Como Avaliar e Enfrentar
as Contradições no Coração do Estado Brasileiro
Já há mais tempo avança, mas vem
se intensificando, o problema de certa paralisia do Estado por causa da
correlação estrutural de forças políticas institucionais, que afetam a
democracia liberal que temos. Isto não está sendo devidamente enfrentado no
Governo Lula III, que voltou a criar uma maioria eleitoral e gerou esperanças de mudança. Desde o Governo Dilma
II e, sobretudo, do Golpe Parlamentar do impeachment muita coisa foi se
deteriorando e até nos levou ao destrutivo Governo Bolsonaro de extrema
direita, fenômeno que se alastra mundialmente. Até foi praticamente desenhada
uma ameaça de Golpe para a implantação de uma Ditadura, como o STF vem
demonstrando e as imagens televisas chocantes de janeiro de 2023, no assalto à
Praça dos Três Poderes, com claros
apoios na sociedade civil, comprovam e não deixam dúvidas.
Este é o quadro, sem dúvida. Mas
será que está sendo bem diagnosticado e enfrentado? Gostaria de aprofundar a
questão, sobretudo em termos de análises e propostas do que fazer. Afinal, bem
ou mal, conquistamos uma democracia institucional e de alguma forma botamos a
Ditadura de lado nos anos 1980, mas não enfrentamos todas as consequências dela
e nem o câncer ditatorial foi extirpado de todo. Mas, de meu ponto de vista
analítico, o que mais interessa aprofundar é o que, como sociedade civil e cidadanias extremamente diversas de nosso
Brasil, podemos e devemos fazer, ao menos tentar, diante desta situação?
Na década dos 1980, com diversidade
de organizações e movimentos de cidadania ativa, no seio da sociedade civil,
fazendo grandes mobilizações e pressões públicas, fomos a força fundamental no
fim daquela Ditadura Militar. Não conseguimos muito do que queríamos, mas conseguimos
sobretudo “Diretas-Já” e “Constituinte Exclusiva”.
Precisamos voltar ao Governo de
Transição de 1985 que tivemos. Basta lembrar que ele foi liderado por uma
aliança reveladora do poder civil tolerável, por assim dizer. Sem dúvida, se
buscou uma transição civil, mas eleita indiretamente pelo Congresso ainda constituído
segundo as regras eleitorais da ditadura, em 1980. Naquele então, apesar da forte
“Campanha das Diretas Já”, a eleição foi indireta e nos legou um governo de
Aliança Democrática, com Tancredo para Presidente e Sarney para Vice-
Presidente. Sarney, era o líder civil maior da Arena de apoio aos militares, em
tempos de Ditadura. Tancredo, apesar de um passado no PTB, foi do MDB, da
oposição consentida pelos militares na Ditadura, com cassações quando
necessário. A esperança popular em Tancredo foi frustrada pelo destino imprevisível
da vida, que inviabilizou a sua posse.
Ou seja, tivemos um governo civil, sim, mas
liderado por um Sarney, nem tão respeitável e democrático pelo que fez no
Maranhão com apoio da ditadura, e que passou
a ser nossa realidade de transição democrática.[1]
Mas, para aquela conjuntura, foi
a saída encontrada, afastando o mal maior e conquistando a Constituição de 1988,
apontando em novas possibilidades para o
Brasil, ao menos um horizonte de esperanças. Na verdade, não foi tão pouco o que se definiu como fundamental para a
democracia liberal: liberdade, igualdade para todas e todos, não à
discriminação, solidariedade e cuidado com gente e a natureza, os direitos dos
povos indígenas, quilombolas e tradicionais sobre seus territórios e modos de
vida e muito mais. Claro, isto tudo apenas na institucionalidade da lei. Destaco
ainda como fundamental, mas insuficiente, o voto cidadão periódico na renovação
da Presidência da República, Governos Estaduais, Prefeituras, Câmaras e
Legislativos, em todas estas esferas, tendo certo grau de autonomia e
atribuições específicas.
Porém, não conseguimos extirpar
um mal presente de forma privilegiada naquela formalidade ditatorial de ter um
Parlamento e um Judiciário, mas onde qualquer um poderia ser cassado e banido
da política por suas ideais, propostas e atos. Ou seja, lembro que a tal polaridade de forças
políticas já estava implantada de certo modo na Ditadura. Não é nova e não foi
diretamente reconhecida como tal. Princípios mais claros na organização
partidária foram estabelecidos, mas as raízes do “Centrão” não mudaram. Aliás,
se recompuseram. As mudanças de nome de partidos não escondem sua origem,
história e lógica. Muda como tudo mundo
no processo histórico, mas muda se recompondo de alguma forma. Temos que
reconhecer, apesar de todas aquelas mobilizações, não acabamos a “velhíssima”
política que tem origem lá nos “coronéis”, verdadeiros donos do sertão.
Avaliando este processo político
em que se moldou a institucionalidade democrática do Estado Brasileiro, a tal “Constituição
Cidadã” de Ulisses Guimarães, nasceu “encurralada”. Este é um conceito que
venho trabalhando desde então,
talvez mais nos anos seguintes. Na minha visão como analista, nossa
questão é a reprodução do encurralamento da democracia, que cresceu ao invés de
diminuir, apesar de tudo o que conquistamos. No processo político que permitiu
a eleição direta de governos democráticos como Fernando Henrique Cardoso I e
II, Lula I e II, Dilma I e II, com novas políticas especialmente sociais, como
combate à pobreza e fome (Bolsa
Família), implementação maior das aposentadorias dos que nunca contribuíram para
a Previdência Social, políticas nas áreas fundamentais da saúde e educação pública,
algo de reforma agrária e assentamentos de sem terra, política de demarcação de
terras indígenas e de povos tradicionais, questão da água no Semiárido, e, sem
dúvida, políticas ambientais e de combate ao desmatamento, políticas de
retomada do desenvolvimento industrial, investimentos em infraestrutura, hidrelétricas,
petróleo, com criação de empregos e esforços de estabilização da moeda.
Mas, é do interior do Congresso eleito pelas
regras constitucionais de 1988 que se gestou o Golpe Parlamentar de 2016 contra
a Dilma e contra o “progressismo de esquerda”, que tivemos, pouco transformador
na verdade, mas de esperança. Depois, o curto Governo Temer de 2016-2019, já dependente
do “Centrão”, fez mudanças constitucionais com a nova aliança golpistas e
promoveu mudança nas leis trabalhistas e nas regras constitucionais dos
recursos para educação e saúde, como aspectos destacados. Tal clima político nos
levou ao Governo Bolsonaro de 2019-2023,
sempre com apoio do “Centrão”. Não é meu
objetivo avaliar o quanto destrutivo foi tal governo. Então foi eleito Lula
III, atual presidente, mas sem maioria parlamentar. Assim, chegamos a esta fase
do encurralamento democrático, definido como “Presidencialismo de Coalisão” por
muitos analistas, onde o “congresso pauta o governo” e, praticamente, controla
o orçamento e não dá muito espaço para uma política econômica que enfrente o “poderoso
mercado”: “Faria Lima”, os fundos de investidores e bancos que enriquecem com a dívida, o “Agronegócio” e o “extrativismo
mineral”, com seus subsídios financeiros
e isenções de impostos.
Na verdade, eu tendo a achar que,
como sociedade civil e cidadanias organizadas e ativas, temos grande
responsabilidade política toda esta situação. Demandamos muito a participação
política, mas nos contentamos em fazer parte de Conselhos de Políticas Públicas
e consultas em várias áreas, além de votar. Isto é necessário, sem dúvida, mas
sem disputa na sociedade civil e nas ruas nunca teremos democracia participativa.
Num certo sentido, como cidadanias, demonstramos também encurralamento. Sem
dúvida, temos algumas ações emblemáticas como as mobilizações dos movimentos indígenas,
das mulheres, o VAT-Vida, Além do Trabalho, o MST, as iniciativas virtuosas de
agroecologia, mas não muito mais na atualidade.
Em termos mais gerais, a questão central em minha reflexão e análise
é uma certa apatia da sociedade civil e das cidadanias organizadas. Não é só o “desequilíbrio
do presidencialismo de coalização” e o poder de fogo do tal mercado. A nossa certa
apatia política potencializa as contradições existentes. Se algo pode
desempatar e mudar, só poderá ser se nós como sociedade civil e cidadania nos
engajarmos. Estamos esperando não sei o que. Difícil é, assim como é
necessário. Mas não podemos simplesmente esperar que da institucionalidade
surja a solução. Força transformadora e que empurra as democracias para a
virtuosidade são as cidadanias, como brilhantemente defendeu Rosa de Luxemburgo,
no início do século passado. E mais, não
temos modelos a copiar e tentar, pois cada realidade histórica, até cada pedaço
de território, tem as suas especificidades. O transformador, de meu ponto de
vista, ou tem raízes territoriais locais, lá onde vivemos, ou nunca será uma
força irresistível.
Assim, concluo afirmando que depende
de nossas visões, vontades e ações concretas a possibilidade de sair do
encurralamento e avançar com transformações democráticas. A espera do governo
de turno é certamente nada mudar, com possibilidades de até piorar. Como
despertar tal vontade e ação entre nós? Tarefa de todas e todos!
[1]
Fui orientador no IESAE/FGV de uma dissertação de mestrado de aluna do
Maranhão, ainda na década de 1980.