domingo, 22 de dezembro de 2024

As Omissões em Nossas Análises de Conjuntura em 2024


Fazem parte do ofício de analistas de conjuntura tentar olhar o ano calendário que está acabando com uma espécie de avaliação do que de mais importante aconteceu, apontando possíveis feitos, com seus avanços e recuos. Nunca é demais lembrar que as análises dos processos políticos em curso são indispensáveis para ativistas para potencializar a sua ação, não só para saber quando e como agir mas sobretudo o que priorizar. Diante de um desafio assim, me dei conta de omissões ou questões invisíveis a seu modo estratégicas na perspectiva em que me engajo, de contribuir para uma democracia transformadora em busca de direitos ecossociais iguais na diversidade.

Faço parte de um pequeno grupo que nos damos uma tarefa regular de reuniões quinzenais de duas horas, online, para compartir percepções e visões da conjuntura. Já são mais de dois anos que nos reunimos, o que em si mesmo é um feito. Organizamos o grupo no período do isolamento compulsório. Nesta semana, fizemos a nossa última conversa do ano. Levantei para o grupo a questão das omissões em nossa abordagem como algo que está me intrigando. Na verdade, a própria questão como tal ainda está mal formulada para mim mesmo, mas me intriga. Nada como enfrentar minimamente o desafio nesta minha última postagem do ano no blog “sentidos e rumos”.

Isolado num sítio, minhas fontes de informação, além do grupo de conjuntura, são os noticiários que acompanho, mensagens e artigos acessados por whatsapp e email, algumas redes nacionais e internacionais que acompanho – especialmente debates sobre novos paradigmas civilizatórios – em alguns sites que consulto regularmente. Tenho feito leituras seletivas de livros e artigos que vem se acumulando, sempre em busca de aperfeiçoar o enfoque e as questões a abordar.

Como um balanço preliminar, reconheço que temos muito boas análises críticas do que está acontecendo na esfera da grande política e da econômica dominantes,  que circulam entre nós. Aqui cabe destacar o que chamo de encurralamento da nossa democracia, mesmo neste Lula III. Fundamental tal diagnóstico, mas insuficiente. São poucas ou quase inexistentes as análises do que está acontecendo no chão da sociedade, nos territórios, especialmente alguns sinais de iniciativas cidadãs virtuosas, criando raízes. Fazer análise de conjuntura não é só avaliar as relações de forças dominantes, onde se move o governo eleito e o que consegue ver. É também olhar para as muitas identidades e vozes de cidadanias ativas, as tradicionais e as novas. Caso contrário, ficamos fazendo análises passivas de processos dominantes, nunca de algo alternativo a apostar e fortalecer. Simplificando, faz falta um ativismo de cidadanias para vislumbrar algum caminho. De onde não podem vir políticas e transformações virtuosas – das estruturas e processos políticos e econômicos dominantes como os que temos – nada virá. Não adiante esperar. As eleições municipais deste ano mostraram o resultado possível e impacto que isto pode ter adiante diante da destruição de sentido de comunidade e convivência por parte da extrema direita e dos interesses corporativos hoje dominantes na política, com um difuso mas poderoso sujeito “mercado” a impor suas condições.

É urgente que nós mesmos, com uma perspectiva e preocupações de democracia ativa, mudemos ou ampliemos nossos olhares como analistas do Brasil e de suas conjunturas. Precisamos disto para contribuir a um ativismo coletivo capaz de plantar processos democráticos virtuosos.

O fato é que temos alguns sinais de ativismo e pistas importantes. Por exemplo, merece um destaque especial a resistência ativa de povos indígenas e quilombolas. Mas eles não só interpelam as estruturas de poder político estatal e o agressivo agronegócio e mineradoras. São ações territoriais que apontam o caminho necessário para cuidar de gente e da natureza. O mesmo se pode dizer da multiplicação de iniciativas territoriais de produção agroecológica, especialmente nas periferias rurais, mas não só pois começam a se multiplicar iniciativas deste tipo nas cidades. Temos o exemplo mais consolidado nos assentamentos do MST, mas fora as suas própias análises como movimento pela reforma agrária, parece que existem tabus entre outros analistas ativistas em abordar a questão. O certo é que entre as coalizões de cidadania mais ativa destacam-se as de agroecologia a nível nacional.

Aqui destaco a virtude existente nas redes urbanas de catadores de lixo. Estão no dia-a-dia das cidades, mas... pouco visíveis e valorizados, não passando de pessoas em luta por sobrevivência. Se formos mapear com mais rigor, veremos que muita coisa vem acontecendo sem ser valorizada como sinal virtuoso para um outro modo de nos organizar e viver.

Destaco ainda a vigorosa reação dos movimentos feministas à proposta de lei no Congresso em defesa dos estrupadores. A coisa está latente, mas não extinta. Mas não tivemos reação rápida e vigorosa de outros setores, especialmente diante da desconstrução de políticas sociais em nome do ajuste fiscal. Aliás, o tal arabouço fiscal é uma concessão inaceitável para o tal “mercado”, sugador de recursos públicos através de juros, benefícios e isenções, com fortunas acumuladas em poucas mãos, sem o justo imposto em nome do bem público.

Termino lembrando a surpreendente proposição do movimento VAT – Vida Além do Trabalho – com a ideia de redução da jornada de trabalho assalariado de 6x1 para 5x2. O novo é que se trata de uma iniciativa do enorme contingente de trabalho precário, até sem carteira assinada. Chama atenção o protagonismo de tal grupo visto como desorganizado, sem sindicato ou outra fora, mas demonstrando ativismo.

Tenho chamada a atenção em minhas postagens para o mal que a extrema direita plantou no sentido de combate ao sentido do viver em comunidade, com cuidado, convivência e compartilhamento. O tecido social mais básico foi esgarçado. Claro, solidariedade ainda existe, como a ocorrido na grande destruição das enchentes no RS, uma emergência que não pode esperar. Mas não podemos nos limitar a valorizar a solidariedade em emergências. Solidariedade coletiva deve estar no centro de qualquer democracia que importa.

Enfim, concluo dizendo que precisamos afinar nosso olhar de analistas e ativistas de cidadania  por processos democráticos transformadores, valorizando mais o que brota no chão da sociedade.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Não é Possível Enfrentar a Crise Climática Sem Mudança de Paradigma Civilizatório


Apesar da multiplicação de eventos climáticos extremos e devastadores pelo mundo, além do acumulado em termos de conhecimento científico de suas causas, não estamos conseguindo, como humanidade, enfrentar a mudança climática. Estamos caminhando para um beco sem saída, pois ainda não criamos as condições políticas para mudar profundamente a economia e o modo de vivermos. O problema é de ordem planetária, devido à interdependência como condição da integridade natural do funcionamento dos sistemas climáticos que regulam as condições de toda a vida na Terra. As responsabilidades dos povos, porém, são diferenciadas pelo acumulado ao longo da história. Mas os próprios territórios em que vivemos são diversos e exigem soluções também diversas, apesar de todos eles serem afetadas e nós juntos, de algum modo, pela mudança climática.

Desde a Conferência da ONU sobre o Desenvolvimento Sustentável, no Rio, em 1992, quando foi acordada a Convenção Sobre o Clima, já foram realizadas 29 COPs – Conferências das Partes. A próxima, em 2025, será realizada no Brasil, em Belém. Em todas, com dificuldades, se chega a algum acordo mas... são apenas uma espécie de compromisso de boa vontade dos países, não obrigações para mudar efetivamente. E as divergências maiores no interior das COPs são sobre o tamanho do financiamento  para mitigação e adaptação nos países mais pobres por parte dos países desenvolvidos, que acumulam as maiores responsabilidades históricas pelas emissões de efeito climático. É uma agressão o fato que as últimas tenham sido realzadas em países produtores de petróleo, cujo consumo e emissão de co² na atmosfera é um dos maiores vilões da mudança climática. E quem tem petróleo quer extrair até a última gota em nome de seu direito. Mesmo o nosso Brasil, que quer se apresentar como líder no enfrentamento da mudança climática, não abre mão da exploração de petróleo para financiar o seu desenvolvimento.

Aqui chegamos ao ponto. O beco sem saída das negociações sobre mudança climática é o “mantra do desenvolvimento”[i], entendido como crescimento econômico e fundamental até para cuidar de gente e da natureza. Se voltarmos à ONU e as Conferências sobre Desenvolvimento Sustentável dá para entender o tamanho da confusão. Ainda mais que, em 2015, foram estabelecidos os 17 ODS – Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – como Agenda até 2030 para os países membros. O engodo do desenvolvimento sustentável é um mantra de caráter mundial e oficial. Sem dúvida os ODS expressam uma boa intenção política, mas não mudam a essência do desenvolvimento, que é a base de uma economia que funciona se atende aos interesses privados de acumulação capitalista a qualquer custo. Além de busca de acumulação privada, o desenvolvimento depende de exploração de trabalho, extrativismo sem limites, tecnologias predatórias e consumismo. Produz riqueza e, ao mesmo tempo, desigualdades, pobreza, fome e exclusões, além da mudança climática. Na sua origem, o desenvolvimento capitalista submeteu povos inteiros à exploração colonial, escravidão e destruição dos seus territórios. Foi e continua sendo patriarcal. O desenvolvimento não respeita os limites da vida  e da natureza. É antropocêntrico, excludente e destruidor, ao mesmo tempo. A mudança climática é causada pelo desenvolvimento como paradigma dominante.

Desde as últimas décadas do século passado, quando a expansão da globalização capitalista tomou conta do mundo inteiro e se declarava sem alternativas, mas condição indispensável para a humanidade e seus problemas, comecei a me engajar em iniciativas brasileiras e mundiais em busca de alternativas.  Comecei militando contra a criação da OMC a partir do antigo GATT e contra o BM e FMI e suas políticas impositivas a todos os países, como condição de desenvolvimento. Participei de muitos eventos de organizações sindicais, movimentos sociais e ONGs desde que abandonei a vida acadêmica e me tornei diretor do IBASE, a convite do Betinho, em 1990. Fui totalmente engajado no Comitê Organizador que deu origem, em 2001, ao FSM com a ideia de que “outro mundo é possível”. Mas é partir dos impasses no FSM, sobretudo depois de 2009, que passei a me engajar mais em  redes e fóruns, especialmente mundiais, que discutem Novos Paradigmas Civilizatórios, já não mais o “desenvolvimento” e sim de crítica e superação dele enquanto tal. É esta busca em que continuo engajado até hoje. E é como parte dela que vejo a questão da mudança climática.

Foi em 2011, num processo de debate em rede mundial para intervir politicamente na Rio+20 sobre o Desenvolvimento Sustentável, que sintetizei num texto o acumulado de críticas e de buscas até então. O texto incorpora como central a ideia de “biocivilização” para outro mundo possível.[ii] O impacto das análises, reflexões e propostas contidas no texto foi quase nulo,  tanto na Conferência Oficial da Rio+20, no Rio Centro, como no evento da sociedade civil no Aterro do Flamengo. Mas animou uma rede latinoamericana sobre a busca de transição de paradigma civilizatório.

Volto a este tema depois de ler um texto nesta semana sobre  a conferência do ativista e escritor indígena Ailton Krenak na abertura de evento recente na ENSP, no Rio, sobre Mudança Climática e Saúde. Concordo inteiramente com a sua análise sobre a mudança climática e a transformação profunda de perspectiva que precisamos fazer. Segundo Krenak “As mudanças climáticas precisam ser observadas da relação de nosso corpo humano com o corpo da Terra, que é nossa mãe. Se olharmos as mudanças nessa perspectiva biocêntrica, não antropocêntrica, vamos aprender mais e vamos nos tornar mais resilientes a elas. As mudanças climáticas virão, não adianta esperar, e quem tem que mudar somos nós”. Questiona os “direitos humanos” como posição de superioridade, que chama como especismo  humano. O sujeito Terra, como organismo vivo, hoje revindica seu próprio direito. Enfim, olha para as mudanças climática com um olhar de centralidade da vida, de toda vida. Não poderia ser mais claro.[iii]

Enfim, volto à questão dos impasses, limitações e beco sem saída das negociações sobre enfrentamento das mudanças climáticas nas COPs. Sou taxativo em afirmar que onde as negociações acabam enquadradas pela busca de desenvolvimento sustentável nada de virtuoso virá e nem poderá vir. Mas existem propostas virtuosas em que muita gente está engajada e numa busca coletiva continua, inspirados em lutas e propostas territoriais muito potentes e transformadoras, com respeito à integridade e possibilidades dos próprios territórios e da vida da gente que os compartem. Buscar o desenvolvimento como solução é aprofundar as próprias mudanças climáticas, que podem ser devastadoras de toda vida e do planeta Terra, nosso comum maior.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[i] Sob o título de Mantra do Desenvolvimento, fiz uma série de postagens no meu blog “Sentidos e Rumos”.

[ii] O meu texto original recebeu o título de “Caminhos e Descaminhos para a Biocivilização: que fundamentos  filosóficos, éticos e políticos”. Rio de Janeiro, Ibase, 2011. Foi escrito como subsídio para o Ateliê Internacional Biocivilização para a Sustentabilidade da Vida e do Planeta, realizado no Rio de Janeiro , de 9 a 12 agosto de 2011. Depois,  produzi diferentes versões dele, atendendo  demandas de eventos mundiais sobre o tema.

[iii] A fala está destacada no texto de Barbara Souza. “A saúde acontece na  fricção entre nosso corpo e a Terra; Ailton Krenak plesta sobre mudanças climática na ENST. Informe Ensp. Acesso obtido pela postagem no Combate Racismo Ambiental, de 28 de novembro de 2024.