quarta-feira, 5 de março de 2025

A Cultura, em suas diversas expressões, é fundamental na disputa de hegemonia política


Como analistas e ativistas políticos, de diversas áreas, priorizamos análises de situações e relações de forças mais visíveis, em situações históricas dadas, necessárias, sem dúvidas, mas insuficiente para a disputa de hegemonia. Às vezes, nosso critério se centra basicamente na economia e no Estado, onde as relações de forças de poder são mais evidentes, pois se expõem na defesa de interesses concretos[1]. Claro que temos tudo o que acontece na comunicação e que sabemos ser um campo estratégico na disputa política, porque muito determinada pelas relações econômicas e políticas, ou seja Estado e economia, mas ela tenta não se assumir como tal, sempre afirmando seu compromisso com a “verdade” e nunca como visão e versão dos fatos, eles próprios escolhidos criteriosamente sobre o que se passa, segundo interesses políticos.

O  que pretendo destacar aqui é que temos pouca capacidade de ver e prever o que se passa no chão da sociedade civil como um todo,  nos territórios em que vivemos como podemos, uns em melhores condições de vida que outros, organizados em grupos e movimentos sociais ou não. Mas um dia tais situações de vida podem emergir e se insurgir como novas forças, se exprimindo e impactando de formas variadas e reconfigurando  as relações políticas do momento histórico, de algum modo. O fato é que existem processos históricos longos, que fermentam e emergem de forma imprevista, pois  acontecem quando a gente não espera. O máximo que conseguimos é admitir que, apesar de tudo, um dia algo explode, por assim dizer. Aí, sim, entram no foco das nossas análises de ativistas.

Este é o caso da cultura e seu papel na sociedade. São expressões culturais muito diversas e complexas, movimentos de longo impacto, mas datados e situados.[2] E, a seu modo, jogam um papel fundamental nas situações e relações de forças, mas para além das expressões políticas deste ou daquele momento da sociedade. São processos mais duradouros, mas fundamentais, pois por definição tratam de sentidos de viver em coletividade: como vivemos, como nos vemos, como nos sentimos, como nos expressamos, como somos percebidos, o que carregamos de herança cultural, por que dramas históricos passamos, como nossas identidades coletivas se forjaram, por que das exclusões, discriminações e violências no seio da sociedade, qual o lugar das religiosidades, qual o cimento do comum vivido, como tudo isto se expressa ou faz parte de movimentos de longo alcance como a construção de uma identidade nacional, por exemplo? Enfim, são muitas perguntas que inspiram as expressões culturais de todos os tipos.  Isto não quer dizer que sejam sempre virtuosas. O ódio de uns sobre outros, a não aceitação da diversidade, o desprezo por quem não comunga do mesmo que defendemos, o extermínio, a busca do próprio interesse individual acima de tudo, a ideia de nação e projeto, enfim, uma complexidade enorme de questões estão constantemente sendo elaboradas e expressas nos diversos campos da cultura. Em si mesmo a cultura é um enorme desafio para a análise histórica e política consequente, influindo mais do que aceitamos, nas disputas políticas de hegemonia. Mas o fato é que os processos culturais existem e se expressam de muitos modos.

Volta ao ponto de partida desta minha análise: a cultura na disputa de hegemonia política. Não se trata das formas em termos  estritos, apesar de ser importante  como as diversas formas  constroem e expressam  uma Ideia de projeto de sociedade e, ao seu modo, dialogo e disputa impactando o conjunto, onde pode ser entendida ou rejeitada. Isto é disputa de sentido e rumo. Ela não é conjuntural, mesmo se expressando e influindo nas conjunturas e sendo por elas, de algum modo, determinadas. Como processo, a cultura se expressa em momentos históricos longos que é necessário sempre ter presente. Por mais difícil e complexo que seja, precisamos ver até como as expressões culturais, nas diversas formas, carregam focos, que a seu modo interpretam e instigam os processos sociais e históricos. Assim elas se tornam movimentos culturais datados e situados. Mas, sobretudo, o que imprta politicamente dizem da sociedade em questão. O que não é possível negar é seu impacto no modo de pensar a vida e o mundo. Portanto, como um substrato de referência do modo como somos vistos e nos vemos ao longo do nosso tempo de vida humana muito específico e curto.

Estamos em um momento de Carnaval, algo de origem religiosa, especialmente as escolas de samba, mas que se transformou numa potente expressão cultural a partir das periferias das nossas grandes cidade. Ele se renova, ano a ano, nas questões abordadas (enredo) e nos modos de expressar como canto, samba, fantasias e carros alegóricos.

Entre nós, no Brasil,  quase tudo para, dado o tamanho da celebração do Carnaval. São milhões de pessoas alegremente pulando nas ruas e outras tantas olhando e se contagiando pelo clima de festa. Sempre há as e os muitos que ficam distantes, não gostam, sentem seu cotidiano alterado e preferem se refugiar. Mas o Carnaval como cultura carregada de visões, leituras da realidade e mensagens, umas formas de pular e dançar mais que outras, impactam nos contraditórios processos que nos constituem como sociedade viva. Como isto se dá não é no ato ou no momento em que nossas vidas se moldam? Que agendas estão em disputa sobre a herança que carregamos, o que está sendo disputado hoje e que sinais apontam para o amanhã?

Bem, precisa ficar bem claro que não sou nenhum crítico cultural. O meu foco assumido é de um analista e ativista de conjunturas políticas. Eu me pauto, como muitas e muitos, mas longe de ser uma maioria, pela construção de democracia ecossocial transformadora para a conquista de direitos iguais na diversidade do que somos, aqui e para os diferentes territórios em que vivemos no Planeta Terra, bem comum a todas e todos. Mantenho um blog para contribuir na disputa por tal direção, mas sei que estamos longe, muito longe, de ter hegemonia política e nem dá para garantir quando isto pode ser conquistado , dada a correlação de forças num mundão dominado por um capitalismo globalizado, de exclusões e guerras e genocídios, lutas geopolíticas e ameaças de mudança climática devastadora de todas as formas de vida e da integridade dos ecológicos do Planeta Terra. Mas, também, preciso registrar poderosas resistências a isto tudo, tendo vibrantes culturas como forças construtivas.

Agora voltando para o nosso Brasilzão – ou Pindorama, como os Povos Originários nos lembram por que esquecemos ou não queremos pensar –, estamos vivendo aquele  momento em que o Carnaval prepondera, como poderosa festa popular. Ao mesmo tempo, neste ano particular, aconteceu o reconhecimento mundial da potência da nossa produção cultural através do cinema. Não vou me ater aos que não gostam do Carnaval ou aqueles que não valorizam o que o cinema em particular contribui para a cultura neste país em que vivemos. Vou destacar alguns pontos como agendas que precisamos pensar politicamente.

Talvez um ponto que pode ser consensual, aos menos para quem luta por democracias mais virtuosas, seja, em primeiro lugar, a potência da diversidade intrínseca do que somos como povo, ou melhor, do que queremos ser e temos o direito de lutar por isto. A diversidade é afirmada e celebrada como direito de ser parte e não ser excluída ou menosprezada, mas recorrendo a formas culturais festivas de se afirmar no Carnaval. Isto tanto acontece na grandiosidade que assumiram as escolas de samba e seus desfiles, mas também nas ruas tomadas por foliões. Considero as escolas de samba afirmando e expressando uma agenda de identidade social, cultural e religiosa da enorme população negra que constitui a nossa sociedade. Afinal, apesar de serem a maioria na configuração do que somos, as e os cidadãos negros e lutam por ser reconhecidos como tal e de respeito ao que são, sua religiosidade, suas expressões culturais, sem racismos e violências excludentes. Neste sentido, queiramos ou não, constituem sujeitos políticos lutando por direitos iguais. Mais, afirmo que são parte da emergência destes sujeitos na política e exigindo reconhecimento. Como trazer e avaliar  isto? Em termos de análise política ainda temos muito caminho a percorrer.

E o cinema do Brasil, outro acontecimento de impacto no momento, como avaliamos politicamente seu impacto. O filme Ainda Estou Aqui dirigido por Walter Salles e uma fabulosa equipe de atores e tudo que exige a produção de um filme de qualidade. De novo, não é a minha área. Estou aqui destacando o filme com um foco de analista e ativista político. Nestes dias, o filme levou a estatueta de ouro da Academia do Oscar do Cinema, localizada na clamorosa e rica Los Angeles, nos EUA. O reconhecimento do filme em questão se deu em muitos outros festivais e amostras de cinema pelo mundo, desde que foi lançado apenas a alguns meses. Aqui no Brasil está também sendo visto por muita gente e, provavelmente, vai ser visto ainda por muitas mais pessoas. O que se destaca são a qualidade, sem dúvida, mas sobretudo para analistas políticos como eu, a visão e mensagem sobre um período tenebroso de ditadura militar, com perseguição, prisão e morte de muitos pais, mães, filhos e filhas, jovens...

 Não cabe aqui entrar em detalhes e porque foi esta a história particular representada, pois um filme se faz montando uma versão da história, que pode ser dura mas revestida de vida e emoção, como só as expressões culturais são capazes de fazer pensar e reescrever a história vivida no cotidiano de um povo. Esta é a força que só a cultura tem, pois sabe falar para muita gente com linguagem artística que impacta.

O certo é que o cinema produzido no Brasil tem um acervo e certa tradição no esforço de não esquecer o que foi esquecido de nós mesmos ou que os poderosos não querem que seja lembrado. Tivemos a recente perda do Cacá Diegues, um outro diretor que trilhou tal caminho na produção de filmes sobre o Brasil. Mas podemos incluir muitos outros aqui.

Nisto que defino como cultura na disputa de hegemonia, não podemos esquecer da potente produção cultural musical, literária, teatral, literatura de cordel, as festas populares como São João, os grupos culturais de periferia e a potência de seus bailes e festivais, entre tantos outros movimentos culturais. As identidades coletivas, em muitas situações e momentos, começam com poderosos movimentos culturais. [3] As frações e as classes dominantes também tem suas expressões culturais, muitas vezes autodefinidas como eruditas, que precisam ser levadas em conta, pois ao seu modo, ignoram ou desprezam a cultura popular.[4]

Termino afirmando que avaliar politicamente o fazer cultural, em suas várias formas e expressões ao longo do tempo,  contribui de modo estratégico para disputar modos de se ver e ser visto, e, por isto, modos de buscar inspiração na luta democrática transformadora.

 



[1] Mas, num certo sentido, também este aparecer da ”economia” à luz do dia tem estratégias de dissimulação mais ou menos eficazes. Quem é  o tal “mercado”, por exemplo? Todas e todos estamos no mercado como relação social, mas não nos consideramos como mercado, mesmo os autônomos  ou entregadores, na maior parte trabalhando em condições precários e de longas jornadas. O incrível que sejam vistos e se considerem como empreendedores individuais. Mas muito poucos, talvez algo em torno de 1% da população, constituem os poderosos donos de capital investido em economia concreta (fábricas, agronegócio, comércio, transporte...)ou aplicado especulativamente em bolas de valores. Este minúsculo percentual da população, no mundo capitalista que vivemos, conforma os que se escondem como “mercado” enquanto força política, capaz de impor a sua agenda sobre todo o Estado, com profundos impactos na vida de todos, não importa em que condições e qualidade de vida tenham. Vivemos isto aqui no Brasil. Mas, talvez, o mais evidente na atualidade seja o que se passa sob o governo Trump, nos EUA.

[2]  Estou retomando  a leitura de um livro que li há mais de uns 40 anos atrás, quando era professor, que está me fazendo repensar muita coisa nesta etapa de minha vida. Trata-se de um livro feito a partir das notas nos cadernos de cárcere de Antonio Gramsci, que me fez, durante o doutorado, descobrir a importância da longa disputa de hegemonia política nas análises de conjuntura. O livro se centra na questão do papel das expressões culturais. Trata-se de: Gramsci, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 1968.

[3] Não vê e avalia quem não quer, mas os bailões de jovens nas periferias e favelas das nossas metrópoles, são carregadas de identidades em construção e afirmação de direito de ser cidadania apesar de sofrer muitas violências, precariedades e exclusões. Li recentemente um número especial da Revista  Nueva Sociedade, em espanhol, sobre os movimentos culturais na América Latina que se expressam pela música . Os artigos publicados tentam analisar suas conexões com conjunturas políticas e o aparecimento de novos movimentos. São vários artigos sobre diferentes movimentos. Pelo que significou para a formação do potente movimento feminista na Argentina, destaco a análise de Mercedes Liska, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e etno-musicóloga.  LISKA, Mercedes. “Si no puedo perrear, no es mi revolucion? Música, sexualización de la cultura y feminismo”. Nueva Sociedad: Buenos Aires, nº e14, Noviembre-Diciembre 2024.

[4] Lembro aqui os movimentos de Cultura e Educação Popular que surgiram no Brasil no período prévio à ditadura imposta pelos militares. Aliás, é do período que Paulo Freire começou com a sua perspectiva de educação como prática de liberdade e emancipação social e política. Até tivemos uma potente Teologia da Libertação, no meio católico e protestante. Tanto educação popular como as expressões progressistas  no cristianismo contribuíram muito na emergência de muitos movimentos sociais no Brasil, que impactaram no final dos anos 1970 e especialmente na redemocratização do Brasil na década de 1980. 

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