quinta-feira, 28 de novembro de 2024

A Desconstrução do Sentido de Viver em Coletividade como Estratégia da Extrema Direita a Serviço de um Liberalismo Total e contra a Democracia

 Na semana passada, aqui no Brasil, vivemos duas expressões opostas  das contradições e possibilidades políticas em que estamos mergulhados. De um lado, o simbolismo, a relevância e o reconhecimento do lugar do Brasil democrático no mundo, sob liderança do Presidente Lula, na presidência do G20, num mundo em turbulência geopolítica. De outro, a investigação e o indiciamento pela Polícia Federal dos envolvidos na trama golpista contra a democracia, urdida a partir do Palácio do Planalto com o conluio decisivo de militares de alta patente, diante da perda na disputa eleitoral para a presidência, em fins de 2022 e posse do Lula no início de 2023. Não há como ignorar os intensos debates  que daí resultaram. Mas o que de mais relevantes estes fatos revelam é uma sensação de perplexidade, como cidadanias do Brasil. Há pouco saímos de um processo eleitoral municipal com resultados que refletem  a perda de rumo e intensidade da democracia  que estamos vivendo. Pois não dá para esquecer que estamos  encurralados tanto pela extrema direita, com seu discurso destrutivo, como pelo “mercado” insaciável em busca de acumulação, exigindo o tal ajuste fiscal.  Tais  processos impedem qualquer política ecossocial virtuosa em busca de direitos iguais na diversidade, que tanto precisamos.

Gostaria de aprofundar a questão democrática em si, contestada pela extrema direita, pois isto compromete profundamente as possibilidades de transformação democrática do Brasil para nos libertar do neoliberalismo capitalista extremado. Na verdade, como vemos em outros países pelo mundo de hoje, com destaque especial para o que se passa nos EUA e Europa, além de expressões aqui na AL, diante de impasses, o “mercado” não duvida em apoiar a extrema direita e seus golpes para defender os seus interesses acima de tudo.

O processo de desconstrução e encurralamento da democracia, como assistimos  no Brasil desde meados da década passada, causou um estrago profundo, sobretudo nas esperanças de um futuro melhor. Criou-se um descrédito na própria democracia. Foi uma combinação de fatores. Sem dúvida, os dois mandatos de Lula na primeira década marcaram uma redefinição de rumos, mas sem grandes transformações estruturais em termos de direitos. Basta lembrar que o programa mais exemplar e festejado - o Bolsa Família no combate à fome – foi mais uma política emergencial necessária e de sucesso, inspirada em propostas do Banco Mundial, mas longe de ser uma política de garantia direito fundamental transformador. As iniciativas de acesso às Universidades, com cotas para a população negra e pobres, foi de longe algo muito mais virtuoso, difícil de reverter num país de tanta desigualdade como o Brasil. A política desenvolvimentista, beneficiada pelo “boom das commodities”, não esteve voltada para transformar a economia, mas sim para reprimarizá-la, tornando-nos ainda mais dependentes do agronegócio e mineração em geral. Não é por aí que avançaremos em termos de democracia ecossocial.

Quando as insatisfações e demandas por mais e mais direitos começaram se manifestar a partir de 2013, já com Dilma presidente, o governo não teve sensibilidade política para entender o ambiente político novo e, num certo sentido, normal dada a combinação de muita pobreza em meio a vergonhosa riqueza de poucos, desigualdades e discriminação, violência e injustiça,com obras suntuosas para as Olimpíadas no lugar de mais hospitais e escola. Neste caldo, as forças mais retrógradas do agronegócio e empresariado nacional, as interferências estrangeiras  diante de certo ressurgimento do Brasil no plano geoeconômico e político, especialmente dos EUA, e um clima de mundial de ascendência de extremas direitas pelo mundo, desencadeou muitos processos internos anti democráticos.

Foi uma combinação, que se alimentou da criminosa “Lava Jato” e o que levou ao Impeachment da presidente Dilma, prisão ilegal de Lula e tudo o que veio junto e depois. Basta lembrar o processo criminoso e entreguista em nome do combate à corrupção, o radical ajuste fiscal, o corte nos gastos constitucionais para educação e saúde, flexibilização dos direitos de trabalho em geral, a subserviência aos Estados Unidos e a reverência às direitas em ascensão pelo mundo. Isto tudo foi o caldo em que se deu a eleição do extremista e autoritário Bolsonaro em 2018,  com  pregação de ódio contra as esquerdas, desprezo a direitos de igualdade na diversidade, ideologia do individualismo extremado, a pregação do mérito individual pelo empreendedorismo,  a negação e o descaso com a pandemia da Covid, com grande número de mortes em consequência, a agressiva política de ataque à proteção ambiental, entre tantas mazelas.

Felizmente, Lula ganhou a eleição presidencial de 2022, por estreita margem, mas enfrenta enormes desafios porque a ameaça não acabou. Basta ver o poder do “Centrão” no Congresso, com  suas bancadas corporativas e agendas privatistas, capazes de impedir tudo o que interessa para avançar minimamente com políticas democráticas .

Nunca é demais lembrar que a tarefa democrática depende essencialmente de intenso ativismo e, ao mesmo tempo, de vigorosa e virtuosa atuação do Estado democrático como provedor de políticas sociais voltadas aos direitos iguais na diversidade e regulador da economia para servir à sociedade, desde os territórios e as regiões até o nacional. As estratégias do “mercado” e da extrema direita são diferentes em forma e conteúdo, mas entrelaçadas contra o Estado que se proponha a promover políticas de cuidado com a gente e a natureza, garantindo mais e mais direitos ecossociais iguais, sem deixar ninguém para trás. Ou seja, a extrema direita não um problema para o “mercado”, mas muitas vezes tábua de salvação.

É neste quadro que precisamos dar atenção estratégica à disputa política de hegemonia, numa luta essencialmente no coração da sociedade civil. Trata-se de disputa dos imaginários, valores e princípios, que definam sentidos e rumos, levando em conta as profundas mudanças que estão ocorrendo, aqui e no mundo todo, pois vivemos em territórios concretos, num mundo profundamente diverso mas interdependente, tanto ecologicamente, como em termos socioculturais, econômicos e políticos. Trata-se de construir um mundo onde caibam muitos mundos, como afirmam enfaticamente os “zapatistas” do México. No entanto, as ameaças são essencialmente de exclusão de todas e todos que ousam não se subordinar à lógica dominante homogenizadora e destruidora de gente e da natureza.

Gostaria de chamar uma particular atenção para a enorme contaminação que a pregação individualista e excludente da extrema direita provocou na sociedade brasileira, destruição com a qual convivemos e não sabemos como enfrentar. Além de urdir um golpe contra a democracia, a pregação contaminou profundamente a sociedade enquanto tal, contra a ideia de democracia, de pertencimento e solidariedade entre todas e todos, com respeito à diversidade. Combater isto em nome de resgatar uma democracia virtuosa em transformações e promoção de direitos  vai exigir enorme esforço das cidadanias e esquerdas que se pautam por imaginários, princípios e valores fundados em direitos ecossociais iguais para todas e todos. Na crítica passagem política do ano de 2022 e início de 2023, nas eleições, vitória do Lula e posse, os adeptos da pregação da direita extrema tomaram ruas e espaços públicos (como na diplomação do Lula, os acampamentos em torno aos quartéis militares, o 08 de janeiro de 2023, naquela invasão bárbara e destruição na Praça dos Três Poderes, em Brasília, entre tantos outros).

Estamos diante de um processo de fragmentação individualista da sociedade e de perda de sentido de pertencimento às comunidades onde levamos a vida.[i]Não temos mais capacidade de promover grandes manifestações no espaço público de sociedade civil capaz de agregar. A pregação difusa e aberta dominante que existe tem por mote o mérito individual como garantia de prosperidade. Ao mesmo tempo, em nome do combate à péssima e pejorativa de definição de “identitarismo” das diversas lutas, toda afirmação sociocultural como base de diversidade e de direitos é negada para a grande população negra e quilombola, os pertencentes aos povos indígenas, as mulheres em geral que lutam pelo reconhecimento de sua igualdade e contra o machismo e violência, o movimento LGBTQ+, o total desrespeito a práticas religiosas que não o cristianismo. Sem contar a pregação contra qualquer proteção da natureza e mudança climática.  Mas não termina aí a ameaça. “Deus, Pátria e Família” como slogan da extrema direita, não passa de um discurso extremamente excludente, só para os que confessam a mesma crença e valores.

A isto tudo se agregam a perda dos espaços de comunicação, prevalecendo as novas mídias digitais e seus influenciadores, com pregação de notícias falsas e visões extremamente individualistas. Temos mais consumidores de mensagens curtas por celular nas grandes plataformas mundiais, não temos referências culturais e comunicacionais comuns e agregadoras.  As grandes plataformas são propriedades,  elas mesmas, de super ricos “donos”, que se gabam de sua riqueza e se definem como defensores da liberdade de expressão, mas na verdade interessados em sua acumulação privada acima de tudo e sem nenhum compromisso em impedir o discurso de ódio ou notícias falsas anti democráticas.[ii]

Fora alguns movimentos sociais virtuosos e muito ativos – Povos Indígenas, Quilombolas e Movimento Negro, MST, MTST, ambulantes,  como principais -  estamos sem grande   capacidade de mobilização. Talvez a luta pela mudança da prática de jornadas de trabalho 6 x 1, especialmente no comércio e serviços, seja capaz de despertar  alguma mobilização mais significativa. De toda forma, nada comparável politicamente à densidade de movimentos por democratização que tivemos no passado não tão distante. Considero este fato o mais revelador para entender a nossa aparente incapacidade de tomar as ruas...

Na verdade, não temos uma sociedade civil articulada em defesa e promoção da democracia nos dias de hoje. Ter o Supremo Tribunal Federal – um poder institucional democrático, mas não eleito ou identificado com movimentos sociais, é pouco, muito pouco, pois essencialmente passivo.   Defender uma identidade comum compartida e diversificada entre campos, matas e cidades diante de poderosas mobilizações da direita é, de meu ponto de vista, a maior e mais desafiante força a manter viva para a democracia. Nem esta pressão por ajuste fiscal a todo custo, especialmente sobre investimentos e gastos com políticas sociais na garantia de direitos iguais na diversidade, foi capaz de nos mobilizar. A esfera pública tornou-se atomizada, também, tomada de assalto por interesses corporativos como o Congresso e suas bancadas, articuladas pelo Centrão e suas emendas parlamentares privatizantes do dinheiro público.

A importância do Estado democrático como regulador foi posta em questão. Sem dúvidas, o Governo Lula tenta, mas não estamos fazendo a nossa parte, decisiva no jogo político. A individualização e a busca do próprio interesse dominam, fenômeno que assistimos onde a extrema direita se afirma e conquista poder, seja na Argentina, EUA, Itália, França, Hungria, Holanda... ou entre nós. Como nos lembra Carlo Galli, analisando o caso da Itália e governo da Meloni, “La derecha no cree en la intervenión del Estado; reponde a la crisis rompiendo el país”. [iii]  

Quem sabe, o indiciamento e julgamento democrático dos que arquitetaram o golpe de Estado contra a democracia e mais a luta contra a Anistia aos criminosos, podem n abrir-nos novos horizontes. O problema é quanto tempo nos resta, como cidadanias e esquerdas democráticas, para reverter quadro tão sombrio em nosso país.

 



[i] Lembro aqui um texto de Ana Ester Ceceña, ainda no início da década de 2000, quando o FSM parecia capaz de despertar um nova onda mobilizadora contra a globalização capitalista e por outro mundo. Ver: CECEÑA, A.E.  A Guerra como Razón Del Mundo que Queremos Transformar. In: Reforma ou Revoluão? Para além do capitalismo neoliberal: concepções, atores e estratégia. Fundação Roa Luxemburr e Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. São Paulo: Expressão Popular, 2004, p.19-38

[ii]O caso de Elon Musk é emblemático a respeito. Ver: ELORDUY,Pablo. X como Como Megáfono Reaccionario. Las guerras que Elon Musk poderia perde. Nueva Sociedad, Guerra, paz e multilateralismo. Buenos Aires, nº 313, Septiembre-Ocubre 2024.

[iii] GALLI, C. La extrema derecha prolonga, pero no resuelve la crisis del neoliberlismo italiano. (Entrevista). Bitacora. Montevideo, 18 noviembre, 2024, Año XXIII, nº 1064.

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

As Cúpulas Governamentais em meio a um Mundo Desgovernado


Nestes dias, está acontecendo a COP-29 sobre mudanças climáticas num país totalmente dependente do petróleo, o Azerbaijan, e mais uma vez sob a presidência de alguém totalmente ligado ao setor, estando claro que o grande vilã das emissões na origem do problema climático é a energia fóssil.  O que esperar? Muitos debates acalorados e um “acordo final de compromissos”..., que sabemos não será impositivo. Enquanto isto, a mudança climática se acelera a cada ano, devastando territórios e suas populações, no planeta inteiro. Com a destruição da integridade dos sistemas ecológicos estamos caminhando para um cenário ameaçador e desconhecido, tudo devido ao poder incontrolável dos “donos do mundo” em busca de acumulação capitalista e poder, sem limites.

Quase ao mesmo tempo, vai ocorrer na semana próxima, no Rio de Janeiro, a cúpula do G-20, dos líderes estatais das maiores economias do planeta. A intenção oficial é buscar acordos de cooperação mundial diante de um mundo em processo de grandes mudanças geoeconômicas e políticas. Mas, no fundo, é mais uma tentativa de  tentar mudar para fazer sobreviver este capitalismo globalizado e financeirizado, em processo de concentração de acumulação e poder nas mãos de poucos, com os seus novos “monstros”: punhado de Big-Techs e grandes Fundos de Ações, ao lado das petroleiras, com conluio de governos de extrema direita proliferando pelo mundo. Não podemos esquecer nunca que o G-20  é cria do imperialismo americano e países aliados – o G7 (criado em 1975, entre EUA, Inglaterra, Alemanha, França, Itália, Canadá e Japão) diante das recorrentes crises econômicas, ameaças  e necessidade de evitar grandes mudanças na ordem mundial.

Apesar de se realizar no Brasil – foi acordada uma rotação anual na “presidência” do grupo – com a reconhecida habilidade e legitimidade do Lula em eventos globais, além do transtorno para a população da cidade do Rio com questões de segurança para uma cúpula de Chefes de Estado e seus principais assessores, nada sairá daí, além de declaração de boas intenções. E isto diante de uma gigantesca aceleração de tudo: 1)  governos de extrema direita ameaçando as democracias liberais encurraladas, nos países centrais e no Sul Global; 2) poucos dias após a vitória do extremista Trump nos EUA, com seu projeto MAGA (Make America Great Again), contando com o poder das Big-Techs e de livres emissões de dólar, sem limite - moeda ainda dominante nas transações globais - além do poderoso arsenal militar e indústria de armas, mais de 800 bases militares espalhadas pelo mundo, como pilar da economia capitlista; 3) num contexto de guerras entre Rússia x Ucrânia/OTAN,  Israel x Hamas e o genocídio de Povo Palestino por Netaniahu, financiado pelos países do G-7; 4) logo após  a recente reunião dos países do BRICS ampliado, que se apresenta como alternativa ao imperialismo americano e seus aliados, especialmente com transações comerciais sem dependência do dólar; 5) a questão da mudança climática como ameaça ao planeta inteiro; e 6) para não estender muito o balaio de ameaças de toda ordem, lembro aqui as questões humanitárias mais grave: a fome, a pobreza e a desigualdade social que persistem e a questão migratória, denunciando a natureza intrínseca e excludente da ordem capitalista mundial. Sem dúvidas, o Brasil, sob liderança do Lula, vai propor uma prioridade de enfrentamento global à fome, pobreza e desigualdade social. Terá algum resultado? Declarações pomposas virão, compromissos efetivos, não!

Volto a reafirmar que precisamos nos engajar em processos mais consistentes a partir do que já acontece nos territórios de vida e produção. O desafio é nos conectar e entrelaçar a partir do chão da sociedade e criar um poder mobilizador planetário, uma onda irresistível de transformação democrática radical em busca de direitos ecossociais iguais, com respeito à diversidade, com cuidado, convivência e compartilhamento entre humanos e a natureza que nos dá a vida. Mero ideal ou sonho?  Sem dúvida um sonho que não sabemos  quanto é compartilhado neste mundão, tornando-se um ideal que precisamos ainda disputar muito para tonar-se  hegemônico. O fato é que são ideais e sonhos que movem a humanidade. Disputemos isto sem medo, com determinação e esperança diante dos que se consideram “donos” – de gente e da natureza –, aqui e no mundo todo. O que precisamos é chegar a corações e mentes, com propostas de solidariedade entre todas e todos, e assim  engaiolar a fera do “mercado” excludente e destruidor!

Precisamos olhar mais para o chão da sociedade, para os territórios em que levamos a vida. Aí está a potência transformadora. Apesar do avanço dos anos, ainda guardo a gana de ativista cidadão nas ruas contra as potências estatais subservientes ao mercado e ao sistema capitalista dominante.

Termino dizendo que “sim”, devemos olhar, tentar participar e pressionar as periódicas cúpulas oficias e, sobretudo, já que nem todo mundo tem condições de acompanhar tais eventos, divulgar massivamente o que aí ocorre, para deslegitimar os discursos eloquentes, mas nada consequentes, e reafirmar que o que importa é o cuidado de gente e da integridade do planeta, da vida enfim.