domingo, 27 de novembro de 2022

O Projeto Coletiva Que Precisamos Definir


Estamos em um momento de grande expectativa para que a transição de governo aconteça sem nenhum sobressalto. Isto até pode parecer normal depois de uma intensa e tensa disputa eleitoral com o governo que agora termina. O que mais queremos é ao menos voltar a sonhar que é possível viver em democracia para todas e todos. Esperamos e merecemos isto.

A tarefa inicial do Governo Lula será, sem dúvida, arrumar a casa como condição para enfrentar emergências e urgências inadiáveis. Isto tem que ser feito, em nome do cuidado das pessoas e da natureza, como enfaticamente anunciado e assumido pelo próprio Lula na definição de seu mandato. Mas de imediato se coloca a questão: se trata apenas de voltar ao que era e o que tínhamos de políticas desenvolvidas nos governos democráticos anteriores, especialmente período dos governos petistas? Ou, desde o início, a questão é também enfrentar o desafio  de começar a definir e lançar as bases democráticas ecossociais mais sólidas de um país de cuidado, convivência e compartilhamento nas relações entre todas e todos e nas relações com a natureza?

O fato é que temos uma sociedade assentada em bases excludentes e destrutivas, que precisam ser transformadas, não só mitigadas ou controladas. A conquista e a colonização como lógicas estruturais operam até hoje. Nunca é demais lembrar que tais lógicas movem a economia e tem controlado o poder estatal como seu apoio político estratégico. Não cabe aqui analisar a violenta e triste história de nossa formação feita a pau e fogo. Mas devemos ter sempre presente que foi um processo de violência, destruição e morte sistemática, contra os povos indígenas originários, escravos negros africanos, imigrantes pobres da Europa e todos os descendentes dessa população, assim como contra a natureza. Foi um processo de formação econômica, social, cultural e política negando o cuidado como prioridade incontornável para a vida em sociedade de convivência e compartilhamento. Pelo contrário, como processo ainda dominante carrega um viés colonial extrativo e destrutivo, racista, patriarcal e violento no seu DNA, renovando-se a serviço de uma oligarquia de base territorial, capitalista e financeira, subserviente aos interesses geoeconômicos e políticos mundiais de turno. Os negócios do agro e do minério continuam no centro da economia e, pior, se fortaleceram, levando a um aprofundamento da reprimarização e dependência econômica com apoio do Estado e suas políticas.

Isto, como projeto, continua colonizando o imaginário em amplos setores da sociedade civil, apontando o extrativismo amplo como base das nossas “fortalezas” para o desenvolvimento do país. É emblemático em nossa história que os colonizadores começaram pelos “fortes” de conquista no literal – o embrião do Estado colonial -, que são a origem das próprias forças armadas e de sua sanha sempre presente de definir autoritariamente os rumos e os projetos da nação Brasil, como se fossem um poder legítimo para tanto.

Fome, miséria, pobreza, precariedade e violência em que vivem milhões da nossa gente, explorados e com direitos negados, em territórios ameaçados  e degradados nas “periferias” urbanas, nos campos e nas florestas, os que já são afetados pela mudança climática,  são o retrato ecossocial da falta de centralidade do cuidado com pessoas e natureza entre nós. Precisamos de economia e de Estado para o cuidado. Ou seja, desde aqui e agora, as próprias urgências e emergências tem que ser pautados por um projeto de país justo e sustentável buscando criar novas bases democráticas ecossociais. Tarefa para muitas gerações, mas que não podemos mais adiar, pois poderá ser tarde e gerações futuras não nos perdoarão.

Um projeto radicalmente democrático e transformador da lógica colonial vigente é tarefa coletiva permanente, de todas e todos, que precisa ser construído e constantemente renovado como imaginário mobilizador. Mais, ele tem que plantar raízes no seio da sociedade civil, na nossa construção de identidades e vozes como cidadania a mais ampla e participativa possível, para ser sustentável e resiliente diante das ameaças destrutivas e excludentes. Só assim poderemos criar algo virtuoso e irresistível, capaz de moldar e inspirar o Estado  necessário e este poderá, em nome da cidadania  coletiva com sua diversidade, regular a economia e o mercado em tal direção.

Por onde começar? Primeiro, aceitar a centralidade do protagonismo da cidadania em ação. Não é o Estado que vai definir o protagonismo, mas sim cabe ao Estado acolhê-lo e facilitá-lo, através dos poderes executivo, legislativo e judiciário, que nós, como cidadania, temos o poder de definir e redefinir como instituintes e constituintes que somos, se necessário for.

Sem dúvida, ampliaram-se as destruições, exclusões e ameaças fascistas sob o governo atual, não só por cerceamento das vozes de cidadanias discordantes, mas pelo lawfare contra as nossas lideranças políticas emblemáticas surgidas das lutas cidadãs e nas disputas eleitorais, pela disseminação em massa de fakenews em redes digitais e assim conquistando suporte a seu projeto ditatorial em nome “Deus, Pátria e Família”, mote pelo fascismo. Cabe ressaltar, também, a desconstrução de espaços de participação social em políticas, a liberação de armas e legitimação de milicianos,  a “abertura das porteiras para o estouro da boiada” sobre os territórios de cidadania, de forma a mais violenta e destrutiva nestes anos de perda gradual de intensidade da democracia conquistada.

No entanto, não dá para ficarmos satisfeitos com apenas um retorno ao que tínhamos e que foi definido mais de 30 anos atrás, implementado de forma mais virtuosa nos 14 anos de governos petistas de nosso período democrático recente. Nós mesmos temos que nos reinventar e lutar por reconhecimento e legitimidade de nossa participação instituinte e constituinte, que não depende da boa vontade dos poderes de turno. Somos nós, cidadania, e só nós que temos a legitimidade para exigir mais e empoderar os poderes existentes para que atuem na direção necessária.

A questão que estou levantando é a falta que nos faz um consistente projeto democrático ecossocial, baseado no cuidado das pessoas e da natureza. Um projeto capaz de apontar para transformações estruturais em nosso país no longo prazo. Mas projeto que precisa ser definido e assumido com a urgência necessária pela cidadania em sua diversidade, com base em seu papel intransferível de construtora legítima, disputando-o democraticamente para obter hegemonia no seio da sociedade civil e, assim, para poder ser acolhido pelos poderes constituídos. A democracia instituída em 1988 foi uma poderosa semente conquistada devido à potente mobilização da cidadania contra a ditadura militar, mas ainda se mostrou insuficiente para fazer emergir tal projeto coletivo, com capacidade de moldar o Estado e, através dele, regular a economia a serviço da democracia e assentar as bases de busca de justiça e inclusão ecossocial de todas e todos, com cuidado e respeito à integridade dos bioamas que são fonte da vida e do bem viver.

Assim colocada a questão de fundo, trata-se de definições e implementação de políticas que enfrentem a origem e as causas das exclusões e destruições ecossociais, em nome de direitos iguais na diversidade que carregamos. Não dá para combater fome, miséria, destruição e crise climática com uma economia que é voltada exclusivamente para acumulação com bases centradas em um modelo capitalista dependente da vitalidade de diferentes extrativismos destrutivos voltados para fora –  o agrário, o petroleiro e o mineral –  e  reguladas pela ditadura do mercado, acima do próprio Estado. Aí está a lógica estrutural que precisamos enfrentar com um inspirador e mais intenso projeto democrático transformador, que não pode ser definido e assumido coletivamente sem o protagonismo da ação da cidadania em parceria com o Estado.

domingo, 20 de novembro de 2022

Cuidar de Gente e da Natureza


O Lula, a quem o voto da maioria delegou o poder presidencial para liderar a definição de um rumo capaz de renovar nossa democracia ameaçada, está se revelando um estadista sob medida para os desafios brasileiros, regionais e planetários. Ainda não empossado, já vem demonstrando aqui e fora do Brasil a sua estatura de liderança política renovada e determinada, após ter passando pelo que passou. O acolhimento e reconhecimento mundial que recebeu na COP 27, no Egito, devolve um lugar estratégico para o Brasil na busca e construção de novos paradigmas de viver com cuidado, convivência e compartilhamento entre  todos os povos do planeta. Esta é, também, uma resposta simbólica para dentro do Brasil, oportuna e forte em sua dimensão política, para desestimular os focos de militantes fascistas pedindo intervenção militar.

“Cuidar de gente e da natureza” sintetiza um grande desafio emergente e inadiável para a revitalização da democracia do Brasil, nesta encruzilhada histórica. É de saudar esta nova maneira de Lula definir o mandato que lhe outorgamos. Mas, para valer mesmo e conseguirmos desbravar o máximo possível de um caminho democrático virtuoso de transformações, será exigido muito ativismo e capacidade de impacto da diversidade de identidades, vozes e organizações de cidadanias nos quatro anos pela frente. Lula institucionalmente depende da correlação de forças políticas no interior do governo que vai comandar e da relação com os outros poderes da República. Cabe a nós, cidadanias ativas, disputar o que é “cuidar de gente e da natureza” no seio da sociedade civil como imaginário mobilizador e agregador de forças democráticas de participação e pressão legítima sobre o Estado, demandando respostas dos poderes instituídos. Afinal, somos a cidadania brasileira que deu o voto à coalizão democrática vitoriosa em torno a Lula, mas não abdicamos de nosso poder instituinte e constituinte originário. Lula poderá fazer mais se nós mesmos conseguirmos fazer mais.

Como contribuição para a tarefa conjunta que temos como cidadania, gostaria de enfatizar alguns pontos essenciais para o grande desafio que nos damos para este novo momento, que nos obriga a agir melhor e com determinação, sem esperar acontecer. Temos muita prática acumulada nos mais diversos territórios e situações de cidadania sobre “cuidar de gente e da natureza”, brotando das grandes periferias urbanas e rurais. É um patrimônio cultural, político, econômico e técnico em grande parte ainda invisibilizado e ignorado pelas classes dominantes e pelos que circulam nas esferas de poder no Brasil: os e as com mandato, o grande contingente de funcionários públicos de carreira e os assessores, nas três esferas do poder e nos três níveis da federação. Aliás, os que circulam por lá, não importa as opções políticas e partidárias que carregam, tendem a se achar legitimamente designados para fazer valer seus pontos de vista em nome da causa comum. Algo que, como cidadania, temos toda legitimidade para contestar sempre, seja por nos opormos ou divergirmos deles ou, ainda, por que não lhes concedemos o dom da verdade.

O que gostaria de chamar a atenção é para o verdadeiro pipocar de experiências virtuosas de iniciativa local, de movimentos, redes e fóruns sociais de cidadanias, apesar das excludentes e destruidoras relações, processos e estruturas sociais dominantes em nosso país, seja no campo como nas cidades. São poderosas sementes de resistência e demanda de direitos negados, contra exclusão, pobreza e fome, violência, discriminações de todos os tipos, invasão e destruição ecológica do território compartido e, apesar de tudo, de muita vida construída em base a comuns compartilhados. Este patrimônio já vem sento cartografado e sistematizado com as comunidades locais em parceria com organizações e movimentos com maior presença na sociedade civil brasileira. Neste processo são são valorizados potentes casos de identidade e sentido de viver em coletividade mostrando modos de bem viver, apesar das adversidades dominantes. Este é o sólido fundamento para se inspirar a proposição de políticas de “cuidar das pessoas e da natureza”.

O que estou propondo é uma espécie de estratégia combinada de ação para a cidadania fazer valer o mote síntese e mobilizador proposto por Lula para o seu governo, na verdade, nosso governo. Nas análises e reflexões acabei elegendo o cuidado mútuo, a convivência e o compartilhamento como princípios estruturantes para se agregar este enorme patrimônio local e coletivo de como fazer um outro mundo desde onde estamos, fazendo um Brasil que nós mesmos precisamos e o próprio mundo precisa. E o venho concebendo e definindo – na falta de melhor definição – como perspectiva democrática de justiça social ecossocial transformadora, uma espécie de novo  paradigma.  Os economistas não podem partir de suas “falsas” verdades de viés determinista mercantil e capitalista, afirmando que não há alternativas. Os ativistas precisam demonstrar na esfera pública civil e conquistar corações e mentes com uma hegemonia de princípios e valores que fazem sentido em ser um mesmo povo em nossa diversidade, nos cuidado mutuamente e cuidando da natureza. Por isto, julgo o patrimônio de  resistências a ser trabalhado profundamente como  modos de vida que tem potências a serem vistas e empoderadas pelas políticas públicas, transformando democraticamente o país em um viés que considerada a diversidade essencial e não excessão.

Uma concepção ecossocial do viver nos lembra simples e claramente que os mesmos processos que exploram, dominam e violam os direitos das pessoas são estruturalmente os mesmos que conquistam, colonizam e destroem a integridade do grande bem comum à vida de todos, a natureza. Defino isto como complexo de lógicas e processos de injustiça ecossocial que estão nos levando a catástrofes planetárias, como a emergente mudança climática.

Ou seja, fazer justiça ecossocial é ter no centro o cuidado das pessoas ao mesmo tempo em que se cuida a natureza. Isto pode ser uma espécie de revolução, pois não dá para fazer justiça social baseada no extrativismo mineral, florestal e agrícola, com uso ilimitado de água. Será que o “nosso governo” está disposto a tal desafio? Terá força diante dos lobbies das bancadas a serviço das grandes corporações? Será que o Governo Lula terá vontade e determinação para começar tachando pesadamente estes setores destrutivos da natureza em nome do cuidado? Os compromissos públicos atuais de Lula animam, a experiência governamental passada nem tanto. Pior ainda são os desafios da dupla face do autoritarismo já claros, pois estão na praça pública: o fascismo e a “ditadura do mercado” combinados,  acima de qualquer regulação pública e democrática.

Talvez, mais que o Governo Lula, somos nós mesmo, cidadanias diversas, que devemos exercer o poder inigualável que é criar movimentos irresistíveis para “cuidar de pessoas e da natureza”,  contra o fascismo e contra o mercado privatizado. Por sinal, nunca é demais lembrar que mercado e moeda são bens comuns e como tais devem ser regulados pelo Estado, não por especuladores a serviço do capital financeiro globalizado dos 1%. Também, sempre é fundamental destacar que ao cuidar as pessoas estamos fortalecendo o cuidado que elas mesmas já praticam em seus territórios de cidadania como bem demonstrado tanto pelos povos originários e tradicionais nas florestas, como pela sofrida população das grandes periferias urbanas em defesa de seus territórios compartilhados e modos solidários de se organizar para viver diante da cidade do asfalto que a exclui.

Já temos uma vitória a celebar nesta direção: o sonho e a esperança estão de volta e nos apontam um horizonte possível de justiça ecossocial e bem viver.

sábado, 12 de novembro de 2022

Como Fortalecer a Democracia Frente à Ditadura do Mercado?


Com determinação, mas muita dificuldade, a esperança democrática venceu a ameaça fascista aberta. Apesar da vitória política estratégica, sabemos que o fascismo demonstrou força e sustentação no seio da sociedade civil. A vitória foi eleitoral, mas a luta vai continuar especialmente em termos ideológicos e culturais de visões, princípios e valores. A presença de um ideário mobilizador e de propostas fascistas define um modo de ver e agir que vai estar entre nós,  em nosso cotidiano e nos espaços que circulamos. A reconstrução democrática que apontamos com o voto tem desafios, tensões e trapaças pelo caminho que nem temos condições de dimensionar neste momento. Não podemos deixar tal tarefa ser conduzida somente pelo poder estatal, pois ele é expressão da própria fissura, na medida em que deve ser um governo voltado para toda a cidadania. A hora das cidadanias ativas chegou e não vai dar para poupar forças em todas as frentes.

Além do ideário fascista e forças que o sustentam na sociedade, precisamos ter presente uma outra grande ameaça, mais de ordem estrutural, representada pela “ditadura do mercado”. Sim, é mesmo de ditadura capitalista que se trata!  E ela já demonstrou o seu poder diante de uma simples fala de Lula, em Brasília. De um modo claro, simples e de grande empatia de alguém que se fez o que é em memoráveis lutas por direitos iguais e, em nome deles, engajado do lado dos mais fracos, Lula disse simplesmente que não pode ser admissível fazer políticas públicas somente tendo a lei férrea de respeito a regras de teto de gastos governamentais determinadas em lei, tendo o mercado financeiro como referência, sem uma equivalente lei que estabeleça prioridade absoluta do governo no combate à fome e miséria, que  afetam milhões de brasileiras e brasileiros. O “mercado”, através de seus operadores visíveis reagiu no ato, provocando queda da bolsa e desvalorização de nossa moeda. Este é o começo, apenas!

Isto diz muito das contradições presentes  para tornar a democracia uma possibilidade real de acesso a direitos e de uma sociedade brasileira ao menos desigual e destrutiva. Trata-se do poder real dos controladores das grandes corporações econômicas e financeiras globalizadas, que nos estão levando à esta situação de bem limitadas possibilidades de reconstrução. Aliás, basta olhar pelo mundo para perceber as grandes responsabilidades deste capitalismo financeiro neoliberal na emergência de governos de extrema direita por toda parte, em versões remodeladas de fascismo. Mas, sabemos, se trata de um pequeníssimo grupo com poder de veto acima de democracias e instituições, que não se  importa com a “saúde e bem estar dos povos e do planeta”, pois seu único e exclusivo valor e critério é a liberdade de acumular capitais sem limites. Aí temos os tais 1% com poder absoluto, com poder real de veto sobre sociedades e governos, não importando a catástrofe a que estão levando o planeta e a humanidade inteira.

Não adianta tapar o sol com a peneira, esta é a realidade nua e crua. O melhor é encarar os seus desafios do que fugir dela. Aqui estamos falando de duas ordens e grandezas de problemas a enfrentar democraticamente e realizar conquistas possíveis. Não podemos abandonar o horizonte estratégico, de longo prazo, de implantar democracia ecossocial transformadora, de bem viver para todas e todos, na igualdade cidadã com diversidade, no maior respeito à integridade da natureza que nos dá a vida, com cuidado, convivência e compartilhamento. Mas o longo prazo se faz abrindo caminhos desde aqui e agora, de lutas que se fazem desde o cotidiano por um viver mais saboroso de viver.

Assim, antes de tudo, precisamos fortalecer o imaginário mobilizador que demonstramos com a eleição e a vitória. Sim, somos hoje uma frente ampla e diversa, mas temos os nossos pilares no chão da sociedade. Basta entender a cartografia da cidadania desenhada pelo voto: a maioria pobre e excluída demonstrou força a partir de seus territórios e periferias. Um tal começo já nos dá mais certeza do caminho, sem as bases pobres mobilizadas e exercendo a sua cidadania é a própria democracia que não tem sentido vivo e transformador. As forças do mercado e do fascismo  só estão à espreita de nossos vacilos para entrar em cena com as suas propostas concentradoras de riqueza e destruidoras dos bens comuns para o viver juntos. Somos nós que devemos, como cidadania, demonstrar força e determinação na busca de mais democracia viva para que o Governo Lula possa ousar nas políticas emergentes necessárias.  Podemos discutir e agir para que tais políticas sejam virtuosas em transformações das causas e capazes de afirmar direitos. Não poderemos sonhar mais alto no momento se para uma grande parte de nossos conterrâneos o sonho é um simples prato cheio de boa comida no dia a dia e ter um teto para o direito de se sentir bem em sua casa, comunidade, território, ter trabalho e renda, saúde e educação, sem medo de sua escolhas de ser morto por ser pobre, preto, indígena, mulher e por suas preferências religiosos ou sexuais. Nossa revolução democrática pode ser tão simples e radical ao mesmo tempo, recomeçando aí e arrancado daí o sentido maior para enfrentar o que é necessário nesta conjuntura. De um lado, a destruição e os retrocessos provocados pelo governo fascista derrotado, com a sua ameaça ainda pairando em todas partes. De outro, mas igualmente estratégico, demonstrando o poder regulador do mercado que cabe ao Estado fazer pelo mandato que lhe delegamos. Aí o embate é ordem estatal, dos três poderes e dos diferentes níveis, até os territórios em que vivemos. Sabemos que o “senhor mercado” se sente senhor acima de tudo e capaz de sobreviver  a governos, desde que o estrutural de suas fontes não tenha a lógica alterada fundamentalmente, mesmo sendo obrigado a condicionalidades regulatórias e, sobretudo, contribuir muito mais para o coletivo com impostos sobre seus lucros e riqueza acumulada. Isto podemos querer e sonhar que desta vez o Governo Lula terá que liderar as propostas e obter conquistas, sob risco de nem podermos almejar dias mais justos para o conjunto da cidadania deste país.

Esta parada o Governo Lula poderá enfrentar com sucesso se nós tomarmos tal tarefa imediata como nossa também, das cidadanias ativas. Afinal, não podemos conviver com o “terraplanismo” dos especialistas do mercado quando enfrentamos com uma vitória o “terraplanismo” ambiental e da pandemia do inominável, como bem define tal desafio o Paulo Klain.[i] Enfim, o modo de democracias conseguirem serem efetivas reside na disputa incansável por direitos e não na espera de soluções milagrosas do Estado, pois estas não existem.

 

 

 

 

 

 



[i] Klain, Paulo. “Por trás do engodo do ‘Brasil Quebrado’ “. Combate Racismo Ambiental. 09/11/2022

segunda-feira, 7 de novembro de 2022

Esperar Não É Saber...


A vitória na disputa eleitoral foi um ganho estratégico para quem luta pela democracia, afastando temporariamente a ameaça fascista. Mas a disputa democrática não acaba com as eleições e a institucionalidade que as regula, legitima e confere poder estatal. Já entramos em um novo momento, uma nova conjuntura. E as ameaças estão aí, com forças que não podemos ignorar, tanto na esfera política, como, sobretudo no seio da sociedade civil. O imaginário autoritário e fascista se revelou forte e está entre nós, nem tão camuflado e envergonhado de pregar a sua visão de mundo, seus valores e seus métodos.

As democracias se assentam em disputas e extraem virtude delas, mas segundo regras instituídas. Isto implica em encontrar formas de convivência entre blocos de forças divergentes e opostas, sempre com possibilidades de novos arranjos. Assim, a normalidade democrática é disputar, disputar..., negociando muito. No entanto, como cidadania somos os detentores do poder último para, pelo voto, decidir sobre maiorias,  mudando até a institucionalidade se necessário for. É para isto que existem os instrumentos do plebiscito e do referendo, assegurados em nossa Constituição. Também podemos, como cidadania, propor iniciativas legais com a mobilização de um certo percentual de apoios formais (assinaturas por quem ter direito de votar), estabelecido na Constituição. Mas, aqui se impõe reconhecer, são instrumentos fundamentais,  quase sempre  ignorados pelos que obtiveram de nós o mandato para exercer o poder estatal em nosso nome no Brasil, nas últimas três décadas e meia de democracia conquistada. Na verdade, sua efetividade depende de nossa ação cidadã, quase exclusivamente.

Uma tal introdução política um tanto conceitual, aqui no blog, é para apontar uma questão que é o nosso maior desafio atual. Estou me referindo às fortes forças que abraçam o fascismo no Brasil e negam a própria democracia. Não podemos, de jeito nenhum, confundir o núcleo aglutinador do fascismo como sendo  composto por todas e todos que votaram no “imbrochável”, mas sim reconhecer a sua capacidade de obter votos de cidadania com pregação antidemocrática. Como conviver e disputar com este bloco que se opõe à democracia? Nem temos uma qualificação completa de sua composição e da sua real capacidade de pressão e disputa para além dos espaços de poder. A primeira e maior constatação é que, nas últimas eleições, esteve em jogo a democracia enquanto valor e projeto político social de convivências de toda a sociedade. Estivemos sob ameaça de ruptura democrática  e, por isto, a vitória que demos a Lula tem um peso estratégico, de contenção conjuntural  da ameaça, mas não de sua eliminação.

Precisamos reconhecer, queiramos ou não, que o fascismo está implantado no chão da sociedade e no nosso cotidiano, não só nas estruturas e órgãos estatais. As forças no Executivo, Congresso e Judiciário de algum modo podem conter a ameaça, mas tem limites institucionalmente definidos. Assim, destaco aqui o fato que esperar daí uma saída é corrermos um grande risco, pois o fascismo está implantado aquém e além das instituições democráticas. Tem raízes profundas na sociedade brasileira, especialmente em certas classes e setores sociais, e tem representação com poder de veto no Parlamento. Enfim, não podemos baixar a vigilância e a determinação que nos permitiu ganhar em termos eleitorais.

Temos muito mais com que nos preocupar associado a tudo isto. Basta olhar pelo mundo para ver que estamos diante de uma onda emergente de autoritarismo e de fascismo no interior de muitas nações. Não somos uma exceção, longe disto. Claro que as histórias e as situações tem grandes diferenças. Sempre precisam ser consideradas. Mas também existem alguns processos que podem ser comparados. Não é o objetivo desta pequena reflexão. Simplesmente, aponto a prevalência da “ditadura do mercado” a serviço das grandes corporações econômicas e financeiras que está no centro da globalização. Já há um debate instalado em alguns centros universitários famosos sobre como o pacote de políticas e medidas da globalização neoliberal, do respeito absoluto ao mercado (que denomino de ditadura do mercado), é essencialmente destrutivo das conquistas democráticas e tem um viés fascista excludente.

Bem, no Brasil, temos isto minando permanentemente a democracia. Até parece que podemos tentar melhorar aqui e lá, com mais políticas para garantir direitos, mas desde que respeitando a ditadura do “teto de gastos”, exigido pelo tais mercados “impessoais”. Só sabemos quem ganha sempre e acumula espantosamente, gerando o que temos: um punhado ínfimo de empresários, banqueiros  e grandes proprietários no agronegócio vergonhosamente ricos como contrapartida de maiorias da população escandalosamente miseráveis, famintas e excluídas. Bem, o espaço aqui não permite ir além. Mas se buscamos uma causa para o fascismo  prosperar e a nos ameaçar abertamente,  aqui no Brasil, na região e no mundo, temos que enfrentar tal realidade de poder de fato. Como desta vez o futuro Governo Lula vai tentar extrair algo disto é uma grande questão a ficarmos atentos. Damos legitimidade a Lulae o bloco de forças políticas que gravitam em sua volta podem  para, ao menos, tentar buscar formas melhores de regulação dos mercados, contendo o seu poder em nome da democracia enquanto tal.

O fato é que estamos numa espécie de momento de espera, de alto risco, vendo as negociações para a efetiva composição  do novo executivo na Planada dos Ministérios com poder e habilidade de negociar, negociar e, talvez, ceder sem comprometer a própria democracia! Bota desafio nisto. Já se formou um tecido protetor externo de reconhecimento da vitória, que não pode ser desprezado, e as instituições parecem abertas para negociação. No entanto, há o desafio de extirpar, na forma das leis vigente, o fascismo de dentro de importantes instituições estatais.

E as cidadanias ativas enquanto isto? Volto ao início e reafirmo que a disputa não acabou, mudou de patamar somente. Que poder de participação esperamos ter no governo, sem sermos governo, e como vamos exercê-lo? O engajamento amplo na disputa eleitoral, sobretudo segundo turno, foi decisivo em minha avaliação. Mas a tarefa não terminou, pelo contrário, precisa ganhar força e chegar a setores sociais e territórios em que vivem cidadanias que, de alguma forma, foram contaminadas pelo antipetismo e deram apoio eleitoral às propostas fascistas. Tal questão precisa ganhar relevância no nosso ativismo pela democracia e nas análises daqui para diante, para criar diques mais amplos às propostas fascistas, que continuam ameaçadoras, só não vê quem não quer.

Aqui entro numa questão estratégica para o campo da disputa política no seio da sociedade civil. Não me refiro a partidos, mas à questão de construir hegemonia para a própria proposta de uma democracia de direitos iguais na diversidade, democracia de justiça ecossocial, democracia com poder de obter a adesão consciente de corações e mentes, para participar em todos os espaços possíveis e imaginários de construção do seu próprio poder instituinte e constituinte da democracia. Só assim vamos ampliar a construção de barreiras sociais, culturais e políticas ao fascismo.

Só para lembrar, a disputa de hegemonia está aquém e além das estruturas formais e institucionais de poder. Seu lugar é, essencialmente, no seio da sociedade civil e suas instituições:  territórios de viver e comunidades, organizações, sindicatos, associações e movimentos sociais, coalizões, redes, fóruns, com as suas diversas identidades, vozes e plataformas de ação, instituições de cuidado das pessoas, espaços e práticas de cultura e comunicação,  universidades e editoras, igrejas em sua diversidade. Os partidos políticos, apesar de sua legitimidade institucional, especialmente nas disputas eleitoras e representação no poder estatal, nunca conseguem representar politicamente o tamanho e o poder de tal diversidade em termos ecossociais e econômicos. No entanto, é neste plano da sociedade civil que a diversidade ecossocial, que nos constitui, encontra o seu direito de reivindicar pertencimento e reconhecimento como titular de direitos iguais, base da cidadania em democracias que vale a pena viver.

As eleições nos deram um vislumbre do desafio que temos pela frente desde, no mínimo, a eleição de 2018. Estou explicitamente apontando  o bode de algum modo presente em tudo: a propaganda fascista de visões, princípios e valores de grande impacto, pois usa melhor que nós as novas tecnologias de informação e as redes sociais que permitem construir imaginários. Ou seja, a “invasão” da pregação  de tipo cruzada destrutiva, de apagamento, em nome do lema fascista de “Deus, Pátria, Família”, com temas como homofobia, misoginia, racismo, armamento e violência, liberdade confundida com o próprio interesse acima de tudo, com fakenews, e nenhum compromisso com a verdade.  Está invasão está ativa e já demonstrou capacidade de penetração em amplos setores sociais. Ela tem tudo para continuar com força.

Precisamos agir ainda com mais determinação neste espaço da sociedade civil e sua complexidade já e com determinação. Não podemos esperar, pois esperar não é saber... como bem lembra a canção que foi nossa, sem conspurcar mas disputando valores, princípios e até símbolos.