sábado, 20 de julho de 2024

Contra Hegemonia em Construção – II

 


Volto ao tema da última postagem, mas agora procurando mostrar o que já está sendo criado e recriado por alguns grandes conjuntos de classes sociais exploradas, particularmente em áreas  das matas, campos e águas: Povos Indígenas e Quilombolas, ribeirinhos, camponeses baseados na agricultura familiar. São importantes pela sua identidade, potente cultura e história de resistências diante de ameaças a seu modo de vida, afirmando seus direitos de cidadania. Eles não são o passado, mas pelo contrário, são resistências que podem apontar outro futuro. Pelo impacto político de suas iniciativas, podem ser consideradas como experimentos contra hegemônicos e com capacidade de inspirar outras iniciativas, em diferentes situações territoriais de viver em nosso país. Pela sua composição e ativismo são uma potente denúncia e força social no enfrentamento do capitalismo dominante e suas mazelas.

As múltiplas alternativas territoriais existentess em áreas rurais são manchas e nódulos de vida e resistência muito diversos. São cercados e ameaçados pelo agronegócio expansionista, colonizador, usurpador de terras, com desmatamento e queimadas, sementes transgênicas, agrotóxicos, poluidor de rios e aquíferos, e muitas vezes com trabalho escravo. Mas também são comunidades inteiras ameaçadas por grandes empreendimentos extrativistas (minas, garimpo ilegal, grandes hidroelétricas, fazendas de energia solar...).

Em sua ousadia de resistir e construir, afirmando e lutando por direitos, esses núcleos alternativos enfrentam um duplo desafio.  De um lado, existe uma questão estrutural de fundo, que, com seu enorme poder econômico e político, está levando a um desastre anunciado: o paradigma de desenvolvimento capitalista globalizado e financeirizado, com a destruição da natureza e exclusão social, e novas formas de extração e acumulação de valor em nome do ‘livre mercado”, com políticas e normas que nos estão levando a depender de uma reprimarização econômica ameaçadora, com um frontal ataque destrutivo dos territórios em que levam a sua vida. A integridade do imenso território do Brasil, o bem comum da vida, já está comprometida (tendo ultrapassado vários dos limites planetários para a reprodução da sua integridade). A mudança climática já se tornou um novo normal entre nós, que se soma a uma herança maldita de colonização, escravidão e patriarcalismo.

De outro lado, temos uma questão política não menor para nos insurgirmos contra isto tudo. A democracia que vibrantemente conquistamos, contra a ditadura militar, nasceu encurralada, sem capacidade de avanços transformadores. Pior, nos últimos dez anos, como ameaça politicamente devastadora, surgiu e ganhou espaço na sociedade e no comando do Estado uma direita de perfil extremamente autoritário e excludente, para poucos, que propõe um desenvolvimento capitalista ainda mais destruidor. Já experimentamos praticamente como opera tal direita a partir do poder estatal e como ela disputa a hegemonia no chão da sociedade. Além disto, ela está se articulando com direitas autoritárias crescendo  na região à nossa volta e mundo a fora.

O contexto político é, indiscutivelmente, adverso para alternativas mais ousadas. No entanto, como esperança, sempre é bom ter presente que as lutas políticas nunca são ganhas ou perdidas antes de serem disputadas. O que precisamos, sim, é nos fortalecer para disputar hegemonia no aqui e agora, com perspectiva de longo prazo. Por isto,  a tarefa que devemos priorizar é trocar e nos inspirar uns e umas aos outros e outras, aprendendo com as “trincheiras e resistências” cidadãs já existentes e demonstrando potência.  Precisamos ter claro que tais lutas não são, necessariamente, replicáveis para outros territórios e situações, mas sim faróis a iluminar caminhos e possibilidades de ação transformadora.

Num país “baleia” como o Brasil, na construção e disputa de hegemonia é incontornável a construção de coalizões cidadãs para ganhar força e intensidade diante da direita com suas coalizões e formas de expressão política, visíveis e até invisíveis, espalhadas pelo país. O fato inegável é que a direita vem conquistando espaço nas ruas, que se soma ao que ela já controla no campo da comunicação e na própria institucionalidade estatal. E temos uma eleição estratégica ainda este ano para definir a base do poder político nos 5.570 municípios brasileiros. Isto, politicamente, não é amanhã, pois é urgência política que exige ação imediata.

Um caso exemplar e com grande de protagonismo cidadão transformador é a proposta elaborada pela ASA – Articulação do Semiárido. A ASA tem uma concepção, uma proposta prática e uma experiência acumulada sobre o que fazer. Além disto, praticou um ativismo exemplar na questão de garantir o acesso à água no sertão nordestino, algo transformador pela participação direta das famílias camponesas pobres, as mais afetadas pelas secas periódicas. Vale a pena lembrar que o bioma brasileiro do Semiárido é o maior do mundo. Nele acontecem sazonalmente secas, todo ano. Mas com uma periodicidade variável, algo como de década em década,           a seca pode se estender por um ou mais anos, de forma ininterrupta.  

Como coalizão de múltiplas expressões, a ASA é composta por mais de 3.000 organizações de cidadania ativa da região, espalhados pelos 10 Estados Nordestinos. Como prática, tem foco nas famílias camponesas nordestinas que sofrem periodicamente com a seca. Mas ASA não trata a questão da seca como fatalidade, pelo contrário, busca formas que potencializem a vida e o bem viver em tal território e seu sistema climático, fortalecendo a agricultura familiar camponesa. Já são disponíveis muitos estudos publicados e um banco de dados de grande qualidade sobre esta experiência exemplar de protagonismo cidadão no enfrentamento dos desafios que a seca representa para o contingente de famílias camponesas, em extremamente pobres, o maior contingente rural brasileiro. [1]

A questão central a destacar é a proposta ecossocial transformadora que a ASA criou,  desenvolveu praticamente, ampliou e aperfeiçoou ao longo do tempo. O que a ASA acumulou vale para o Semiárido. Mas os princípios e as concepções que a ASA formulou são de ordem de mudança de paradigma no modo de ser, produzir, se organizar e viver dentro dos limites e possibilidades ecológicas dos territórios e sua dinâmica natural. Além disto, é eficaz na luta contra a expansão do excludente e destruidor agronegócio, voltado para fora.  Considero que o processo cidadão concebido e desenvolvido pela ASA, tendo como pilar a questão central da água como um bem comum de todas e todos, é um patrimônio coletivo com potencial para inspirar e realizar transformações, para além do Nordeste rural. É emancipador e democrático, além de ecologicamente adequado, pois, ao mesmo tempo que potencializa o modo camponês de produzir e viver diante de “severas adversidades climáticas”, busca garantir direitos ecossociais iguais na diversidade de situações naturais e políticas, especialmente aos grupos populacionais condenados a viver nas periferias de nosso país.

Como concepção, a definição central da ASA é a convivência com a seca, simples assim. Mas carrega uma mensagem potente de luta e construção de alternativa transformadora do desenvolvimento capitalista dominante que, há mais de um século, combate à seca com grandes obras de engenharia. A política de promoção de uma engenharia para o enfrentamento da seca levou à criação do DNOCS, à CODEVASF e à própria SUDENE, como estratégias do Governo Federal do Brasil e apoio das classes dominantes nordestinas. Foram feitos muitos açudes, nas grandes propriedades e especialmente para elas, assim como as hidrelétricas, com perímetros irrigados no entorno, para gerar eletricidade e junto promover o agronegócio especializado, com irrigação  e todo o pacote químico na produção agrícola para o mercado, nacional e mundial. Para a maioria da população, especialmente as famílias camponesas e seus povoados, sobrou a tarefa diária – especialmente para mulheres e meninas – de buscar água nos açudes, quase sempre distantes. Nas grandes secas, estas famílias foram condenadas a esperar o incerto carro pipa da prefeitura para ter acesso à vital água. Ou, então, migrar para outras regiões, especialmente o Sudeste como polo do capitalismo brasileiro. Muitos se engajavam em trabalhos temporários sem carteira, em outras regiões, especialmente jovens e pais de famílias (os “boias-frias”).

Vale a pena lembrar aqui a gigante obra de engenharia no Nordeste da “Transposição do São Francisco”, pelo Governo Lula I, depois de uma secular discussão nos meios dominantes do capitalismo brasileiro. O fato é que a transposição é a continuidade de uma política desenvolvimentista de combate à seca e não de convivência com ela. Não vale a pena a gente discutir isto como emblema de algo que nasceu sem perspectiva transformadora, mas antes de continuidade exacerbada do mesmo.  É lamentável ter que lembrar algo assim diante dos enormes desafios democráticos transformadores que temos, criando maior resiliência, diante da mudança climática que vem se intensificando e destruindo vastos territórios e ameaçando modos de viver em diferentes biomas brasileiros, de formas também diferentes, como este ano, em particular, testemunha.

Voltando à proposta de convivência com a dinâmica ecológica territorial, central na concepção e metodologia prática da ASA para o bioma do Semiárido brasileiro, importa ressaltar o que tal proposta implica em termos práticos e de metodologia emancipadora, inspirada nas propostas de educação popular de Paulo Freire, um nordestino de expressão mundial. Limito-me a destacar alguns elementos centrais. Em termos práticos, trata-se de uma proposta que envolve a construção de cisternas que coletam água da chuva para consumo humano de cada família camponesa, moradora de determinado povoado/comunidade rural, começando por aquelas mais vulneráveis – algo decidido coletivamente – até garantir cisternas para todas as famílias. Aí se passa a outro povoado, até atingir todos os povoados típicos de um município rural nordestino. A construção da cisterna, barata e durável, é na base de mutirão da comunidade, com apoio de pedreiro que orienta praticamente. Os recursos para compra de materiais são buscados pela própria ASA, junto às fundações e às agências de cooperação internacional. Mas passou a receber apoio público em forma de parceria, desde o final do Governo FHC, que se intensificou de forma expressiva com o Governo Lula I e II. Há dois tipos de cisternas: uma primeira se destina ao consumo humano, com coleta de água dos telhados da própria casa. A outro, é para animais e produção de alimentos, geralmente cisterna em baixios do terreno em que vive a família camponesa. A produção de alimentos assenta nos princípios da agroecologia e produtos locais, com foco na comida boa, levando à criação de “bancos comunitários de sementes” de produtos alimentares do bioma, com troca de saberes do como produzir. Tudo em busca de soberania e segurança alimentar, com troca de excedentes, no interior da própria comunidade camponesa. No final, todas as famílias atendidas com cisterna, celebra-se uma verdadeira emancipação cidadã naquelas condições de domínio secular dos donos de gado e gente.

De forma sintética, defino a concepção e a metodologia assentada no princípio da convivência, como base, que leve a dois outros princípios fundamentais numa perspectiva democrática ecossocial transformadora: princípios do cuidado e do compartilhamento, com a natureza e entre todos os moradores, como é praticado pela aplicação da metodologia da ASA como condição para conviver com a seca de forma emancipadora.

Mas por que convivência com o clima e a natureza é apontada aqui como um dos pilares na  construção de contra hegemonia? Antes de tudo para como contraponto à proposta de “abrir a porteira e largar a boiada” do ministro de meio ambiente do governo autoritário de 2019-22. A extrema direita autoritária não esconde o que quer: liberar a colonização de terras protegidas em favor do desenvolvimento predador, sem reservas permanentes, sem demarcação de novos territórios Indígenas e quilombolas, sem limitação ao extrativismo de madeiro e do garimpo ou minas. O fato é que, mesmo o nosso país dispor de uma legislação de regulação ecossocial democrática, a devastação dos diferentes territórios continua. Em consequência, os eventos climáticos extremos se multiplicam e intensificam na mesma rapidez no país como um todo.

O enfrentamento da mudança climática é um desafio planetário. No Brasil, praticamente em todas as regiões temos sinais de mudanças. Limito-me a três situações de eventos climáticos atuais, extremos e emblemáticos, em diferentes biomas, no Brasil que nos desafiam coletivamente, portanto são uma tarefa coletiva para cidadanias e para os governos que elegemos.  Por exemplo, o Rio Grande do Sul foi devastado com chuvas extraordinárias, que podem se repetir mais de uma vez por ano e cada vez de forma mais intensa, pois além da mudança climática existe o território agredido e depredado, a forma de ocupação e a forma de construção de cidades sem mata protetora, nas margens de rios e lagos, com ocupação irregular, expansão do negócio imobiliário sem limites, desmatamentos em encostas e de matas ciliares nas margens dos rios, construção de barragens no leito dos rios para água de irrigação, etc.

A questão que precisamos enfrentar é: trata-se somente de restaurar o destruído (estradas, pontes, cidades, escolas, hospitais, casas de moradores...), priorizando obras de engenharia, boas para as grandes empresas empreiteiras de engenharia? Não estou afirmando que todas as obras de engenharia são ruins em si, pelo contrário. Precisamos, porém, de um diagnóstico preliminar e fundado sobre a integridade ecossocial territorial específica da cada lugar que foi comprometido em sua dinâmica, bem antes das atuais chuvas intensas. É hora de reconhecer que precisamos mudar. É o caso de pensar a partir de um paradigma de convivência, que dada a especificidade,  é de convivência com muita água, com as chuvas e os temporais intensos, com ventos fortes e o sistema natural de drenagem pelos rios existentes, suas margens e suas áreas úmidas, que canalizam as águas de grande parte do Norte e Centro do RS para o Guaíba e a Lagoa dos Patos. De todo modo, trata-se de um desafio para cidadanias ativas pautadas por agenda ecossocial democrática. Mas algo essencial é priorizar concepções, princípios e valores, com imaginários que mobilizam, para se confrontar e superar as propostas desenvolvimentistas de sempre. Não dá para esperar soluções virtuosas do Estado, sem pressão de cidadanias. O financiamento é necessário, mas não qualquer financiamento em grande escala, para as empresas loucas por recursos públicos abundantes.

Temos outro exemplo no Pantanal, que vem sofrendo incêndios destruidores da fauna e da flora, cada vez mais intensos nos últimos anos. Trata-se de um bioma muito especial e frágil, cheio de vida, água e beleza natural. Mas está sendo atingido por descontrolados incêndios. A causa maior é a expansão do agronegócio, com desmatamento das nascentes e margens de rios que formam a bacia do Rio Paraguai. Assim, falta o elemento fundamental para o funcionamento da integridade ecológica do Pantanal: a inundação periódica pelas águas do território, compartido com países vizinhos, mas que no período seco conserva naturalmente ainda muita água em pequenas lagoas e pequenos córregos. Com recuperar a convivência com tal dinâmica ecológica vital, tanto para humanos como para a maravilhosamente linda e rica biodiversidade, hoje violentamente agredida pelo fogo. Neste ano, foram queimados em torno de 700 mil hectares do Pantanal, na parte brasileira. Ações de emergência de combate ao fogo sempre serão necessárias. O curioso do caso é que na pecuária tradicional da região se praticava o fogo controlado das pastagens na estação mais seca, para regenerá-las. Mas vem ocorrendo um processo de formação de ainda maiores fazendas para a pecuária. Junto, cresceram em tamanho os incêndios, tornando-se de difícil manejo ou, até, custoso demais para quem busca lucro na criação de gato de forma extensiva.

Trago ainda um exemplo mais de agressão descontrolada or desmatamentos nas últimas décadas, que estão afetando particularmente a Amazônia das maiores florestas e rios do Brasil. São dois tipos de eventos extremos sazonais: secas mais intensas numa época e enchentes maiores na estação chuvosa. Aqui se trata de um complexo bioma que combina rios, lagos e extensas matas nativas. Os Povos Originários são seus guardiões, dada a forma de vida baseada na convivência com a fantástica biodiversidade e preservação de sua integridade, somada ao cuidado e ao compartilhamento com todas e todos da comunidade, que praticam. Além disto, eles detêm um saber único de como no lidar com os rios e lagos, reservatórios de peixes – alimento indispensável - e “estradas aquíferas” fundamentais para se deslocar e comunicar, entre outras utilidades. Um elemento fundamental da Amazônia é que ela produz os “rios voadores”, pela evaporação, especialmente das florestas (maior até do que a evasão de água do Rio Amazonas no mar, segundo cientistas), que regulam diretamente a maior parte das chuvas no Cerrado, Pantanal e Centro-Sul do Brasil, além de o regime de chuvas  em outros países, como a Bolívia, o Paraguai e o Norte da Argentina. Os desmatamentos descontrolados - garimpo ilegal destruidor, enormes obras de engenharia para construção de hidrelétricas, agronegócio em expansão, extração de minérios em grande escala, exploração petrolífera, obras de infraestrutura,  tudo junto – contribuem para desregular o modo de operar do  grande sistema ecológico fundamental para o Brasil e América do Sul. Não vê quem não quer. Volto à necessidade trazer a convivência como base, como modo de vida e prioridade estratégica. Muitos produtos podem ser gerados pela região sem agredi-la. Não ao desenvolvimento capitalista e seus projetos de costas para a Amazônia e os seus habitantes. No caso da Amazônia, os Povos Tradicionais, especialmente os Indígenas, tem muito a nos ensinar como conviver, antes que seja tarde.

Enfim, são indicações de possibilidades concretas e transformadoras para começar a implantar mudanças para os referidos territórios e populações locais. São, ao mesmo tempo, bases fundamentais na construção de contra hegemonia – uma disputa que supõe adesão majoritária na sociedade – para construir um Brasil democrático de direitos ecossociais iguais para todos. Nesta empreitada, precisamos contar com a adesão política cidadã, o coração e os imaginários coletivos na sociedade civil, urbana e rural, para aspirar a um país com base a um modo “saboroso de viver”. A disputa de hegemonia com o “mercado” e seus “donos” e a direita autoritária exige uma perspectiva democrática ecossocial poderosa e transformadora.   



[1] Ver <asabrasil.org.br>

quinta-feira, 4 de julho de 2024

 

Pistas para Avançar na Construção da Contra Hegemonia - I

 

A disputa de hegemonia, como condição de direção política e conquista de poder, é central, como, já há quase um século atrás, Antonio Gramsci demonstrou brilhantemente nos seus Cadernos do Cárcere. Trata-se de uma tarefa coletiva persistente e consistente, com olhar muito perspicaz e pesquisa sobre as interrelações entre dinâmica econômica, social e política e suas relações com a base natural do viver, assim como as conjunturas que elas criam.  Mas não só, pois hegemonia supõem difusão de princípios e valores, ideias e análises consistentes, criando uma cultura viva, de referência, que impregna imaginários e alimenta a ação política. A pesquisa e a análise são sempre necessárias, porém insuficientes, pois hegemonia é uma questão de imaginários em disputa política.

 

A perspectiva transformadora para garantir direitos iguais na diversidade, como uma filosofia ativa baseada em princípios e valores éticos de viver em coletividade, precisa definir o que e como mudar a situação presente, que caminho construir, que forças  se opõem e como enfrentá-las.  Tais tarefas exigem saber construir um discurso coerente de princípios e valores, imaginários e propostas, e ter determinação na disputa do dia a dia, como base para criar o cimento agregador do bloco de forças da mudança, com capacidade política de apontar caminhos e processos a desencadear, impactando o debate público e, ao mesmo tempo, enfrentando e desconstruindo outras versões e propostas. Disputar de hegemonia é um fazer político complexo e contínuo, onde se combinam análise de realidade vivida, educação, cultura, debate, organização e ação contínua, em confronto com outras propostas opostas ou divergentes. Devida a natureza da disputa de hegemonia, é um fazer permanente, condicionado pelas conjunturas políticas e pelo que se passa no mosaico de especificidade territoriais e condições de viver.

                             

Na atualidade brasileira, regional e mundial, um fato fundamental, que não pode ser ignorado, é o crescimento de uma renovada direita autoritária, com capacidade de disputar hegemonia com suas ideias, valores e propostas destrutivas e excludentes, em nome de “Deus, Pátria e Família”.  Esta direita vem demonstrando capacidade na difusão de notícias falsas e versões deturpadas de ideias, propostas e debates, com viés que combina individualismo extremado, com violência armada, machismo, discriminação de todo tipo, exclusões dos considerados “incompetentes” e “descartáveis”, contando com uma ampla adesão em setores das classes médias e até populares. Tem como suporte a cumplicidade de polícias militares e setores das Forças Armadas, e até difusa adesão dos grandes meios de comunicação.  Faz vista grossa ao enorme crime organizado por milicianos, traficantes, garimpeiros, grileiros e desmatadores. Segmentos importantes das classes proprietárias dominantes aderem e apoiam financeiramente a ação da direita autoritária, desde que ela defenda seus privilégios de propriedade, isenções fiscais e total “liberdade de mercado” em busca de acumulação, submetendo o Estado a seu serviço, impedindo as propostas de transformação ou imposição de limites democráticos para seus negócios e alianças globais. Esta direita autoritária quer ser vista e empoderada politicamente como a expressão mais eficaz na defesa da globalização capitalista, financeirizada, excludente e destrutiva em termos ecossocias.

 

Não cabe aqui relembrar a importância da conquista democrática em face da ditadura, nos anos 80 do século passado, consubstanciada na Constituição de 1988. Foi um rechaço claro ao regime autoritário, com um importante protagonismo de cidadanias ativas naquele então. Porém, o que parecia ser um virtuoso começo, foi o máximo possível naquela conjuntura. O câncer da conciliação para a governabilidade democrática, incluído na Constituição, minou a possibilidade de grandes avanços e transformações, apesar de termos conquistas reais a celebrar, aqui e acolá. Não conseguimos avançar na construção de uma democracia participativa forte, além das eleições periódicas e de eleger governantes e parlamentares mais democráticos. Temos uma democracia que renasceu encurralada, como defino.

 

 O processo de encurralamento democrático nos levou a uma perda de capacidade de transformar demandas de mais e mais democracia em políticas de mudança. Menos de trinta anos depois, foi arquitetado o golpe parlamentar de 2016, que propiciou as condições políticas para um retrocesso programado de mais mercado e menos democracia. No seu desdobramento surgiu o governo de vocação autoritária, destrutiva e excludente, eleito em 2018, para o período de 2019-22. Felizmente, uma ampla e heterogênea aliança elegeu mais uma vez o Lula, em 2022, para o período de 2023-26. Mas Lula III não tem maioria no Congresso e a conciliação extrapolou os limites, como o desmonte de conquistas constitucionais, canalização de recursos públicos para seus redutos eleitorais e submissão do governo ao “mercado”, além de ataque aberto à políticas ecossociais.

 

Continuamos ameaçados pela direita autoritária, com suas propostas no Congresso e, sobretudo, com a capacidade de disputar hegemonia de imaginários  e valores na sociedade civil, visando ampliar o seu poder  no controle político desde a base – eleições municipais  em outubro próximo – e consolidar o seu domínio  nos Estados e no Governo Federal na eleição de 2026.

 

Ganhar eleições é sempre importante, mas não necessariamente expressa hegemonia, situação que vivemos atualmente, com o encurralamento político da própria democracia brasileira no Governo Lula III. Temos, sim, uma crise larval implantada no Estado, entre governo e parlamento, com sobressaltos e pequenos avanços aqui e acolá. Sem solução à vista, pois de onde não pode vir algo transformador com potência, na atual situação, não virá mesmo. Diante do desafio que representa construir uma contra hegemonia democrática transformadora, pensando no amanhã, a tarefa é urgente, onde “esperar não é saber”.  A política econômica brasileira, mesmo no Governo Lula, continua priorizando uma agenda de ajuste fiscal e teto de gastos para atender ao “mercado” e o seu financismo.  Além disto, com o Congresso comandado pelo “Centrão”, fica claro que o Governo está sem capacidade de avançar nas mudanças prometidas em construir “outro Brasil”, voltado ao cuidado de gente e da natureza, refirmado por Lula em sua posse, em janeiro de 2023.

 

A comunicação ampla é uma estratégia fundamental na disputa de hegemonia. A direita mais radicalizada produz e difunde fakenews de forma sistemática pelas redes sociais. E os grandes  meios de comunicação de massa se pautam antes de tudo pelo financiamento que recebem, pois são negócios capitalistas privados, zelando por seu interesse de acumulação e não o bem público democrático. São os vozeiros das virtudes do empreendedorismo e, de modo geral, do tal sujeito político “mercado”, com seu alinhamento aos interesses das classes dominantes, defendendo especialmente o neoliberalismo globalizado e a centralidade do financismo como regra da boa política governamental.  

 

Entre as e os, que nos pautamos em princípios e valores éticos de direitos ecossocias iguais na diversidade e uma perspectiva democrática transformadora para o conjunto da sociedade brasileira, temos muitas iniciativas virtuosas de comunicação e fundamentais para participantes dos movimentos sociais mais organizados, partidos, grupos intelectuais e ativistas da esquerda. Mas, em geral, são iniciativas pequenas, mal financiadas, não chegando ao grande público.

 

A comunicação talvez seja o maior desafio democrático coletivo, na atual conjuntura brasileira para nos empoderar como cidadanias ativas, nossas organizações, redes e fóruns, para ganhar potência e impacto na disputa de hegemonia em termos de imaginários, valores e propostas no seio da sociedade, ganhando eleições e criando formas de democracia viva pela ativa participação no Estado e nas suas políticas, visando desencadear iniciativas de transformações nas estruturas, nas relações e nos processos sociais, culturais e econômicos.  A comunicação democrática ampla é uma estratégica pista para construir contra hegemonia, pois ela mesma alimenta a disputa, potencializa a difusão de análises de qualidade e propostas articuladas, reafirmando valores e alimentando imaginários virtuosos e transformadores, animando debates e gerando confiança, adesão e cumplicidade. Porém, estamos dando a devida atenção a tal questão fundamental?

 

Temos muitas dificuldades para sair da nossa bolha e de nos comunicar claramente com setores mais amplos da sociedade. A comunicação ampla como campo de disputa deve vir articulada a um processo de fazer política nas ruas e praças, com formas novas e impactantes de ações coletivas, com pautas aglutinadoras e mobilizadoras. Basta ver a o impacto da extraordinária mobilização das mulheres em curto espaço de tempo para denunciar e se opor à “lei do estupro” das bancadas autoritárias no Congresso, recentemente. Acabou pautando um debate na sociedade e como mensagem teve impacto político no Congresso e no Governo. Este tipo de ação, com muitas iniciativas e pautas, buscando ao  mesmo tempo articulações e coalizões, pode e deve nos inspirar sobre o que e como fazer disputa de hegemonia. O resultado em termos de ganhos na política no imediato pode ser pequeno, mas para as cidadanias ativas e a agenda política transformadora é o caminho virtuoso e promissor por ser capaz de desencadear um processo na sociedade e nas estruturas de poder, como já aconteceu no passado e acontece no presente, em muitos países.

 

Outra pista fecunda e de grande potencial é olhar ao que é emergente nas vivências e resistências que acontecem nos territórios de vida, avaliar os possíveis sinais e embriões do novo, construir visões, imaginários, valores e propostas que agregam de forma mais ampla, formem coalizões poderosas, criando expressões de força instituinte e constituinte das cidadanias em sua diversidade, inspirando políticas novas, apontando uma direção contra hegemônica do que temos hoje. Já temos conquistas políticas democráticas que não podemos abrir mão, como o SUS – Sistema Único de Saúde, um bem comum em escala nacional. Mas foi sufocado financeira e administrativamente pela direita no período de 2016

 

 

 

a 2022. A educação é outra área comum a todas e todos que precisa ser recuperada como uma pauta democrática fundamental, emancipadora. Não podemos aceitar a “colonização” pela direita autoritária algo tão essencial para o futuro da democracia. Tanto a educação como o SUS foram atacados e ainda o são pela agressividade da direita autoritária, além de serem alvos prioritários da política  de  ajuste fiscal nas contas públicas, retirando recursos e valorizando as iniciativas privatistas e “empresarias”. A educação também foi atacada em sua concepção e sentido democrático com uma visão de militarização das escolas. Mas temos um acumulado em práticas transformadoras e includentes, de grande impacto, que precisamos resgatar como um pensamento e patrimônio cultural e político com capacidade de promover emancipação, condição fundamental para uma democracia viva.

 

Considero esta minha reflexão e análise como um ponto de entrada numa complexa, mas fundamental questão que temos que enfrentar: a construção de uma contra hegemonia. Trata-se de uma provocação e de um chamado para que não desprezemos tarefa tão fundamental. Na verdade, não tenho respostas ao desafio. Penso, porém, que devemos encará-lo com a devida determinação e audácia. Aqui aponto apenas a sua necessidade, mas voltarei a ele ainda em novas postagens, de tempos em tempos.