sexta-feira, 29 de setembro de 2023

A Necessária e Inadiável Transição: Como Fazer?


Os sinais da mudança climática estão deixando de ser alertas de comitês científicos especializados, nem sempre ouvidos e devidamente considerados. Eles estão se tornando fenômenos presentes no nosso cotidiano. Os eventos  climáticos  destrutivos de vidas e territórios concretos vem se multiplicando e se espalhando pelo mundo. São algo vivido como tragédia por muitos no acontecer, sem aviso prévio, provocando mortes e ameaçando as condições de vida de todos nos territórios afetados. As imagens dos desastres e perdas pelas famílias atingidas se difundem instantaneamente, via imagens televisas e redes sociais, impactando até os descrentes. Estamos convivendo com alarmantes fenômenos climáticos naturais intensos: chuvas e temporais fora do comum, monumentais inundações, furacões e ciclones mais numerosos e devastadores, em algumas regiões do planeta; ao mesmo tempo, secas, ondas de calor,  incêndios e  gigantescas nuvens de fumaça, em outras. Também, não é novidade a destruição de amplos territórios e sua biodiversidade, com montanhas de lixo e poluição, com a falta de tratamento de saneamento para grandes contingentes humanos, a contaminação de aquíferos, rios e mares,  a falta de água para beber...

Tomamos o clima como algo que é o que é: quente, frio, ensolarado, nublado, com ventos fracos ou fortes, chuvoso, feio, bonito, e por aí vai, pois é intrínseco a ele ser instável e surpreendente, mas dentro de certos limites. Ao sair dos limites, não dá para saber o que vai acontecer. Convivemos com o clima, falamos muito dele no dia-a-dia, mas não o vemos ou, melhor, não pensamos o que seria se tudo virasse uma ameaça destrutiva, fora da normalidade com que fomos acostumados, onde os dias rodam e mudam e nós seguimos com eles. O quanto  o clima é fundamental nem pensamos, pois sempre foi um elemento dado para a vida. Nossas vidas tem uma relação permanente com o ar que respiramos, do jeito que está disponível para todas e todos. Sim, notamos mudanças no dia a dia e sentimos, por exemplo, a poluição. Assim mesmo, vamos levando a vida, achando que a mudança é coisa restrita a algumas partes do mundo. Que ilusão! Pior ainda é não associar a mudança climática a todas as outras mazelas ecológicas e sociais, até políticas pois tudo é produto do mesmo processo de dominação para acumular riquezas a todo custo, aqueles 1% de super ricos capitalistas.    

O fato central é que o clima é um dos grandes sistemas ecológicos da integridade natural do Planeta Terra, nosso lugar comum, nossa base de vida. Apesar disto, tal fato determinante não nos faz automaticamente pensar nele e nos preocupar em cuidar dele, como ele cuida de nós. Poucos se dão conta que o próprio clima está sendo destruído, pois vem sendo colonizado por emissões de gases deste sistema capitalista e seu desenvolvimento em que todos estamos envolvidos, queiramos ou não. Nosso estilo de vida e de consumo tem por trás algo destrutivo dos territórios em que vivemos, tendo o descontrole do clima como uma ameaça oculta mais assustadora no imediato, mas não se restringe ao clima.

Estamos em comunhão permanente com os sistemas da natureza e a vida se reproduz em troca com o ciclo natural. Mas, como humanos, temos a capacidade de inventar modos de nos relacionar entre nós mesmos e com a natureza, algo admirável. Mas as invenções podem e são agressivas, destrutivas, tanto pelas relações sociais profundamente desiguais, como pela ameaças de descontrole total com a destruição do clima e de outros sistemas ecológicos, parte de um todo natural fundamental e único. Ou seja, vivemos dentro de “limites ecológicos” que são dados e precisam ser respeitados para garantir a continuidade da integridade natural que nos dá a vida e o direito de viver das futuras gerações.

É sobre esta questão que se faz a história humana. Vivemos hoje no mais destrutivo modo de produção das condições naturais da vida, pois já superemos vários dos “limites ecológicos” e caminhamos para uma situação que pode até inviabilizar todas as formas de vida. O fato é que o capitalismo e seu desenvolvimento movido em busca de acumulação gera uma economia e um modo de consumo que apontam o colapso, tanto em termos naturais, pelo extrativismo,  destruição – onde a mudança climática é o sinal mais evidente e perigoso, no imediato –,  como em termos de exclusão social e desigualdade social, destrutivas de gente.

Enfim, precisamos urgentemente de uma transição que seja sistêmica, transformadora em termos ecossociais, nas relações com a natureza e entre nós mesmos. Ninguém tem a solução “milagrosa” diante do capitalismo que mina as condições de vida de todo mundo e destrói a natureza. Na verdade, não se trata de uma solução, mas de uma busca coletiva de modos de nos organizar para viver a partir da diversidade de territórios e das nossas próprias diversidades como humanos, com valores e princípios éticos compartilhados, nos reconhecendo como humanos titulares de direitos iguais à vida. Estamos diante da necessidade de fazer valer com determinação o princípio da igualdade na diversidade humana e na diversidade de territórios humanos do próprio planeta, nossa comum maior.

Bem, toda esta longa consideração tem a ver com a busca de “sentidos e rumos”, para além do emergencial. Estamos entrando numa fase da história humana de emergência total, sem dúvida. Mas não dá para enfrentar a mudança climática com mais do mesmo, com capitalismo verde, com geoengenharia, continuando a explorar energia fóssil a todo vapor,  com mercado de carbono, com títulos verdes, com carros elétricos  e cidades feitas para carros, não para gente. As soluções da produção de energia hidrelétrica, solar e eólica são, sim, mais sustentáveis, mas dependem também, a seu modo, de mais extrativismo, de mais minerais, alguns raros, para produzir placas solares, “fazendas” solares e eólicas, hélices gigantescas, torres, linhas de transmissão, com ocupação de territórios imensos, provocando expulsões de moradores, no geral de povos e comunidades mais fragilizadas. Basta lembrar o desastre ecossocial da mais recente hidrelétrica gigante, a Belo Monte, na grande volta do Xingu, território milenar de vários povos indígenas. Ou,  ver o que está acontecendo no sofrido Nordeste do Brasil com aquelas fazendas solares e eólicas, mais uma vez contra as comunidades camponesas que buscam formas de conviver com o semiárido, com cisternas coletando água de chuvas.  

Precisamos mudar as bases em que produzimos o necessário para viver, os estilos de vida, os padrões de consumo,  as nossas concepções e os valores que nos guiam. No linguajar mais científico e acadêmico, precisamos mudar de paradigma civilizatório. Em linguagem política, uma transformação sistêmica – transformação ecossocial democrática, como prefiro definir.

Mas quem e como fazer a transição que aponte a uma transformação desta magnitude? A partir de minha opção política estratégica de buscar formas de democracia ecossocial transformadora, determinadas por hegemonia construída e conquistada a partir do chão da sociedade, em sua diversidade de identidades e vozes de cidadanias, gostaria de apontar certos sinais e possibilidades. Inspiro-me em produções e debates animados por algumas redes mundiais de movimentos sociais, ativistas e intelectuais que tenho acompanhado, nas últimas duas décadas. Vou destacar algumas ideias que podem ser consideradas como um saber estratégico comum em construção e experimentação.

Uma primeira ideia fundamental a descartar é que não existe um modelo e nem se trata de tentar construir um. O que existe é muita expressão de cidadanias em movimento, cidadanias ativas, em seus territórios de vida, voltando às raízes. Claro que não existe “coordenação” entre este pipocar de iniciativas, mas podemos identificar “fundamentos” comuns como constantes na maior parte das iniciativas. A questão mais intrigante é que o modo como nos organizamos no mundo com um sistema hegemônico comandado por um capitalismo hoje globalizado, neoliberal e financerizado, precisa mudar pois desconsidera a diversidade planetária – os territórios e sua biodiversidde  – e nos impõe a homogeneidade, um espécie de colonização real e de imaginários, impondo um estilo de vida e um padrão de consumo a ser almejado que ele produz. A própria história mostra que mudar com um modelo único imposto a todo mundo é como continuar fundamentalmente na mesma direção: tratar a humanidade e o planeta como se só existisse uma forma para tratar  conjuntos extremamente diversos e a seu modo diferentes, condições do próprio viver.

Diante disto, uma primeira e fundamental ideia que começa a se firmar no seio das redes mundiais a partir de grupos humanos locais/territoriais é a de valorizar e potenciar o “pluriverso” como alternativa ao homogêneo. A força da ideia tem a ver com conviver com a enorme diversidade de situações territoriais e humanas distribuídas pelo planeta, hoje submetidas a um modo único dominante e, por isto mesmo, destruidor em termos naturais e excludente socialmente.

Nesta linha, considero algo inspirador a rede Global Tapestry of Alternatives - GTA[i] (literalmente, Tapete Global de Alternativas). Trata-se de uma rede em construção, onde os integrantes se conectam e trocam experiências e saberes entre si e com muitas outras iniciativas territoriais e suas redes, tecendo e ampliando o “tapete” com sua diversidade de territórios, suas gentes com engajamentos e imaginários mobilizadores, criando sentido de fazer outro mundo acontecer. No momento, na Great Transition Initiative – GTI e na rede onde se debatem temas relacionados – Great Transition Network - GTN[ii] - está havendo uma discussão extremamente interessante, com textos de muitos participantes, a partir de um texto produzido por Ashish Kothari e Shrishtee Bajpai sobre a proposta da GTA.[iii]

A intrigante questão tem a ver com a própria ideia de tecer continuamente um tapete com diversidade de cores e formas humanas e territoriais.  A transformação sistêmica virtuosa aí contida vai na linha dos Zapatista: fazer “muitos mundos no interior de um mundo”. A diversidade é um dos elementos fundamentais do Planeta Terra e, portanto, de nosso viver como humanos. Construir a partir dos “territórios humanos” como comuns compartilhados  dá origem ao conceito de “pluriverso” de soluções e de movimentos que lutam por alternativas.

É possível e precisamos realizar uma enorme cartografia social planetária de iniciativas, muito mais diversas e complexas do que a gente imagina. Todas legítimas a seu modo e que existem porque tem gente engajada nelas, localmente. Será uma cartografia de iniciativas locais com vocação de tecer um outro global por fios que juntam e unem, sem negar ou destruir diversidades. Certamente, cada iniciativa é portadora de inovação e, por isto mesmo, prenhe de muito saber estratégico, desenvolvido para aquela realidade ecossocial local, territorial, um quilombo, uma reserva de povo indígena, uma área de extrativismo sustentável, uma cidade, uma periferia, um município, em busca do bem comum e do bem viver, uma iniciativa solidária para acesso à água, para a produção orgânica, para manter o emprego num empreendimento em vias de extinção por causa de ganância do empresário, um espaço de educação popular, uma creche comunitária, uma cozinha solidária... Bota diversidade nisto!

Isto, sem dúvida, é um aspecto fundamental. Mas o problema da mudança é de transição sistêmica, que precisa acontecer no mundo todo, no Planeta todo, mantendo a sua fantástica e poderosa diversidade ecossocial para tentarmos viver diferentemente, em relação virtuosa com o que existe no local em que vivemos. Questão que precisamos enfrentar na luta contra o capitalismo imposto e seu desenvolvimento destruidor e excludente, com todas as outras mazelas somadas (colonialismo, racismo, patriarcalismo, violência, etc). Mas o caminho não  é de cima para baixo. Trata-se de ser e agir radicalmente de baixo para cima, formando um tapete global de muita diversidade humana e territorial, dando lugar para todas e todos. É uma perspectiva estratégica de regeneração planetária baseada na diversidade ecossocial, não na tecnologia em busca de aumento da produção e lucros para os donos do capital. Aliás, continuamos precisando muito de ciência e tecnologia, mas a serviço do bem comum.

 A internet, criada num dos centros de excelência, o MIT, e registrada como creative common é uma ferramenta a serviço da conexão da diversidade quase sem limites. A sua privatização por grandes plataformas a serviço da mercantilização da informação está produzindo uma nova conquista e colonização de todos os povos a serviço da acumulação de não muito mais do que uma dezena de trilhonários. Mas há iniciativas pela “libertação” da internet para que seja um comum planetário, como a água, as línguas, o saber, o ar que respiramos, a biodiversidade e muitos mais.

Na verdade, trata-se de buscar o comum no pluriverso de iniciativas: concectar-se com respeito à diversidade, a partir do diálogo e tecendo conexões, coisa que, por exemplo, o FSM não conseguir produzir, aliás até se recusou a buscar o sentido político transformador que tal construção implicaria.

Isto é apenas um apontar de pistas. Não consigo estar acompanhando tais debates e não socializar, pois desde meu território de “adoção”, na periferia da Região Metropolitana do Rio, continuo com aquela gana de analista e ativista que quer mudar o mundo. O último debate na rede da GTI está sendo sobre a necessidade ou não de um Movimento Cidadão Global para a “grande transição”. As contribuições a partir do texto sobre GTA tem sido fantásticas, mas as divergências são sobre o movimento global em si, como se fosse possível um. Talvez o foco seja fortalecer a diversidade das conexões a partir dos territórios e situações humanas e não um “centralismo democrático” definidor da tal “linha correta”, que alguns continuam propondo.

Deixo para uma próxima postagem alguns aspectos mais inspiradores no sentido de conexões da “pluridiversidade”, algo em si mesmo nunca completo, pois viver é ir mudando sempre... exatamente para poder viver. 

 

 

 

 

 

 

 



[i] Maiores informações no site <globaltapestryofalternatives.com>.

[ii] No site (www.greattransition.org>

[iii] A.KOTHARI e S.BAJPAI. Global Tapestry of Alternatives: Weaving Transformative Connection. (Opens essay for GTI Forum). Pode ser acessado pelo site do GTI.

sábado, 16 de setembro de 2023

Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade

 Mais um movimento que ganha força e maior visibilidade na sociedade brasileira. Com voz própria afirma a sua identidade cidadã na diversidade. Com uma agenda específica e ativismo político, interpela o conjunto da sociedade civil  e os poderes democráticos. Como cidadanias ativas em busca de transformação ecossocial democrática, precisamos saudar e festejar as mulheres indígenas e sua organização, a ANMIGA – Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Trata-se de uma conquista que enriquece a democracia, que já tem voz no Congresso e ocupa espaço no Governo Federal, com Sonia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas do Brasil, e Joemia Wapichana, Presidente da Funai, no atual Governo Lula III.

Considero o Manifesto da ANMIGA como algo fundamental a destacar, pois revela uma concepção de suas causas e de sua agenda política abrangente em termos ecossociais. Ela aporta muitos elementos estratégicos para a disputa de hegemonia democrática que precisamos construir e conquistar no Brasil, tornando a nossa democracia mais potente e virtuosa em transformações necessárias, para uma sociedade que tenha como pilar o cuidado de gente e da natureza. Transcrevo  aqui algumas afirmações extraídos do Manifesto.[i]

·         “Nos, mulheres indígenas... Somos sementes plantadas através de nossos cantos por justiça social, por demarcação de território, pela floresta em pé, pela saúde, pela educação, para conter as mudanças climáticas e a ‘Cura da Terra’.”

·         “A Terra é irmã, é filha, é tia, é mãe, é avó, é útero, é alimento, é a cura do Mundo.”

·         “Mulheres terra, mulheres água, mulheres bioma, mulheres espiritualidade, mulheres árvores, mulheres raízes, mulheres semente e não somente mulheres, guerreiras da ancestralidade.”

Entre os dias 11 e 13 de setembro, neste período em que estamos vendo sinais devastadores de mudanças climáticas, no Brasil, na Região e no Mundo, as Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade realizaram a sua IIIª Marcha, em Brasília, com o lema “Mulheres Bioma em Defesa da Diversidade pelas Raízes Ancestrais”, com estimativa de 5 a 8 mil participantes. Os dois primeiros dias foram de preparação e a marcha em si foi no quarta feira, dia 13, seguindo até a Esplanada dos Ministérios. Participaram mulheres indígenas representantes dos movimentos da Malásia, África do Sul, Uganda, Estados Unidos, Peru, Quênia, Nova Zelândia, Bangladesh, Rússia, Indonésia, Guatemala e Finlândia. A Marcha culminou com um ato na Câmara ocupada pelas manifestantes e apoiadores, com presença das Ministras Sonia Guajajara e Anielle Franco (Mulheres) e da Presidente da Funai, Joemia Wapichana. O hino nacional foi cantado em língua indígena. Na Declaração Final, destaco afirmação de que a biodiversidade não se separa dos territórios e que elas, mulheres são biodiversidade, são corpos territoriais. A violência de gênero também foi focada, o que levou a Ministra Anielle a propor a criação de uma área especial em seu ministério para o combate à violência de gênero combinada com discriminação racial que sofrem as mulheres indígenas.

As outras duas Marchas das Mulheres Indígenas foram realizadas em 2019, de 10 a 14 de agosto, e em 2021, de 7 a 11 de agosto. O lema da Iª Marcha foi  “Território: nosso corpo, nosso espírito” e o da IIª foi “Reflorestando mentes para a cura da Terra”. Mas a busca de formas de organização e participação como mulheres indígenas é longa. As “marchas” respondem a uma necessidade de ter maior visibilidade e mais impacto político na esfera da sociedade civil e nos espaços de poder, em Brasília. Além disto, elas se integram e participam de outras organizações, movimentos e expressões dos Povos Indígenas e mulheres dos campos, florestas e águas, em lutas por direitos e reconhecimento.

Com a sua ancestralidade carregam a história de destruição e dominação longa de mais de cinco séculos de colonização sobre Povos Indígenas e seus território. Ainda hoje sofrem com a invasão criminosa de seus territórios, com muita violência e morte, destruição de florestas, extrativismo mineral e do agronegócio, com contaminação de seus rios e sua pesca, alimento fundamental. São remanescentes dos muitos povos que aqui viviam. Mesmo dizimados sem dó pela sina conquistadora desencadeada pela colonização, que se estende até hoje, tem demonstrado tenacidade e potência para resistir e defender seus modos de vida, sua cultura, sua língua, seus saberes, em comunhão com seus territórios, florestas e águas, bens comuns que lhes dão as garantias de viver.

Com a Constituição Democrática de 1988 foi, finalmente, estabelecida uma base legal ao reconhecer os direitos de Povos Originários e dar bases para justiça de reparação. Fundamental foi estabelecer o princípio do direito originário sobre seus territórios e sua identidade e direitos de cidadania como Povos Indígenas. Estabeleceu uma base constitucional para a reparação histórica de tudo o que vem sofrendo desde a chegada de Cabral. Temos algumas vitórias a celebrar, como as demarcações dos territórios enquanto política pública, avanços na educação e saúde nas aldeias, até acesso a universidades, a participação política e conquista de representação e poder. Também o Brasil firmou o  princípio da OIT da consulta prévia informada sobre qualquer empreendimento em territórios ocupados por  grupos indígenas e tradicionais.

Mas as ameaças não foram extirpadas e nem invertidas até agora, apesar da Constituição. Destaca-se a morosidade e o pouco esforço na demarcação de territórios por parte do governo ou até a parada total como foi no desastroso governo de direita, que “abriu a porteira e soltou a boiada”, além de pôr um oficial militar à frente da Funai. Pior, a potente bancada do agronegócio levantou a tese do “marco temporal” contra o direito originário dos territórios pelos Povos Indígenas. Terras continuam sendo invadidas e expropriadas por grileiros, desmatadores e garimpeiros, com muita violência e assassinatos. Em nome do “desenvolvimento a todo custo”, muitas grandes obras públicas expulsam Povos Indígenas ribeirinhos para construir hidrelétricas ou estradas para o transporte, especialmente de cargas do agronegócio. Até a exploração do petróleo, gás e minérios estratégicos, que os afeta de alguma maneira, parece ficar acima do direito constitucional estabelecido em 1988.

Hoje a luta principal dos Povos Indígenas é contra o “marco temporal” e a defesa  dos territórios, em sua integridade e formas de vida. Mas as mulheres indígenas mostram como esta luta comum tem muitas facetas e abriga diversidade de situações, identidades e vozes no próprio seio dos Povos Indígenas. No entanto, somos nós todas e todos - a grande e complexa sociedade brasileira, em sua diversidade de expressões de cidadanias ativas na luta por direitos iguais e  democracia ecossocial transformadora - que devemos nos sentir interpelados  no que somos e quanto temos de responsabilidade política e histórica em sermos solidários com eles e assumir juntos como central a causa dos Povos Indígenas.

Termino lembrando um ponto fundamental. Hoje sabemos que não podemos continuar agredindo a integridade dos sistemas ecológicos que são parte da natureza. Com a expansão capitalista dos últimos séculos, já ultrapassamos seis dos nove “limites planetários” e continuamos acreditando – felizmente não todos – que precisamos do desenvolvimento para enfrentar as históricas e vergonhas exclusões e desigualdades sociais. O desenvolvimento é o herdeiro da colonização que nos fez ser uma sociedade assentada no capitalismo que acumula destruição ecossocial  ao longo de séculos e que nos tornou um país capitalista emergente e importante no tabuleiro global, com os maiores índices de desigualdade social, uma casta de bilionários que se recusam a pagar até impostos, muitas periferias urbanas e rurais, racismo, patriarcalismo e violência sem limites, muito desmatamento agredindo hoje os biomas da Amazônia e do Cerrado para produção de commodities agrícolas e minerais, afetando o Planeta como um todo.

O que foi feito no passado, deve e pode ser refeito, nos dando um outro horizonte de bem viver para todas e todos. Mas exige visão e imaginário ecossocial, vontade coletiva e determinação na ação política. Precisamos dos Povos Indígenas, das suas Mulheres Guerreiras da Ancestralidade, pois daí podem vir inspirações e aprendizados fundamentais que precisamos fazer para cuidar de gente e da natureza, com democracia transformadora e includente de todas e todos.

   

 

 

 

 



[i]  Ver: “Manifesto das primeiras brasileiras. As originárias da terra: a mãe do Brasil é indígena”. Disponível  no prórpio site da ANMIGA <anmiga.org>.