sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Os Impsses na Democracia Brasileira em 2023

 

O calendário, como invenção humana, é parte do esforço de nos situar no movimento do Planeta Terra em torno a si mesmo e em relação ao Sol, movimento que não controlamos mas que dita o ritmo natural de toda a vida, humana e não humana. No processo, criamos toda uma cultura de sentidos e momentos de celebração. Mas o que, afinal, significa terminar um ano e começar outro, além da certeza de que tudo se move? O fato é que somos naturalmente levados a pensar o que fizemos e o que deixamos de fazer no transcurso do ano, que não para, mantendo um ritmo constante de um dia diferente de outro, num processo nunca igual, em que ao mesmo tempo  mudamos. Enfim, é a cultura que nos dá o sentido e pode nos levar a definir formas humanas de tirar partido em termos de modos de viver no ritmo que está dado.

Tem sentido nos perguntar o que fizemos e o que não fizemos no ano, mas isto nada muda, já aconteceu e não volta. Podemos aprender e evitar os mesmos erros, o que é virtuoso em si mesmo. Tais momentos de balanço não dependem do calendário, mas ele nos ajuda a situar o quando e o como aconteceu o que aconteceu, assim como os nossos porquês. Na verdade, o balanço tem a ver com o modo como vivemos no ritmo da natureza, mas não podemos atribuir a ela a responsabilidade pelo que fizemos ou não fizemos. Claro, existem eventos naturais extremos, cuja intensidade não controlamos. Mas sabemos que podem sempre ocorrer e que, talvez, deixamos de fazer a prevenção necessária para evitar a possível destruição. Temos o calendário para nos alertar de tais possibilidades sobre quando podem ocorrer, mas nunca a certeza de que vão ocorrer.É neste plano que situo o sentido de fazer um balanço: o nosso modo de viver e fazer acontecer como sociedade enquanto o ritmo natural segue o seu curso ininterrupto.

No dia 1º de janeiro de 2023, Lula tomou posse como presidente eleito, pela terceira vez, em emocionante festa democrática para os que lhe concederam a vitória eleitoral em outubro de 2022, por pequena maioria. Natural que tenha sido questionada. Apenas uma semana após, porém, ocorreu o ataque às instituições símbolo do poder democrático, numa demonstração violenta de contestação do resultado eleitoral e do governo Lula III, por opositores derrotados nas urnas. Dois marcos históricos relacionados, prenhes de sentido político e sinais do “estado” da democracia que temos: “encurralada” e de baixa intensidade. Democracia sob ataque, enfim.

É sobre como aconteceu e os porquês do acontecido no ano que agora se encerra que importa fazer o balanço. A reação política e institucional do governo recém empossado ao ataque foi importante e, num certo sentido, fundamental para evitar o pior. Mas revelou a enorme fratura política existente na sociedade brasileira, que limita estruturalmente a democracia e a atuação institucional de um governo como o de Lula. Como muitas vezes tenho afirmado, ganhamos uma eleição majoritária com a bandeira da democracia, mas não temos hegemonia democrática no sentido político pleno. Temos diante de nós uma direita de feições autoritárias e com adesão popular que não podemos ignorar, com capacidade de peitar as heterogêneas forças democráticas  de nosso bloco político frágil, sem um cimento agregador consistente.

Para dar mais intensidade à nossa democracia, se faz necessário desvendar o bloco de forças estruturais que dão suporte à direita com valores e imaginários fascistas, em sua heterogeneidade e complexidade, para saber como e onde incidir política e ideologicamente. Não podemos esperar soluções a este impasse da própria institucionalidade do poder, porque daí não virá. É uma tarefa que nos cabe como cidadanias ativas, no chão da sociedade. Mas não  a empreendemos seriamente até o momento. E já passou um ano, com novas eleições locais no calendário de 2024. Temo que sejamos surpreendidos por uma derrota nas urnas pelo autoritarismo que saiu do armário, sem medo de se expor  e com capacidade de tomar os espaços públicos.

A velha análise de relações de forças da sociedade brasileira precisa ser retomada com a seriedade e fineza que a situação exige. Não estamos naquele momento dos anos 80 de irrupção criativa de diversidade de identidades e vozes de cidadania na arena pública, que enfrentou a ditadura e nos levou à democracia e à Constituição de 1988. Assim como aquele momento foi inventado, precisamos reinventar politicamente o momento de hoje. Mas, a primeira grande constatação do ocorrido neste ano de 2023 foi a baixa densidade de mobilizações e tomadas dos espaços cívicos mais sensíveis e visíveis pelas cidadanias, a partir dos territórios em que levamos a vida. Cabe destacar, sim, a maior presença dos Povos Originários, Tradicionais e do Campo, em especial das mulheres. Bem, os golpistas também surpreenderam a ocupar ruas e espaços públicos e não tiveram a resposta adequada de cidadanias de perfil claramente democrático. Claro, destaco muitos diagnósticos consistentes de intelectuais de esquerda, sobretudo em meios alternativos, mas cujo alcance é extremamente limitado em termos políticos.

Começo tentando assinalar alguns traços estruturais de mudanças que mal entendemos até aqui.  Dois conjuntos de forças estruturais,  que controlam a economia e a partir dela a institucionalidade política e sua dinâmica, precisam ser melhor diagnosticadas, no seu poder e suas fragilidades. Identificar os seus limites é fundamental para enfrentá-las. Seu poder estrutural não está no número de eleitores – pois são uma parcela minúscula da população eleitoralmente habilitada a votar no país, mesmo contando filhas e filhos, genros e noras, netos e bisnetos. São forças cujo poder se mede pelo que controlam da economia – mais de um terço pelo famigerado PIB e vitais nas transações comerciais mundiais. Mas tão ou mais importante é o poder de “compra de lealdades” e de corrupção como norma política, além, claro, de contar com  milicianos sempre dispostos a lhes prestar serviços. Este é um elemento fundamental na avaliação das possibilidades dentro dos limites para avanços virtuosos democráticos. Normalmente, consideramos como dado que é assim, mas para a ação política isto está longe de ser satisfatório. Afinal, análise política nunca é fatalista, mas uma busca de brechas que, por sinal, sempre existem por trás da fumaça que distorce a visão.

Um destes conjuntos de forças estruturais dominantes na nossa estrutura econômica, social e política é o agromineral, ou seja, a nossa base reprimarizada da economia, com laços fortes com o mundo capitalista globalizado, a seu modo com poder muito maior que imaginamos. Precisamos entender seus laços originários com o colonialismo escravocrata e o coronelismo de donos de terras, gado e gente. Esta classe tem isto na origem, mas mudou e muito. São herdeiros de uma cultura latifundiária e extrativista, que não conseguem negar, onde o controle do território como fonte de exploração e poder é fundamental. Quanto mais território como seu, melhor para eles. A expansão territorial ainda em curso mudou em intensidade, mas não na forma, pois grileiros e jagunças são precursores em conquistar terra, com requintes de barbárie, sobre terras públicas e de povos originários.  Mas não só controlam. Eles exploram com tecnologia de ponta do agronegócio,  grandes equipamentos, drones, aviões, produtos químicos sem controle real, sementes transgênicas, irrigação devastadora, uma verdadeira “industrialização” do campo. Entender esta mentalidade e seus valores é indispensável. Eles se reinventaram no seu imaginário de domínio e controle como princípios norteadores do sucesso, com ares de modernidade, de membros da “classe dominante”  . Afinal, “o agro é tec, o agro é pop, o agro é tudo”. E onde estamos todos os demais? Não descarto uma difusa admiração popular com tal sucesso, o que acabe sendo um verdadeiro desafio ideológico para democratas que se prezam.  

No caso do extrativismo mineral, a origem é um pouco diversa, em geral de fora para dentro ou, como a Vale, de dentro virada multinacional. A empresa extrativista envolvida na grande mina empresarial e tecnologia industrial de monta tende a ser uma sociedade anônima com ações em bolsas das principais praças financeiras do mundo e bases obscuras em paraísos fiscais para facilitar os negócios, em geral, nada transparentes e quase isentos de tributos. Estes, diferentemente do agronegócio, se consideram os “senhores” do mundo. São um punhado de gigantes de primeira linha, sem nenhum vínculo com os territórios a não ser a exploração. Sua regra de conduta denuncia uma mentalidade colonial extrativista, uma economia da sombra, com métodos semelhantes ao tráfico de drogas, tanto na exploração como nas transações comerciais.

Todo este conjunto  defino como agromineral, cujo objetivo central é com a sua lucratividade e continuidade dos negócios, acima de tudo,não importa se agredindo a integridade dos territórios e os desejos e sonhos da população diretamente atingida e da sociedade como um todo. São formas de exploração que, se necessário, não duvidam em adotar formas de trabalho análogo ao escravo, sempre envolvendo intermediários que diluem a sua responsabilidade. Afinal, eles são a nova “nobreza”. Enfim, qualquer ideia de democracia neste conjunto não passa de um “mal necessário”. Mas eles não descuidam da política pois financiam a compra de lealdades para evitar a interferência do Estado. Assim se forma a bancada extrativista e do agronegócio, com poder real de controle dos Congressos e de Assembleias Estaduais, sempre para evitar “regras” restritivas ou controladoras sobre a sua capacidade empreendedora, para “o bem do país”, na sua visão e discurso público, mesmo com grandes desastres ecossociais, como rompimento de suas frágeis barragens de rejeitos.

A outra fração proprietária dominante é a do “mercado”, dos que zelam pelos dividendos de suas fortunas investidas em bolsas e no controle acionário de grandes empresas e bancos. Talvez o ambiente mais obscuro, não por índices, mas por práticas obscuras. Estes são sorrateiros, um minúsculo grupo, mas sabem fazer valer o seu poder de controle e de desestabilização, sempre com olho em sua taxa de lucro imediato. Contratam operadores servis bem pagos, dia e noite atentos à especulação de uma globalizada, com bolsas nas principais praças do mundo. Normalmente se confundem com a elite financeira e especuladora que mais se beneficia com a globalização capitalista, ou melhor, com o “cassino” mundial e seus paraísos fiscais. Não tem lealdades políticas, pois o importante é o capital financeiro que cresce, sempre à espreita da melhor oportunidade, mantendo os governos e suas políticas monetárias sob vigilância “ditatorail”, ameaçando sempre retirar recursos e investir especulativamente onde pagam mais e com segurança. Seu número não conta, mas o poder do dinheiro sim, com chantagem se necessário for.

Isto está longe de dar conta do complexo conjunto de donos do capital e seus asseclas gestores. Existem, sim, empresas produtoras de bens e serviços com base nos núcleos urbanos, fundamentais no funcionamento da economia, gerando muitos empregos e envolvendo muita gente, produzindo algo indispensável para viver, seja por garantir a vida como para expressar bem estar individual e familiar. Mas esta fração de empresários depende do funcionamento do mercado interno para a realização de sues negócios, apesar de não descuidar de oportunidades no mercado mundial. Já foram o setor mais importante do capitalismo periférico brasileiro  nos anos 70 e 80 do século passado. Num certo sentido, o complexo empresarial deste setor é fundamental, mas não tem o poder de “veto” próprio do mercado financeiro. Sem dúvida, muitas empresas dependem dos investidores especuladores e podem sofrer com seus bruscos movimentos, em busca de melhores oportunidades. O fato é que a economia real precisa das empresas industriais e de serviços. Seu  poder econômico pode ser grande e decisivo, mas suas estratégias não podem depender de especulação dado que implicam em investimentos reais e da saúde geral da economia. Crescendo o emprego e a renda média do país, crescem as suas vendas e lucros. Isto obriga esta fração a estar politicamente mais antenada aos avanços democráticos, que sempre podem significar alargamento do mercado para seus produtos e serviços na economia brasileira.

No amplo campo de classes e frações de classes trabalhadoras e médias ocorreram muitas mudanças no contexto da globalização. Em termos democráticos do presente, constituem o setor urbano com mais poder de voto e seus desejos e humores podem definir eleições. O seu peso político é fundamental e é nele que afloram as vozes mais potentes de cidadanias ativas. Mas a sua constituição e renovação como classe e frações de classe é uma tarefa permanente e foco de propaganda diversionista das classes dominantes para que não se formem “maiorias perigosas” em termos políticos. A disputa em termos de hegemonia para uma pensamento ecossocial democrático transformador tem este campo como o terreno social estratégico. Evitar a sua expressão autônoma é um desafio fundamental para as classes dominantes, mas também para cidadanias ativas. É aÍ que a disputa de hegemonia se torna decisiva. Sem dúvida, este espaço social e político é a prioridade para democracias transformadoras.

Aqui cabe um destaque: as grandes periferias. Trata-se algo muito complexo, mas fundamental em termos de futuro democrático. As periferias excluídas são, na verdade, incluídas de forma dominada e controlada, no geral por milícias e traficantes, numa espécie de economia de sobrevivência  que escapa às regulações políticas. O capital imobiliário urbano tem um quê cultura agromineral: controla o território e as lógicas de sua valorização na captura da renda da terra. Tal capital é uma força controladora da expansão e configuração das cidades, segundo as estratégias de fazer valer o controle do território. É o capital imobiliário que define a “cidade” e a periferia, numa lógica excludente que se renova praticamente no dia a dia. O direito à cidade, questão democrática fundamental, é gestionado pelo capital imobiliário e não pelas prefeituras e câmaras municipais, nem pelas vibrantes cidadanias que proliferam nas áreas de periferia. O conluio de tal capital com milícias é um déficit a mais de avaliação política democrática do que de pesquisa, que vem avançando muito. Mas em termos de cuidado de gente e natureza, que normalmente associamos com os territórios rurais, apresentam o maior desafio em periferias urbanas, onde a lei da sela impera sem limites legais, com cumplicidades dos próprios órgãos de segurança e justiça. O racismo mais radical e o patrialcalismo não só caracterizam o viver em periferias como acabam legitimando a barbárie cotidiana sofrida pelas grandes massas de periferia. No entanto, aí prolifera a ciratividade cultural, que tem potencialidades democráticas maiores do que o reconhecimento político na sociedade urbana como um todo, mesmo entre cidadanias ativas.

Claro, é muito esquemática e pobre esta identificação, incapaz de dar conta das contradições que atravessam a sociedade civil real e das possibilidades aí contidas. Mas o foco da comunicação como disputa política na sociedade na construção de modos de ver e pensar, de valores e propostas, é uma tarefa que as classes dominantes priorizam para o bem de seus negócios privados e acumulação. Basta lembrar como é forte a “ideologia do empreendedorismo” como tábua de salvação, que prospera nos meios populares periféricos e conta com a pregação da mercadores da fé... e dízimos. Para o bem de verdade, até de políticas públicas! A liberdade de empreender não é e nunca foi liberdade como direito!

E como este complexo campo de forças aconteceu o ano de 2023? Antes de tudo, cabe reconhecer que não aprofundamos a análise e o debate da situação. Esperamos mais sinais do poder eleitoralmente estabelecido e das lideranças institucionais do que de nossa própria ação como cidadanias ativas, que nem formos tão ativas assim no ano de 2023! Estamos olhando pouco para  o chão da sociedade brasileira e suas contradições. Lamuriamos mais do que buscamos fendas estreitas no “bloco histórico” de forças políticas para desvendar trilhas, que podem virar caminhos virtuosos e transformadores com trabalho político consistente. Enfim, em 2023, fizemos pouco, mas lamentamos muito. Eu me incluo nesta avaliação.

E Lula aconteceu mais fora do Brasil do que dentro. O STF continuou com certo protagonismo. Tivemos novidades nos ministérios mais ainda não está claro para que vieram e que iniciativas virtuosas estão sendo postas na mesa. E o “Centrão” deu todas as cartas, amarrando o governo. Sim, temos uma sensação de “normalidade” depois da desconstrução política empreendida pelo governo anterior. Mas basta isto? Por que não estamos tentando desencurralar a democracia?

Faço uma avaliação de que evitamos o pior, por enquanto, mas não o eliminamos de nosso seio. E não vejo sinais visíveis de algo novo acontecendo. Não dá para identificar algo virtuoso acontecido em 2023. Mas as milícias e a violência policial cresceram assustadoramente, como sinais de que um câncer devastador não bem diagnosticado está se alastrando e nossas ações democráticas de enfrentamento ou não existem ou são totalmente ineficazes. Espero que não sucumbamos ao cansaço. Aliás, precisamos reagir multiplicando células e grupos de reflexão e debate estratégico antes que seja tarde e a direita nos atropele de forma ainda mais consistente. Exemplos na nossa volta, aqui na região, são muitos. Ainda temos tempo para acordar e agir.

Que 2024 nos propicie mais determinação no empenho por democracia ecossocial transformadora!

domingo, 10 de dezembro de 2023

As COPs e a Transformação Ecossocial Necessária

 


Já estamos na COP 28 – Conferências das Partes, dos Estados membros da ONU, para buscar acordos multilaterais sobre o clima. Quantas ainda vão acontecer antes que a mudança climática se torne irreversível? Esperar transformações reais das copiosas boas propostas é acreditar no multilateralismo fracassado da ONU, notável pela incapacidade de selar acordos impositivos para todos os países, dado o poder de veto de alguns. Vivemos num mundo de dominação imperial implacável, onde podemos discutir bastante, desde que o poder não seja ameaçado de fato.

Mas, então, por que as COPs tem tanta visibilidade? Sem dúvida, a questão da hegemonia de um modo de pensar e propor sempre será determinante na implementação de propostas  com capacidade transformadora, mas não necessariamente virtuosa e pacífica. A transformação para valer sempre implica em mudanças nas relações de poder e nas estruturas e processos sociais, até com perdas e danos. Pior ainda, nem sempre para melhor. Esta é uma verdade histórica para a humanidade como um todo. Ficando na questão da ameaça das mudanças climáticas, o cenário de uma destruição  da integridade dos sistemas ecológicos do planeta e das próprias condições de sobrevivência da humanidade não é de todo descartável nas avaliações de muitos cientistas.

A questão da mudança climática saiu de um círculo intelectual especializado e ganhou destaque público com a Conferência da ONU sobre Desenvolvimento Sustentável, em 1992, no Rio de Janeiro.  As COPs, cujo ciclo anual inicia em 1995, buscam concretizar a agenda abrangente então definida. Mas é como termos dois movimentos em disputa um com outro: a globalização capitalista neoliberal hegemônica em plena expansão desde os anos 80 do século passado e um movimento cidadão de múltiplas vozes, cada vez mais amplo, mas sem ganhar poder político efetivo diante da globalização comandada pelas cada vez maiores corporações e seu poder quase absoluto. Grandes movimentos e eventos contestatórios do status quo foram se multiplicando por toda parte, sem conseguir deter ou influir no curso da globalização. Lembro alguns pela novidade e impacto conjuntural, sem maiores consequências no processo dominante: ATTAC, Seattle contra a OMC, Guerra da Água em Cochabamba, FSM, Gênova contra G7, Cancun contra OMC, M15 na Espanha, Occupay Wall Street, Primavera Árabe, Ceriza na Grécia, as juventudes com Greta, entre tantos outros. De evidente mesmo é uma agenda emergente multifacetada, sem unidade e, sobretudo, sem poder para mudar a correlação de forças, cada vez mais mundial e fechada sobre si mesmo.

É neste quadro de demandas múltiplas por transformações ecossociais que as COPs anuais se realizam. O espaço vibrante é da sociedade civil planetária em sua diversidade de identidades e vozes, cada vez mais representativo e com propostas abrangentes, realizado apartado dos salões de representantes governamentais. Na conferência oficial, dos governos e empresas, até pontuam questões e são elaboradas propostas de enfrentamento da questão da mudança climática, potencialmente razoáveis, como na COP de Copenhague e de Paris, mas não passam de declarações multilaterais oficiais, sem compromissos efetivos, pois dependem da boa vontade de cada governo. Neste emaranhado, prevalece sempre o capitalismo destruidor, com o seu desenvolvimento acima de tudo e de todos os povos.

 A aposta dos “donos do mundo” é tecnológica, de um capitalismo verde. Bem, não só isto,  pois andam tentando inventar naves que os levem a outras planetas, em busca de sobrevivência caso este nosso maravilhoso planeta Terra se torne inviável, devido a seu afã de acumulação de riqueza sem limites. Como implodir com esta “casta” antes que o pior aconteça para o planeta e a humanidade?

De mais importante em termos oficiais e de referência no diagnóstico da questão da mudança climática são os informes produzidos regularmente pelo IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change. São diagnósticos incontestáveis pela qualidade, produzidos por reconhecido grupo de cientistas mundiais. Em termos de visão e propostas virtuosas, sem dúvida, a multiplicidade de movimentos de cidadania engajados na questão, são uma grande fontes. Mas a questão central é de  ordem política de como o mundo funciona e, sobretudo, como o poder das grandes corporações define as agendas dos governos, em cada país e nos espaços multilaterais. O absurdo completo na COP 28 é ter o presidente da empresa petrolífera dos Emirados Árabes presidindo a conferência, sendo que a energia fóssil – motora do capitalismo – é a grande vilã climática pelas suas emissões de gazes de efeito estufa. Mas não precisamos ir longe para ver como tal engrenagem funciona. Podemos olhar para nós mesmos, com Lula sendo uma voz respeitada e ouvida na COP e espaços multilaterias com suas declarações sobre mudanças ecossociais necessárias em nome da justiça social, ao mesmo tempo em que anuncia a adesão do Brasil à OPEP – Organização dos Países Exportadores de Petróleo. E o presidente da PETROBRAS afirmando que explorará até a última gota de petróleo no Brasil, esperando ser a última empresa a acabar. Bota contradição nisto!

Volto a uma questão central que tenho tratado em diferentes postagens do blog: o tal desenvolvimento – entendido como crescimento medido pelo PIB – como o nó górdio na questão  da mudança climática. O poder econômico-financeiro, com o mantra do desenvolvimento, está acima de tudo. Ou seja, a grande causa tanto da exclusão e desigualdade social como da destruição ambiental não pode ser enfrentada. Claro, alguém inventou o malabarismo  do “desenvolvimento sustentável” – um absurdo conceitual pois onde há desenvolvimento sustentável não pode haver sustentabilidade ambiental. Mas a ONU adota tal definição com se fosse virtuosa e propos aquela ilusão dos ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

Estamos numa difícil encruzilhada histórica. Não temos muito tempo para mudar. O problema é que apesar de tantos movimentos e vozes,  que expressam a diversidade do que somos como cidadanias e nossas vibrantes culturas na diversidade de modos de viver, que o planeta permite e que inventamos, não temos a hegemonia de fato, capaz de enfrentar este capitalismo destruidor. Não formamos um bloco capaz de ameaçar tal sistema e seus poderes de fato, esta é a realidade. Nossa ação é potencialmente mais eficaz ao nível local, dos territórios comuns onde levamos a nossa vida. Sinais de processos virtuosos neste nível se encontram em toda parte.  Mas como fazer o amálgama de tal diversidade capaz de se contrapor ao pequeno grupo das classes dominantes, que se locupletam com este estado do mundo? Saberemos formar coalizões planetárias? Por que as várias irrupções de cidadania, a seu modo impactantes, foram de vida curta? O que nos falta e como enfrentar nossos próprios desafios?

Termino afirmando que não podemos desanimar e nem nos iludir. Dos espaços multilaterais atuais é que não dá para esperar mais que declarações de boas intenções. Nossa força e poder brota no chão da sociedade. A nosso favor está a própria natureza, múltipla em sua diversidade. Portanto, é daí que precisamos extrair virtuosidade ecossocial transformadora e é aí, ao nível dos territórios de vida, que precisamos derrotar o capitalismo. Esperar solução milagrosa de onde não pode viver é que não dá. Ou afirmamos praticamente o princípio da territorialidade combinado com subsidiariedade em níveis políticos mais amplos – nacionais, regionais e mundiais – ou não temos saída. É difícil e longo? Sem dúvida! Mas é onde temos exemplos concretos de outro mundo sendo construído: redes agroecológicas e cultura alimentar adaptada às potencialidades dos territórios e saudável, prática de economia solidária, a centralidade de bens comuns geridos entre pares, a reciclagem e reuso de tudo o que for possível, a defesa da água e da biodiversidade, dos centros de cultura e valorização das muitas expressões e formas de viver, a internet livre, os experimentos de cidades solidárias, entre múltiplas iniciativas. Se cada grupo territorial fizer sua parte estaremos enfrentando a lógica concentradora e destruidora de gente e do planeta. Precisamos de ousadia e determinação, lutando pelo direito nosso e de gerações futuras à integridade dos sistemas naturais e de vida.