sociedade, com eco lá no Planalto. Acho que, de algum modo, o Governo Lula 3 espera isto, depois de tudo que aprontaram contra ele... com a total conivência do Centrão nos governos petistas de 2003-2016. O Golpe contra Dilma e a própria prisão do Lula contaram com o Centrão.



[1] Sugiro examinar com atenção a série de postagens de Jean Mar von der Weid, nestes primeiros meses do Governo Lula. Ele aponta, com muita compromisso e competência de militante histórico, as grandes questões jogadas no colo do Governo Lula, que são também questões para nós, cidadanias ativas.

terça-feira, 2 de maio de 2023

O MST, o Abril Vermelho e a Democracia


Mais uma vez, o MST marcou com ações a data do Massacre de Eldorado de Carajás, em 17 de abril de 1996, quando 19 sem terra foram assassinados pela polícia do Pará, a mando do governador. Os assassinados faziam parte do MST e estavam ocupando uma estrada da região como forma de luta para serem ouvidos e atendidos em suas legítimas demandas.  Anualmente, o MST celebra o Abril Vermelho com grandes atos, especialmente ocupações de latifúndios e ou espaços públicos pelo país. As ocupações são um modo de fazer a sociedade brasileira lembrar o criminoso massacre de sem terra e seu significado. Ao mesmo tempo, as ocupações reafirmam a identidade e a voz coletiva, assim como o modo de ser e agir do MST na luta por Reforma Agrária (RA).  Trata-se de um dos maiores e mais importantes movimentos sociais do Brasil, reconhecido mundialmente e integrante ativo da Via Campesina, desde a sua origem.

Assinalo ainda a coincidência do Abril Vermelho do MST com o Acampamento Terra Livre (APL), dos Povos Indígenas, organizado pela APIB, em Brasília. Trata-se de outra frente de luta estratégica  na questão da terra, no caso, tanto no enfrentamento radical dos invasores e destruidores, como no reconhecimento e demarcação de territórios indígenas, definido como seu direito na Constituição de 1988. 

Como sempre, as ocupações do MST despertam reações as mais contraditórias possíveis. As avaliações mais consistentes são poucas e chegam a círculos muito restritos no interior de organizações e movimentos sociais, sem conseguir pautar de algum modo significativo os grandes espaços de debate público.  As notícias sobre ações do MST, quando conformadas e difundidas pelos grandes veículos de comunicação, ficam  incompletas e, sobretudo, com um viés que não consegue esconder de que lado tais meios estão no bloco de relações de classes e de forças políticas dominantes no Brasil. O núcleo duro desse bloco se conforma ao redor das forças do atraso de bancadas lobistas no Congresso Nacional, como a do agronegócio e da mineração. São bancadas que, se necessário for para defesa de seus interesses, não duvidam em dar suporte a agendas antidemocráticas – como vimos com o bolsonarismo - para manter seus privilégios de classe, defendidos como “direitos adquiridos”.   

Enfim, a RA, que é o centro da questão, como necessidade incontornável para enfrentar democraticamente as históricas e estruturais injustiças e destruições, em nome de direitos iguais, nunca merece consideração enquanto tal. Ocupam um privilegiado espaço as poderosas vozes de defesa  incondicional dos latifundiários,  desmatadores e extrativistas de todos os tipos. Tanto assim que, mais uma vez, se ameaça o MST com uma CPI no Congresso.

Meu objetivo aqui é qualificar a questão da RA e a importância das lutas do MST e outras lutas territoriais para mantê-la viva como uma questão central da democracia para as maiorias, democracia que valha a pena ser praticada e vivida.

Estamos apenas saindo da verdadeira devastação democrática, iniciada com o Golpe de 2016 e consolidada pelo governo seguinte de extrema direita.  Com sua visão de direita fascista, contando com as cumplicidades das Forças Armadas e apontando com a possibilidade de volta da ditadura militar, a própria institucionalidade democrática, conquistada com a Constituição de 1988, esteve seriamente ameaçada. Do meu ponto de vista, considero especialmente grave a conquista obtida pelo bolsonarismo  no seio da sociedade civil, com seu discurso de ódio militante e exclusão dos “descartáveis e indesejáveis”, pela cartilha de “Deus, Pátria e Família”, do fascismo. Aí entram as grandes maiorias das periferias urbanas e rurais. Os povos indígenas, os quilombolas e os sem terra, todos foram vistos como indesejáveis a eliminar.

Felizmente, Lula venceu legitimamente as eleições e agora lidera o governo. A esperança voltou e dá para respirar! Mas como ir mais longe, para que a ameaça da extrema direita não volte amanhã? Basta lembrar o papel das fakenews, as orquestradas ações de bolsonaristas e o que fizeram no dia 8 de janeiro passado.

O Lula 3 parece mais determinado e vem reassumindo o seu papel de estadista mundialmente reconhecido e que precisamos no governo do Brasil, no momento. Ele se propôs a ser um governo de reconstrução democrática e apontou como prioridade o cuidado de gente e da natureza, que nos cabe gerir democraticamente para o nosso bem e o bem do Planeta Terra.

Mas, nunca é demais lembrar,  Lula ocupa um lugar central nas relações de forças do poder estatal. Importante e estratégico, mas ao seu modo limitado. Em democracias, o governo é mandatado pelo voto para agir em nome da cidadania. Em democracias, instituinte e constituinte sempre é e será a cidadania em sua diversidade. Nosso poder de cidadania, porém, não acaba no votar regularmente, expressando que Estado queremos. A nossa legitimidade de agir como cidadania, em nossa diversidade, tem um papel central indispensável e permanente, com intensa participação política desde os territórios em que vivemos.  É isto que pode criar as condições políticas para que a democracia seja a mais viva e intensa, podendo avançar em termos de transformações democráticas conduzidas pelo Estado, em nome da cidadania.

É neste quadro que penso a legitimidade da questão da RA como demanda ao Estado que vem da cidadania, do seio da sociedade civil, de seus grandes movimentos sociais. O esforço de desqualificar a demanda e as lutas por RA, dada a composição das relações de forças na conformação do Estado, especialmente no Congresso Nacional, é até compreensível analiticamente, mas inaceitável e devemos combater todos. É de legalidade e legitimidade que se trata ao levantar a bandeira da RA. A estrutura agrária que temos nega direitos fundamentais e, por isto, é um dos maiores limitantes estruturais da própria democracia para cuidar prioritariamente de gente e da natureza.

Será que poderemos ter democracia sustentável sem enfrentar esta chaga estrutural que vem lá de longe?  O Brasil, do pau Brasil e dos desmatadores, começou com a conquista e colonização da Pindorama, com usurpação de territórios e morte aos povos indígenas originários, formando enormes latifúndios, em base ao tráfico negreiro e escravidão, com produção voltada para fora. A lógica de fundo continua até hoje. Como cuidar de gente e da natureza sem enfrentar tal estrutura agrária que nega qualquer cuidado com gente e com a natureza? Sua única motivação é a acumulação privada sem limites, conquistando mais e mais terras, desmatando, queimando e implantando sistemas de produção altamente dependentes de químicos, agrotóxicos, contribuindo com a maior parte das emissões que estão levando à destruição do clima e da integridade dos sistemas ecológicos da natureza. O Brasil, pelo tamanho da população e território é fundamental geopoliticamente para qualquer mudança virtuosa neste domínio em busca de outro modo de viver e conviver, que tenha o cuidado no centro.

Numa curta postagem não dá para enfrentar as questões todas que as lutas por RA, assim como as resistências de indígenas, catadores e quilombolas, vem  levantando para a sociedade desde muito tempo. Sem terra e lutas por reforma agrária precederam o próprio MST (que foi fundado como tal em 1984). O que, sim, quero destacar é a potência da identidade e da voz, assim como o impacto político do MST como movimento de cidadania na redemocratização do Brasil e até hoje.

Indo direto ao ponto,  penso que para reconstruir e, sobretudo, para avançar com democracia transformadora de estruturas, precisamos construir e conquistar hegemonia democrática ecossocial transformadora. Hegemonia se constrói na batalha das ideias e propostas no seio da sociedade civil e se expressa como conquista hegemônica quando vira direção política do Estado democrático. A vitória de Lula tem sabor de conquista democrática, mas ainda não é hegemonia plena. Para isto, precisamos de muita ação cidadã, de muitas identidades e vozes ativas se expressando e reivindicando, com impacto  no debate público, para que a proposta democrática ecossocial se constitua como força irresistível desde o chão da sociedade civil, legitimando tal agenda. Aí a criatividade de todos os movimentos e sua capacidade de ação e influência na agenda é fundamental.

Democracia tem poder sim de transformar, mas não é um projeto em si, pois se trata de aplicar radicalmente um método de fazer política e implementar leis e políticas que atendam às demandas da cidadania. Tal método ganha legitimidade quanto mais impacto e expressão ganharem as cidadanias ativas, configurando um bloco de forças democráticas irresistível da diversidade, lutando por direitos iguais para todas e todos, desde a sociedade civil. Em minhas análises e engajamento político, sempre aponto esta questão de fundo para as democracias intensas. E isto, em democracias, se faz passo a passo, onde o maior número de diversidades em luta por direitos democráticos iguais cabem, como um bloco democrático em construção permanente. Defino os múltiplos movimentos e organizações sociais, com suas identidades e vozes, como múltiplas cidadanias em ação ou cidadanias ativas. O seu entrelaçamento é sinal de força política. Por isto, para construir e conquistar hegemonia, todas as cidadanias são necessárias, quanto mais vozes e maior número, mais potente será a democracia real.

Movimentos como o MST, com sua identidade sem terra e seu modo de agir, estão contribuindo de forma praticamente insubstituível para a democracia poder avançar. E precisamos de potente democracia transformadora da estrutura agrária e sua lógica de acumulação de terras como base de produção não sustentável e excludente ecossocialmente.[1]Como vimos no recente período devastador que vivemos, os latifundiários foram um dos grandes suportes declarados ao projeto fascista e foram os grandes beneficiários com o mote governamental de “abrir a porteira e soltar a boiada”. A porteira  aberta se revelou em números da conquista de territórios protegidos e de povos originários, com violência e mortes,  destruição de florestas, grilagem de terras, desmatamento, queimadas e garimpo ilegal e contaminante dos rios, até trabalho escravo. Enfim, nenhum “cuidado com gente e natureza”. Pode haver maior agressão à democracia?

O cuidado de gente e da natureza pode ser o grande mote para construir hegemonia democrática ecossocial transformadora. Afinal, toda a mídia dominante e o que a tal bancada ruralista ignora é que o MST, nas terras já conquistadas pela tímida Reforma Agrária até aqui, pratica uma agricultura viável de cuidado, de produção de comida boa, saudável, para gente, em bases agroecológicas. Basta ir aos armazéns do MST para ver o que isto significa. Mas para quem duvida, lembro aqui que o IRGA – Instituto do Arroz do Rio Grande do Sul – atesta: o MST é  o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.

A bandeira da RA tem o potencial de congregar os sem terra com os camponeses de subsistência da agricultura familiar, as redes agroecológicas, os povos indígenas,  quilombolas, coletores de produtos das florestas, pescadores ribeirinhos. E junto com eles todos os amplos setores engajados nas lutas por direitos iguais na sociedade como um todo. É uma complexa e orgânica agenda no enfrentamento da fome, da miséria, do racismo e patriarcalismo, das injustiças e destruições ecossociais e da mudança climática.

Para concluir, quando falamos em cuidar de gente e da natureza parece que só estamos tocando no emergencial. “Fome tem pressa”, dizia Betinho 30 anos atrás. Por isto, queremos, sim, que as emergências sejam imediatamente enfrentadas em nome do cuidado com gente e a natureza. Elas são politicamente as feridas abertas e sangrando na própria democracia, que precisam ser estancadas o quanto antes. Mas, como cidadanias ativas  por democracia transformadora queremos, pela voz e ação do MST e de todas as frentes de luta dos povos das florestas, campos e águas, que as ações emergenciais sejam sementes de transformações democráticas ecossociais sustentáveis nas estruturas causadoras da miséria e fome,  das injustiças de todo tipo e das ameaças à integridade dos territórios em que vivemos. A ação desencadeada junto ao povo e território Yanomami é um exemplo do que precisamos em todo o país.  

Está é a potente mensagem do MST com seu Abril Vermelho. Sem RA ampla a sociedade vai continuar sangrando e sofrendo. Já é tempo de dar um basta!, pois assim não dá mais. O bem viver de todas e todos precisa ser a regra da democracia e não a exceção.

 



[1] Só lembrando: em artigo de 2020, Ricardo Westin aponta que  as propriedades de 2 mil ou mais hectares eram somente 0,70% do total, mas controlavam 50% das terras. Na outra ponta, as propriedades de menos de 25 hectares  eram 60% do total e juntas controlavam em torno de 5% das terras.  Westin, R. “Há 170 anos , Lei de Terras oficializou a opção do Brasil pelos latifúndios”. Senado Federal – Arquivos. Publicado em 20/09/2020.