Estamos sendo invadidos por notícias do início da deportação de migrantes, dos EUA, pelo novo presidente Trump. Ele havia prometido isto, acusando os migrantes como invasores e criminosos, além de uma ameaça aos empregos de cidadãos norte americanos. Como parte do seu projeto radical do MAGA (Make America Great Again), a entrada de migrantes é vista como um dos grandes empecilhos. Na verdade, a crueldade e desrespeito de direitos humanos fundamentais, com o início de prisões e deportações em massa, de pessoas algemadas e maltratadas, sem comida, em aviões militares, tem características de verdadeira limpeza étnica. Até foi anunciada a deportação para a prisão de Guantâmano, em área ocupada pelos EUA, considerando tais pessoas como lixo humano. Até mesmo o direito de cidadania para filhos nascidos nos EUA, inscrito na Constituição do país, foi anulado pelo Trump, mas com reações internas contrárias vinda do sistema judicial. A atribuição de mudar a Constituição é do Congresso e não do presidente. Vale a pena lembrar que a Suprema Corte do país esta inteiramente tomada por juízes alinhados com a agenda da extrema direita reacionária. Trump nunca escondeu sua intenção de enfrentar radicalmente a questão das migrações. Mas existem amplos setores internos contrários, mesmo no seu partido Republicano.
Vale a pena avaliar melhor a questão das migrações como se apresenta hoje pois não se limita ao caso dos EUA. Nos países da União Européia e na Inglaterra, também é uma questão complicada e se arrasta já há muitos tempo. A justificativa dominante é de ordem étnica e religiosa, pois é vista como ameaça civilizatória a uma Europa forjada dominantemente pelo cristianismo católico e protestante. Mas não dá para avaliar a questão sem lembrar do eurocentrismo colonizador de povos e territórios, usando a justificativa da fé, mas estreitamente vinculada à formação do próprio capitalismo. E nunca dá para esquecer o extermínio sistemático de indígenas e roubo de suas terras, no que são hoje as Américas. Assim como não dá para ignorar a invenção do lucrativo negócio do tráfico negreiro e do trabalho escravo na base da economia colonial com estruturais impactos até hoje. Enfim, um eurocentrismo nascido e praticado como excludente e destruidor. A gente deve situar esta questão para entender porque as barreiras e confinamentos para conter migrações. O caso europeu, com sua sangrenta história até hoje, – afinal, as duas guerras mundiais do século passado foram gestadas aí, com todos aqueles milhões de mortos, envolvendo a maioria dos povos do mundo – nunca foi amigável a migrações para seus territórios. E seu espírito conquistador e dominador tem muito a ver com a expansão do Império Romano a partir de Roma.
As migrações não são uma invenção dos últimos tempos. A humanidade se forjou em base a migrações desde muito tempo. Aliás, toda a humanidade, de algum modo, se deve às migrações das primeiras gerações, nascidas na África, segundo pesquisas científicas bem fundamentadas. Na verdade, as migrações forjaram a humanidade e enriqueceram as culturas que temos hoje no mundo. Mas, sem dúvida, as migrações se devem em grande parte à busca de melhores condições de vida, sair da fome e da pobreza, ou de fuga de guerras e conflitos nos lugares de origem, ou, ainda, pela combinação das duas questões. Nos países de acolhida, também se apresentam desafios fundamentais, em termos demográficos e de trabalho, pois os países mais desenvolvidos a expectativa de vida é maior, mas também as populações envelhecem e diminuem, com gerações novas decrescendo e causando enorme desequilíbrio. Assim, as migrações podem ser vitais e, sem dúvida o são, pois acabam enriquecendo os territórios e povos de acolhida, com trabalho e miscigenação. Mas nem sempre amigável. Talvez, criar condições de acolhida ao invés de barreiras fosse melhor política, especialmente na Europa Ocidental, com crescimento demográfico decrescente e com gerações mais velhas e aposentadas em número crescente, sem renovação.[i]
O fato é que o Planeta é um só e bem comum de todas e todos. Por isto, é difícil negar que migrar é um direito humano fundamental. Não pode ser tratado de forma seletiva, entre bons e ruins migrantes. Claro que existem um mundo partilhado em nacionalidades e seus Estados, com legislações regulatórias. Mas as políticas e práticas de “muros de contenção” não podem se sobrepor ao direito humano de migrar. O racismo é a discriminação são profundamente ligados e causadores de muita violência e morte. A travessia do Mediterrâneo em direção da Europa, em barcos precários, virou um grande cemitério da migrações nos dias de hoje. Mas os “campos de concentração para migrantes” são uma atrocidade.
Bom, o sistema mundo que temos, com um capitalismo globalizado e concentrador, é um grande fator a considerar nas migrações, pois existem disputas geopolíticas entre potências e, também, a busca de acesso a recursos naturais, fundamentais para um desenvolvimento econômico baseado no livre mercado e acumulação sem limites. Essa “corrida” é uma grande geradora do problema, pois as guerras que provoca dão maior intensidade a migrações. Muitos migrantes fogem em busca de asilo, podendo voltar à origem assim que as guerras e perseguições acabem. O direito ao asilo é intrínseco ao direito de migrar e ser acolhida.
Vale a pena lembrar que temos situações nacionais e regionais diferenciadas, o que explicam os maiores fluxos migratórios. Neste sentido, o modo de operar deste capitalismo predador e concentrador de riqueza nos % da humanidade, está no centro. Enfrentar e superar o capitalismo é condição para acabar com os sofrimentos e mortes ligadas à migração. Nunca podemos deixar de lembrar que a limpeza étnica, com genocídios, ainda existe. Basta olhar para o que vem praticando e propondo neste momento o governo de Israel sobre o Povo Palestino e seu território invadido e bombardeado de forma sistemática, com cumplicidade total dos países da União Européia, ingleses e norteamericanos.
O caso da Guerra na Ucrânia revela um caso emblemático no quesito migração. Não existe restrição na Europa para a acolhida do grande fluxo migratório de ucranianos que a guerra vem provocando. A contenção é para migrantes dos países do Sul Global, especialmente países árabes e africanos, mas vem se ampliando também para países latinoamericanos. Outro caso emblemático é a migração de bolivianos, particularmente para Argentina e Brasil, mas tratados sem os direitos fundamentais, trabalhando muitas vezes em condições precárias semelhantes à escravidão. Já no caso dos venezuelanos em Rondônia existe certa acolhida pelo governo do Brasil. Os afegãos, dadas as condições no país de origem, facilmente conseguem asilo no Brasil e tendem a se integrar. O mesmo aconteceu com haitianos. Mas muita gente que faz uma rota aos EUA passando pelo Brasil é tratada como problema e até são deportados para os países de origem. Somos um país multiétnico e multireligioso, mas racismo, discriminações, com muita violência contra povos originários, quilombolas e os milhões em condições precárias e submetidas a milícias e traficantes nas favelas das grandes cidades testemunham dia-a-dia. O fato é que migrações, internas e externas, foram e são um elemento fundamental na nossa formação como povo. E nesta base que temos que construir a democracia ecossocial de direitos na diversidade. Diversidade é força da vida, de todas as formas de vida.
Enfim, as migrações são uma questão para o mundo todo. Precisamos incorporar tal questão com uma perspectiva de esquerda e acolhedora, como uma democracia que busca formas de cuidar de gente e da natureza, como nosso atual Governo Lula III, no Brasil. Mas neste momento ameaçador, com as extremas direitas que estão entre nós já enraizadas, precisamos avançar firmes na questão. Já há mais tempo são berço de origem de migrantes para o exterior e já estamos recebemos brasileiros deportados dos Estados Unidos, acorrentados e sem comida, em voos militares, como se fossem criminosos. O fato é que pouco avançamos na desafiante questão das migrações.
[i] Não sou um grande conhecedor do problema, apesar de algumas evidências claras. Isto supõe conhecimentos demográficos com série de dados de períodos mais longos. Recentemente, tive acesso a um artigo muito interessante a respeito. Ver: MURO BENAYAS, Ignacio. “la gran hibridación: abriendo el foco desde la izquierda sobremigraciones”. Bitacora: Montevideo/Uruguay, 03/02/2025. Tata da questão na Europa, especialmente na Espanha.