Como analistas e ativistas políticos, de diversas áreas, priorizamos
análises de situações e relações de forças mais visíveis, em situações
históricas dadas, necessárias, sem dúvidas, mas insuficiente para a disputa de
hegemonia. Às vezes, nosso critério se centra basicamente na economia e no
Estado, onde as relações de forças de poder são mais evidentes, pois se expõem
na defesa de interesses concretos[1].
Claro que temos tudo o que acontece na comunicação e que sabemos ser um campo
estratégico na disputa política, porque muito determinada pelas relações
econômicas e políticas, ou seja Estado e economia, mas ela tenta não se assumir
como tal, sempre afirmando seu compromisso com a “verdade” e nunca como visão e
versão dos fatos, eles próprios escolhidos criteriosamente sobre o que se
passa, segundo interesses políticos.
O que pretendo
destacar aqui é que temos pouca capacidade de ver e prever o que se passa no
chão da sociedade civil como um todo, nos
territórios em que vivemos como podemos, uns em melhores condições de vida que
outros, organizados em grupos e movimentos sociais ou não. Mas um dia tais
situações de vida podem emergir e se insurgir como novas forças, se exprimindo
e impactando de formas variadas e reconfigurando as relações políticas do momento histórico, de
algum modo. O fato é que existem processos históricos longos, que fermentam e
emergem de forma imprevista, pois acontecem
quando a gente não espera. O máximo que conseguimos é admitir que, apesar de
tudo, um dia algo explode, por assim dizer. Aí, sim, entram no foco das nossas
análises de ativistas.
Este é o caso da cultura e seu papel na sociedade. São
expressões culturais muito diversas e complexas, movimentos de longo impacto,
mas datados e situados.[2]
E, a seu modo, jogam um papel fundamental nas situações e relações de forças,
mas para além das expressões políticas deste ou daquele momento da sociedade.
São processos mais duradouros, mas fundamentais, pois por definição tratam de
sentidos de viver em coletividade: como vivemos, como nos vemos, como nos
sentimos, como nos expressamos, como somos percebidos, o que carregamos de
herança cultural, por que dramas históricos passamos, como nossas identidades
coletivas se forjaram, por que das exclusões, discriminações e violências no
seio da sociedade, qual o lugar das religiosidades, qual o cimento do comum
vivido, como tudo isto se expressa ou faz parte de movimentos de longo alcance
como a construção de uma identidade nacional, por exemplo? Enfim, são muitas
perguntas que inspiram as expressões culturais de todos os tipos. Isto não quer dizer que sejam sempre
virtuosas. O ódio de uns sobre outros, a não aceitação da diversidade, o
desprezo por quem não comunga do mesmo que defendemos, o extermínio, a busca do
próprio interesse individual acima de tudo, a ideia de nação e projeto, enfim,
uma complexidade enorme de questões estão constantemente sendo elaboradas e
expressas nos diversos campos da cultura. Em si mesmo a cultura é um enorme
desafio para a análise histórica e política consequente, influindo mais do que
aceitamos, nas disputas políticas de hegemonia. Mas o fato é que os processos
culturais existem e se expressam de muitos modos.
Volta ao ponto de partida desta minha análise: a cultura na
disputa de hegemonia política. Não se trata das formas em termos estritos, apesar de ser importante como as diversas formas constroem e expressam uma Ideia de projeto de sociedade e, ao seu
modo, dialogo e disputa impactando o conjunto, onde pode ser entendida ou
rejeitada. Isto é disputa de sentido e rumo. Ela não é conjuntural, mesmo se
expressando e influindo nas conjunturas e sendo por elas, de algum modo,
determinadas. Como processo, a cultura se expressa em momentos históricos
longos que é necessário sempre ter presente. Por mais difícil e complexo que
seja, precisamos ver até como as expressões culturais, nas diversas formas, carregam
focos, que a seu modo interpretam e instigam os processos sociais e históricos.
Assim elas se tornam movimentos culturais datados e situados. Mas, sobretudo, o
que imprta politicamente dizem da sociedade em questão. O que não é possível
negar é seu impacto no modo de pensar a vida e o mundo. Portanto, como um
substrato de referência do modo como somos vistos e nos vemos ao longo do nosso
tempo de vida humana muito específico e curto.
Estamos em um momento de Carnaval, algo de origem religiosa,
especialmente as escolas de samba, mas que se transformou numa potente expressão
cultural a partir das periferias das nossas grandes cidade. Ele se renova, ano
a ano, nas questões abordadas (enredo) e nos modos de expressar como canto,
samba, fantasias e carros alegóricos.
Entre nós, no Brasil, quase tudo para, dado o tamanho da celebração
do Carnaval. São milhões de pessoas alegremente pulando nas ruas e outras
tantas olhando e se contagiando pelo clima de festa. Sempre há as e os muitos
que ficam distantes, não gostam, sentem seu cotidiano alterado e preferem se
refugiar. Mas o Carnaval como cultura carregada de visões, leituras da
realidade e mensagens, umas formas de pular e dançar mais que outras, impactam
nos contraditórios processos que nos constituem como sociedade viva. Como isto
se dá não é no ato ou no momento em que nossas vidas se moldam? Que agendas
estão em disputa sobre a herança que carregamos, o que está sendo disputado
hoje e que sinais apontam para o amanhã?
Bem, precisa ficar bem claro que não sou nenhum crítico
cultural. O meu foco assumido é de um analista e ativista de conjunturas
políticas. Eu me pauto, como muitas e muitos, mas longe de ser uma maioria,
pela construção de democracia ecossocial transformadora para a conquista de
direitos iguais na diversidade do que somos, aqui e para os diferentes
territórios em que vivemos no Planeta Terra, bem comum a todas e todos.
Mantenho um blog para contribuir na disputa por tal direção, mas sei que
estamos longe, muito longe, de ter hegemonia política e nem dá para garantir
quando isto pode ser conquistado , dada a
correlação de forças num mundão dominado por um capitalismo globalizado, de
exclusões e guerras e genocídios, lutas geopolíticas e ameaças de mudança climática
devastadora de todas as formas de vida e da integridade dos ecológicos do
Planeta Terra. Mas, também, preciso registrar poderosas resistências a isto
tudo, tendo vibrantes culturas como forças construtivas.
Agora voltando para o nosso Brasilzão – ou Pindorama, como os
Povos Originários nos lembram por que esquecemos ou não queremos pensar –,
estamos vivendo aquele momento em que o
Carnaval prepondera, como poderosa festa popular. Ao mesmo tempo, neste ano particular,
aconteceu o reconhecimento mundial da potência da nossa produção cultural
através do cinema. Não vou me ater aos que não gostam do Carnaval ou aqueles
que não valorizam o que o cinema em particular contribui para a cultura neste
país em que vivemos. Vou destacar alguns pontos como agendas que precisamos
pensar politicamente.
Talvez um ponto que pode ser consensual, aos menos para quem
luta por democracias mais virtuosas, seja, em primeiro lugar, a potência da
diversidade intrínseca do que somos como povo, ou melhor, do que queremos ser e
temos o direito de lutar por isto. A diversidade é afirmada e celebrada como direito
de ser parte e não ser excluída ou menosprezada, mas recorrendo a formas
culturais festivas de se afirmar no Carnaval. Isto tanto acontece na
grandiosidade que assumiram as escolas de samba e seus desfiles, mas também nas
ruas tomadas por foliões. Considero as escolas de samba afirmando e expressando
uma agenda de identidade social, cultural e religiosa da enorme população negra
que constitui a nossa sociedade. Afinal, apesar de serem a maioria na
configuração do que somos, as e os cidadãos negros e lutam por ser reconhecidos
como tal e de respeito ao que são, sua religiosidade, suas expressões
culturais, sem racismos e violências excludentes. Neste sentido, queiramos ou não,
constituem sujeitos políticos lutando por direitos iguais. Mais, afirmo que são
parte da emergência destes sujeitos na política e exigindo reconhecimento. Como
trazer e avaliar isto? Em termos de
análise política ainda temos muito caminho a percorrer.
E o cinema do Brasil, outro acontecimento de impacto no
momento, como avaliamos politicamente seu impacto. O filme Ainda Estou Aqui dirigido por Walter Salles e uma fabulosa equipe
de atores e tudo que exige a produção de um filme de qualidade. De novo, não é
a minha área. Estou aqui destacando o filme com um foco de analista e ativista
político. Nestes dias, o filme levou a estatueta de ouro da Academia do Oscar
do Cinema, localizada na clamorosa e rica Los Angeles, nos EUA. O
reconhecimento do filme em questão se deu em muitos outros festivais e amostras
de cinema pelo mundo, desde que foi lançado apenas a alguns meses. Aqui no
Brasil está também sendo visto por muita gente e, provavelmente, vai ser visto
ainda por muitas mais pessoas. O que se destaca são a qualidade, sem dúvida,
mas sobretudo para analistas políticos como eu, a visão e mensagem sobre um
período tenebroso de ditadura militar, com perseguição, prisão e morte de
muitos pais, mães, filhos e filhas, jovens...
Não cabe aqui entrar
em detalhes e porque foi esta a história particular representada, pois um filme
se faz montando uma versão da história, que pode ser dura mas revestida de vida
e emoção, como só as expressões culturais são capazes de fazer pensar e reescrever
a história vivida no cotidiano de um povo. Esta é a força que só a cultura tem,
pois sabe falar para muita gente com linguagem artística que impacta.
O certo é que o cinema produzido no Brasil tem um acervo e
certa tradição no esforço de não esquecer o que foi esquecido de nós mesmos ou
que os poderosos não querem que seja lembrado. Tivemos a recente perda do Cacá
Diegues, um outro diretor que trilhou tal caminho na produção de filmes sobre o
Brasil. Mas podemos incluir muitos outros aqui.
Nisto que defino como cultura na disputa de hegemonia, não
podemos esquecer da potente produção cultural musical, literária, teatral,
literatura de cordel, as festas populares como São João, os grupos culturais de
periferia e a potência de seus bailes e festivais, entre tantos outros
movimentos culturais. As identidades coletivas, em muitas situações e momentos,
começam com poderosos movimentos culturais. [3]
As frações e as classes dominantes também tem suas expressões culturais, muitas
vezes autodefinidas como eruditas, que precisam ser levadas em conta, pois ao
seu modo, ignoram ou desprezam a cultura popular.[4]
Termino afirmando que avaliar politicamente o fazer cultural,
em suas várias formas e expressões ao longo do tempo, contribui de modo estratégico para disputar
modos de se ver e ser visto, e, por isto, modos de buscar inspiração na luta
democrática transformadora.
[1] Mas, num certo sentido, também este aparecer da ”economia” à luz do dia tem estratégias de dissimulação mais ou menos eficazes. Quem é o tal “mercado”, por exemplo? Todas e todos estamos no mercado como relação social, mas não nos consideramos como mercado, mesmo os autônomos ou entregadores, na maior parte trabalhando em condições precários e de longas jornadas. O incrível que sejam vistos e se considerem como empreendedores individuais. Mas muito poucos, talvez algo em torno de 1% da população, constituem os poderosos donos de capital investido em economia concreta (fábricas, agronegócio, comércio, transporte...)ou aplicado especulativamente em bolas de valores. Este minúsculo percentual da população, no mundo capitalista que vivemos, conforma os que se escondem como “mercado” enquanto força política, capaz de impor a sua agenda sobre todo o Estado, com profundos impactos na vida de todos, não importa em que condições e qualidade de vida tenham. Vivemos isto aqui no Brasil. Mas, talvez, o mais evidente na atualidade seja o que se passa sob o governo Trump, nos EUA.
[2] Estou retomando a leitura de um livro que li há mais de uns 40 anos atrás, quando era professor, que está me fazendo repensar muita coisa nesta etapa de minha vida. Trata-se de um livro feito a partir das notas nos cadernos de cárcere de Antonio Gramsci, que me fez, durante o doutorado, descobrir a importância da longa disputa de hegemonia política nas análises de conjuntura. O livro se centra na questão do papel das expressões culturais. Trata-se de: Gramsci, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 1968.
[3] Não vê e avalia quem não quer, mas os bailões de jovens nas periferias e favelas das nossas metrópoles, são carregadas de identidades em construção e afirmação de direito de ser cidadania apesar de sofrer muitas violências, precariedades e exclusões. Li recentemente um número especial da Revista Nueva Sociedade, em espanhol, sobre os movimentos culturais na América Latina que se expressam pela música . Os artigos publicados tentam analisar suas conexões com conjunturas políticas e o aparecimento de novos movimentos. São vários artigos sobre diferentes movimentos. Pelo que significou para a formação do potente movimento feminista na Argentina, destaco a análise de Mercedes Liska, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e etno-musicóloga. LISKA, Mercedes. “Si no puedo perrear, no es mi revolucion? Música, sexualización de la cultura y feminismo”. Nueva Sociedad: Buenos Aires, nº e14, Noviembre-Diciembre 2024.
[4] Lembro aqui os movimentos de Cultura e Educação Popular que surgiram no Brasil no período prévio à ditadura imposta pelos militares. Aliás, é do período que Paulo Freire começou com a sua perspectiva de educação como prática de liberdade e emancipação social e política. Até tivemos uma potente Teologia da Libertação, no meio católico e protestante. Tanto educação popular como as expressões progressistas no cristianismo contribuíram muito na emergência de muitos movimentos sociais no Brasil, que impactaram no final dos anos 1970 e especialmente na redemocratização do Brasil na década de 1980.
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