quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Os Golpistas Foram Condenados, Mas o Câncer da Extrema Direita Exige Terapia Cidad

 


A institucionalidade democrática do Brasil, sobretudo o STF, Procuradoria e Polícia Federal, pela primeira vez, respondeu de maneira eficaz condenando o núcleo central dos que haviam armado o golpe na transição de governo em 2023. Trata-se de uma ação sem precedentes em nossa história política. Lembrando a auto-anistia que se concederam os criminosos da ditadura militar de 1964-1985, estamos diante de uma demonstração para nós mesmos e o mundo que democracias podem ser extremamente virtuosas diante dos poderosos, civis e/ou militares, que se acham acima da lei. Isto é um fato histórico a celebrar.

No entanto, não podemos baixar a guarda, pois o problema político da extrema direita continua vivo entre nós, no seio da sociedade civil brasileira, como um câncer destrutivo que pode levar à morte a nossa democracia. Pior, ele tem laços fortes com algo que está presente em muitos países, como se fosse uma pandemia política que se expandiu e contaminou o mundo quase completamente.

Na falta de um imunizante conhecido que fazer? As cidadanias ativas em disputa radical de princípios éticos democráticos, valores e ideias virtuosas, com capacidade de transformação de situações, são uma das únicas possibilidades  que temos. Mas o mundo pode estar caminhando para uma terceira guerra mundial catastrófica.  Os que tem o dedão no gatilho que pode disparar um imenso arsenal nuclear destrutivo do planeta como um todo estão fora de nossas possibilidades como cidadanias e governos no grande Sul-Global. O vergonhoso genocídio promovido por Israel sobre o povo palestino, com o suporte incondicional dos EUA, mostra claramente que falta pouco para um desastre planetário.

Nós estamos aqui, no Brasil, que até no nome carregamos uma história de destruição, de desmatamentos, violência e morte, como nos lembram os Povos Indígenas e os milhões descendentes dos escravizados. Mas temos possibilidades, mesmo sendo limitadas, de fazer valer modos mais virtuosos de viver, que garantam uma democracia de direitos iguais na diversidade, de cuidado com nossa gente e com a  preservação do território que nos pode garantir condições de bem viver. Bem ou mal, no tabuleiro mundial, sem arsenais ameaçadores, o Brasil hoje conta como voz a ser ouvida.

Temos que ter consciência do nosso tamanho e do que somos como povo e nação. Estamos entre as maiores populações e gerimos um dos territórios maiores e dos mais biodiversos do Planeta Terra. Temos a chance de fazer parte dos BRICS em busca de um mundo mais igualitário na diversidade. E temos, gostemos ou não, um líder político como Lula de projeção mundial, que pode ajudar na gigantesca tarefa de agir como cidadanias conscientes de seu papel, tanto aqui como no mundo todo.

Mas sabemos que o câncer destrutivo está ainda em nosso seio. Ele não foi condenado, menos ainda ameaçado de ser extirpado. Está livre e usa da fé como liga forte, dando unidade a seguidores. Pior é termos  forças policiais que parecem, em muitas ocasiões, até conviventes com as gangues do crime. Derrotamos um de seus projetos destrutivos políticos recentes, a destruição da democracia que conquistamos com suor e sangue. Os golpistas agiram em nome de um Brasil para poucos, de imposição de uma ditadura e de negação de direitos iguais básicos para viver e ser gente. Chegaram a  propor abrir totalmente a porteira do crime, para a boiada das milícias, traficantes e grileiros passar impunemente, como quizesem, matando gente e outras formas de vida, desmatando, extraindo a riqueza dos territórios e contaminando com mercúrio e agrotóxico os alimentos, os rios e o ar que respiramos. No momento, condenar os golpistas  é muito e, sem dúvida uma demonstração de democracia viva. Mas olhando o amanhã, é ainda muito pouco, pois o câncer está vivo em nosso seio. Seus líderes foram condenados exemplarmente. Mas seus seguidores e líderes sorrateiros andam por aí. Sempre podem armar novos golpes.

Sabemos que temos uma institucionalidade democrática a preservar. Mas ela é,  a seu modo, insuficiente para nos dar uma democracia transformadora das relações sociais e das precariedades de todos os tipos existentes em nosso seio. Precisamos almejar mais bem viver para todas e todos. Mas, para tornar tal sonho possível  devmos lutar com determinação, com ativismo transformador deste os territórios – bens comuns em que vivemos. Não é aceitável que milhões ainda tenham que, a cada dia. viver sem saber se terão comida para si mesmos e os seus entes queridos à noite. Não é admissível que milhões de nós se sintam discriminados por sua cor de pele, por suas opções sexuais, por seus desejos e sonhos.

Vamos focar direito no que estou chamando de câncer no nosso seio. Não considero a prática do centrão no Congresso como algo democrático nem tolerável. Sua primazia é o próprio bolso e o privilégio do cargo, como um direito adquirido sobre os direitos de todos os demais da coletividade. Isto não tem nada minimamente virtuoso. Sim, a institucionalidade democrática existente produziu isto. Ou melhor, nós produzimos isto como cidadanias com o voto e o direito de escolher. Lamentavelmente, aceitamos ser enganados, roubados... talvez por uns trocados ou favores. Sem dúvida,  muitos precisam desesperadamente de alguma ajuda. Mas vale a pena se vender hoje e amanhã continuar a ter que viver a sina de se vender novamente?

Bem, eu sei que sou, em termos de condições de vida, um privilegiado que teve oportunidades para estudar e depois bons empregos. Nunca passei pela  necessidade de er que  me vender por alguns tostões para ir levando a vida. Sei que tenho uma obrigação maior que muitos para ajudar a reverter este quadro. O câncer maior  que precisa de terapia intensiva é a cura da exclusão social praticada contra milhões de nossos conterrâneos. Este maldito câncer precisa ser extirpado, para ontem.  Mas a direita viva e com seu modo sorrateiro de ser e agir não deixa que algo mude e afete os seus “direitos conquistados”, Esta é a verdade afirmada e reafirmada, como se normal fosse ser assim.  Mas também é verdade que a terapia ou vem da arena política ou nunca virá.

É nestes termos que caracterizo o câncer da direita presente em nosso cotidiano, sordidamente implantada e alimentando o favor como forma de manter cidadanias subordinadas aos seus interesses, nesse nosso imenso país das diversidades sem fim. É esta espécie de políticos que acaba sustentando os golpistas, sejam quais forem, desde que seus interesses mais paroquiais sejam atendidos, acima de qualquer interesse público e democrático. A direita engravatada nas esferas do poder, sem ética e sem compromisso político com o bem comum, encurrala a democracia e encurrala a institucionalidade.

Mas, no final da conta, temos que reconhecer que a direita do Centrão é legitimidade pela institucionalidade que temos. Ele não representa exatamente a cidadania sofrida. Ela se vale de tal cidadania pelas regras de nossa institucionalidade, onde o favor que subordina está acima do direito. Parece que isto tem a ver somente com a falta de consciência cidadã. Pessoalmente considero muito mais complexa a questão. Temos estados federados, extremamente diversos em todos os aspectos, a começar por tamanho da  população total, a cidadania constituinte. Cada Estado Federado, independentemente do tamanho de sua cidadania,  tem três senadores, seja o menor dos Estados ou o maior. Donde vem a distorção na composição do Senado? Será que não precisamos de uma profunda reforma democrática da política institucional de representação, dando maior equilíbrio na representação final? O presidente é eleito pelo voto igual em valor, algo mais democrático impossível sem dúvida. Mas deputados e senadores não, pois dependem do território em foram votados. Temos um mínimo de 8 deputados para os menores  Estados e um máximo para os aqueles maiores. A desigualdade é legitimida pela institucionalidade. Será que não podemos inventar algo mais virtuoso para um equilíbrio de cidadania instituinte com o seu voto?

Sei que estou fazendo um desabafo de mal-estar em meio a euforia da justa condenação dos “graúdos” chefões que se consideram acima da lei democrática e que pensam poderem fazer prevalecer  a sua vontade. Na verdade, nem tenho proposta para os problemas de nossa institucionalidade em relação ao monstrengo do Centrão no Congresso, que paralisa praticamente tudo, especialmente qualquer  política mais virtuosa e transformadora em busca de direitos iguais. Mas vale enfatizar o muito que temos que fazer para extirpar possíveis golpistas instalados nas instâncias do poder democrático, imunes, com poder de barganha a partir do Congresso, instância democrática, mas que poderia ser mais representativa...O coronelismo numa foi virtuoso, mas ainda persiste em nossa institucionalidade política. Penso que deveríamos dar mais atenção a tal problema. Não estou convicto que a distorção legal da atual representação seja compatível com a democracia transformadora que precisamos, até para os que vivem nos menores Estados Federados.

A questão da representação que levanto é uma preocupação de longo prazo. A condenção dos golpistas a celebrar e lançar foguetes não redime enquanto lutadores por democracia. Mas a tarefa de tornar a democracia cada vez mais virtuosa precisa de muito mais. Termino dizendo, que podemos sonhar com mais, sem medo de ser felizes.

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

NAÇÃO, SOBERANIA POLÍTICA, IDENTIDADE E CULTURA

 


Estou intrigado conosco mesmo, analistas, ativistas e organizações de cidadania  portadoras de perspectiva de transformação democrática ecossocial, para garantir direitos iguais na diversidade como povo brasileiro. Qual o porquê do nosso quase silêncio e falta de reação em relação às questões que o título anuncia? Isto em um contexto explícito de ataque do Trump, presidente dos EUA, à nossa institucionalidade democrática e acordos comerciais se julgando no direito de impor, de forma unilateral, taxação de 50% sobre as nossas exportações a seu país e condenar membros do STF, que estão julgando o líder da extrema direita e seus cúmplices pela tentativa de golpe de Estado e imposição de uma ditadura.

Não há dúvidas que estamos sendo agredidos de forma imperialista por Trump, com a justificativa diversionista de estarmos condenando quem tentou o golpe na transição de Governo. É um atentado vindo dos EUA como potência à nossa soberania política. Sim, temos até muitas análises a respeito e lembrando que não estamos sendo uma exceção no caso da arma comercial usada, que Trump impôs a muitos países com a justificativa do seu projeto MEGA. Mas por que não se registra uma reação cidadã forte no seio da sociedade civil brasileira contra o ataque à nossa soberania e democracia?

Até temos reações dos setores da economia afetados, mas pressionando, como sempre, por políticas compensatórias. São as vozes do tal sujeito “mercado”, pouco comprometido com direitos e democracia transformadora. Claro, a taxação sobre exportações implica em perdas econômicas e de empregos no Brasil. Mas estou preocupado com o nosso papel de cidadanias em luta por direitos democráticos para todas e todos. Vamos simplesmente esperar para ver como fica? E onde está a defesa de nossa autonomia e soberania como nação diante da agressão? Que riscos representa para a institucionalidade democrática duramente conquistada? Vamos nos contentar com a melhora nos índices de avaliação do Governo Lula?  Será que não é grave o fato que haja vozes no nosso Congresso que estão até apoiando a agressão econômica e institucional dos EUA e sua justificativa?

Devo reconhecer que existem análises sobre a real motivação do ataque. Concordo com Reynaldo Aragão que  a questão fundamental na motivação da agressão  dos EUA tem a ver, como central, a ousadia do Brasil de regular as grandes plataformas  digitais, sobretudo pelo não compromisso delas com o que é difundido pelas redes sociais. Com seu alcance global, o domínio  pelas big tecks norte-americanas é até aqui uma evidência  e uma possível base para a continuidade da hegemonia capitalista dos EUA, ameaçada no processo de busca de nova ordem global. Por outro lado, penso que talvez é ainda mais pertinente a análise de José Fiori, em entrevista a Tutaméia, ao afirmar que o problema deve ser colocado num contexto de terceira guerra mundial contra a ousadia dos BRIS em recompor o multilateralismo abalado e criar novas bases para suas economias, até com o abandono da hegemonia do dólar nas transações globais, usando suas próprias moedas. Acho os dois argumentos muito mais pertinentes do que a justificativa da ação do STF contra Bolsonaro e seus cúmplices. Isto, sem dúvidas, é diversionismo ou camuflagem, visando o grande público.

De todo o modo, existe o fato real da agressão ao que o Brasil é para nós mesmos: uma nação soberana. Lutamos muito para nos livrar da ditadura militar alinhada com a doutrina emanada dos EUA de combate ao comunismo. Diante de prisões arbitrárias, torturas e mortes de opositores, mais rígida censura sobre a comunicação e expressões culturais críticas, foi difícil conquistar uma institucionalidade democrática e buscar caminhos que garantam direitos a todas e todos, sem exclusões,  como parte de uma nação soberana. Com a democracia, tendo potencialidades e limites, mas nossa, ainda nos falta muito para sermos uma nação capaz de priorizar o bem de todo o seu povo, em nome do cuidado com a gente e a natureza, enfrentando poderes internos e externos que dominam nossa economia e impõem limites à nossa capacidade da democratizar de forma transformadora.  Mas é uma conquista que vai avançado e retrocedendo, aqui e lá, apesar de tudo. O que significam as agressões lideradas por Trump como ameaça destrutiva real à nossa democracia e poderes instituídos?

Considero que, neste momento,  estamos diante de um desafio que está muito além dos poderes de Estado para nos defender como nação. Por que não acontecem mobilizações como quando lutamos contra a ditadura nos anos 1980?  Ou a mobilização cidadã pelo impeachment do Collor em nome da ética na política no início dos 1990? 

Antes de tudo, lembro que no meu tempo de jovem universitário, nos anos 1960 e 70, particularmente puxado pelo movimento estudantil e organizações de esquerda, tínhamos um clara visão e fazíamos denúncias e promovemos grandes mobilização contra o imperialismo dos EUA, suas agressões e seu controle sobre nossa soberania e de todos os países da América Latina. Tínhamos até um mote: “Go home yankees”.

Estou preocupado com a falta de reações no chão da sociedade. Na verdade, sem um explícito e amplo apoio cidadã, sem a luta pela autonomia e contra a hegemonia dos EUA, ou outras se necessário for, os nossos poderes constituídos se acanham, apesar de legitimados pelo voto cidadão. A verdadeira causa é domínio desproporcional de um “Centrão” nada comprometido em ter uma potente democracia que priorize as maiorias da Nação, muito além de seus interesses corporativos e paroquias.

Sim, temos uma institucionalidade democrática, mas acaparada por forças e interesses corporativos internos, com poder real de veto como se o “mercado” e o agronegócio fossem expressão de cidadania e, portanto, se sentirem os árbitros maiores sobre direitos a defender e que políticas implementar democraticamente para o bem de todos, muito além de seus próprios bolsos.  Temos uma “democracia encurralada” por interesses corporativos, que atropelam o próprio sentido de buscar e zelar pelo bem comum acima de tudo, tendo soberania e autonomia como nação soberana.[1] O lucro e acumulação privada não podem estar acima dos direitos iguais, nem bloquear o poder do Estado Democrático Brasileiro e sua legítima capacidade regulatório e legítimo poder de julgar em defesa do bem comum.

Bem, não há dúvidas que se trata de relações de forças políticas em disputa. Precisamos da institucionalidade democrática expressa no Estado mas que seja aberta a ampla participação cidadã como força real na definição de  políticas virtuosas e que priorizem o comum e os direitos iguais a toda a população. Mas isto exige que as cidadanias assumam seu papel constituinte e instituinte decisivo. Sem organização e participação cidadã isto  não acontecerá e o espaço da política será dominado por interesses e forças de acumulação. O quando real se completa com  toda uma história de vergonhosas exclusões, racismo, colonialismo, patriarcalismo, periferias, violência e negação de direitos fundamentais.

Excluídos e periféricos entre nós resistem bravamente  para sobreviver. A única saída possível para eles  é se organizar como forças cidadãs e disputar direitos e até o próprio sentido de se sentir parte de uma nação democrática e soberana. Se aí, entre o povão, não se forjarem forças coletivas determinantes do que podemos ser, não teremos capacidade para superar as múltiplas exclusões sofridas no dia a dia, pouco avançaremos em termos de direitos iguais na diversidade. Mas também nem teremos uma forte soberania e força para enfrentar ataques externos.

Voltando à questão que aponto acima, não nego que tivemos como sociedade civil brasileira grandes momentos históricos a celebrar. Mas não podemos nos contentar, enquanto cidadanias, com o pouco conquistado no passado. Nem esperar que transformações virtuosas da situação possam vir dos poderes constituídos, sem potente ação política cidadã que incida neles, contrabalançando as forças sociais que priorizam a defesa de seus interesses privados. Em última análise, precisamos de Economia e de Estado, mas que priorizem o bem viver de toda a população.

Na conjuntura atual, de mudanças geopolíticas e imposição de regras contra a nossa soberana como nação, percebo certo silêncio das ruas, da falta de indignação e revolta diante de poderes de fora que atentam contra nossa soberania como nação, nossa identidade e cultura. Mesmo tão desiguais na atualidade, o que temos é a nossa nação, pois nela e sobre ela é quer podemos ser sujeitos a reivindicar direitos, baseados nos princípios éticos da democracia: liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação,  que deveriam estar acima de interesses privados e a serviço de seu povo. Ataques como o que estão em vigor nesses dias, da potência hegemônica em crise, deveriam nos levar a reagir, pois criam uma situação grave ao limitar ainda a nossa autonomia em definir nosso destino.

Existe algo que assinala alguma esperança: os BRICS e a diferença que nele está fazendo o Lula, como nosso presidente. Mas quem, na diversidade das cidadanias deste país, se preocupa com as possibilidades que os BRICS podem significar como contenção da potência hegemônica e militarizada. Penso que esta coalização, em busca de cooperação para um mundo mais multilateral, não é pouco em termos de enfrentar a hegemonia decadente dos EUA. Pelo contrário, é algo potencialmente transformador. No entanto, como diz a canção dos tempos de luta contra a ditadura, “esperar não é saber”. Fortalecer os BRICS é uma tarefa comum das diversas cidadanias dos países integrantes da aliança, ela também com contradições internas.

Talvez precisemos colocar mais no centro a importância e a disputa de sentido de nossa identidade e soberania como nação para os desafios internos e externos. Em minhas análises, destaco a potente cultura que temos em suas muitas expressões, dada a diversidade interna da nossa própria população. Cultura que também tem raízes no potencial natural de nosso território nacional para poder se organizar  democraticamente, com respeito às  diversidades de modos adaptados de produzir as condições do viver.   Precisamos fazer desta base nossa potência e identidade nacional qualificadora da soberania. Claro que precisamos de economia potente também, mas não para servir somente a uma pequena parcela de “donos do mercado” e seus aliados políticos no Congresso.  

Sei que a própria ideia de nacionalismo e soberania é uma dificuldade política e um déficit no campo da esquerda. Mas para disputar internamente hegemonia democrática e potência transformadora, em termos de direitos iguais, a soberania nacional também é uma condição. O capitalismo prioriza o seu domínio sem limites e, num certo sentido, descarta totalmente democracia soberana fundada na cidadania nacional. Não teremos verdadeira soberania e autonomia para intensa democracia só contando com o Estado. A resistência aos ataques e imposições externas é também uma necessidade para termos uma nação democrática soberana em busca de influência para compartir o bem comum planetário, onde cabem muitos mundos diferentes com seus bens comuns compartidos.

Meu estranhamento é a passividade e a espera, sem agir e mobilizar nossas forças como cidadania, com sua legitimidade de instituintes e constituintes da democracia e da soberania, com todo seu poder de resistência. Não dá esperar potência de um Governo encurralado pelo Congresso. Temos uma espécie de câncer político autoritário destrutivo. São forças agindo no seio da sociedade com expressão forte nas relações de poder existente. As suas manifestações  públicas até aqui demonstram satisfação e apoio diante da conjuntura de agressões externas do Trump, mesmo que sejam diversionistas, podem enfraquecer a capacidade de reação interna do Brasil. Lamentavelmente, isto faz parte da correlação de forças políticas e da disputa de hegemonia democrática desde o chão da sociedade civil, combinadas com os poderes no Estado democrático que temos. Mas não são aceitáveis, de forma nenhuma, as agressão à soberania democrática que é de todo o povo brasileiro. Até nesta questão precisamos assumir nossa parte de cidadanias para conter a extrema direita autoritária, que busca também apoio externo, seja qual for, para se impor no Brasil.

Concluo afirmando que não vamos avançar democraticamente  sem enfrentar as agressões externas, visando manter um capitalismo globalizado a todo custo, sob o jugo de imperialismos, quaisquer que sejam. Por isto, penso que iniciativas de mobilização e agregação de forças de cidadanias democráticas, diversas e com sua potencialidade, são fundamentais num contexto de agressões externas que podem crescer. As imposições de fora, combinadas com a extrema direita  autoritária interna, são um ataque à institucionalidade democrática como nação soberana, que lutamos para conquistar. Não dá para ficar calados e esperar diante de tal situação.

 

 

 

 

 

 



[1] Nas minhas postagens no Blog Sentidos e Rumos, de forma sistemática, trato desta questão do encurralamento da democracia brasileira.

terça-feira, 8 de julho de 2025

O Que Fazer Como Cidadanias Diante das Mudanças Geopolíticas da Atualidade

 

Participei nos dias 5 e 6 de julho, no Rio de Janeiro, de uma oficina de imersão do INP – Instituto Novos Paradigmas, de Porto Alegre, em parceria com IDHES, BRICs Center/PUC-Rio e IBASE sobre “A crise do Multilateralismo e os Caminhos do Sul Global”, nos dias em que se realizava na cidade o encontro dos países membros dos BRICs. Surgiram muitas ideias e propostas estimuladoras, uma espécie de mapeamento de questões para cidadanias ativas em luta por democracia, sem chegarmos a muitas conclusões consensuadas. Como o evento foi inspirador em muitas questões, resolvi fazer um apanhado do que me pareceu que merece atenção de um ponto de vista de democracia ecossocial transformadora, que venho discutindo nas mais diferentes postagens do meu blog “Sentidos e Rumos”. Isto não é e nem pretende substituir o documento completo que o INP vai produzir como resultado de um trabalho coletivo, certamente com muito mais ideias e propostas.

Destaco em primeiro lugar, a importância da iniciativa do INP em nos interpelar para a questão do multilateralismo e os BRICs tratado dominantemente como questão de governos do Sul Global. Ela é também uma questão de cidadania que, talvez, não está recebendo a devida atenção de nossa parte.

Uma primeira grande questão são os enormes riscos de tragédia no ar, para além da geopolítica, causados pelas loucuras do governo de extrema  direita do Trump, para manter a todo custo a hegemonia dos EUA, com a sua proposta MAGA -Make America Great Again, hoje ameaçada inclusive pelos BRICs. A proposta pode ser destrutiva e até nos levar a um conflito atômico de ordem mundial, com uso de seu enorme arsenal militar e bases espalhadas pelo mundo.

No entanto, cabe ressaltar a importância e a oportunidade dos BRICs, claramente apontando outro mundo possível, mais includente e próspero. Esta iniciativa de governos do “Sul Global”, dado o seu tamanho em população e PIB, aponta uma possibilidade de outros caminhos, mais virtuosos e minimamente transformadores do poder mundial vigente. Destaco algumas análises a respeito.[1] Mas será que, de uma perspectiva de democracia transformadora do capitalismo globalizado e financeirizado dominante, esperar que a aliança dos países do  BRICs prospere será suficiente para a multiplicidade de situações e necessidades dos povos existentes no mundo?

Faço um destaque de algumas questões que o evento INP me permitiu captar, como uma espécie de contribuição às análises e debates que tem muito a destilar como ideias-força para nosso ativismo cidadão, que demandam pesquisa, análise e ação. São desafios, acima de tudo:

               . A manutenção da integridade dos sistemas ecológicos do Planeta Terra como bem comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos.

               . Redução imediata e drástica de desmatamentos e queimadas, de plásticos e produtos tóxicos, da poluição das águas de rios e mares.  

. Redução e até eliminação da extração e do uso de energia fóssil como principal causa das emissões de efeito estufa e mudança climática.

.  o bem viver como nosso ideal de um pilar para um “outro mundo”, sem deixar nenhum lugar ou povo de fora, construindo uma biocivilização universal.

. Buscar sistemas políticos de democracia ecossocial transformadora em busca de direitos iguais na diversidade.

. Construir um mundo onde cabem muitos mundos, como nos lembram os zapatistas do México.

. Trata-se de termos um mundo como um tapete global de alternativas territoriais, como bem define e articula a Global Tapestry of Alternatives ( iniciativa da Índia).

. Como prioridades de cidadanias planetárias lutando pela radicalização da democracia precisamos combater toda as formas de regimes de dominação e exclusão, racismo, discriminação de gênero, de migrantes e a intolerância cultural e religiosa.

. Precisamos de paz pelo mundo inteiro, sem guerras, sempre priorizando a negociação e a busca de acordos de cuidado, convivência e compartilhamento, sem dominação de um povo sobre outro. Um objetivo estratégico de nossa ação deverá ser impor, de forma democrática, a redução de arsenais, bombas atômicas e as guerras pelo mundo.

. Tudo isto nos pode levar à multipolaridade e às democracias vivas como alternativa radical ao capitalismo globalizado e financeirizado, com seu eurocentrismo e “colonialidade” como paradigma civilizatório.

Estamos muito longe de tudo isto, mas já existem sementes promissores lideradas por Povos Tradicionais em defesa de seus territórios e modos de vida, multiplicação de iniciativas agroecológicas, cidades sustentáveis, coleta e reciclagem de produtos descartados, governos participativos, reservas protegidas e reflorestamentos com espécies nativas, despoluição de rios, iniciativas de transporte livre em cidades, para lembrar algumas iniciativas virtuosas e inspiradoras.

Para finalizar, penso que tudo isto e muito mais podemos tomar como nossa tarefa de cidadania e intervir determinados nas iniciativas governamentais na arena mundial.  

 



 [1]  Começam a se multiplicar as análises sobre os BRICs, apontando diferentes aspectos sobre o seu significado e possível impacto na atualidade. Destaco alguns que me tem ajudado nas minhas próprias análises:

. FIORI, J.L. “Entrevista para Tutaméia, 27/08/23 (acesso: https://tutameia.jor.br/novo-brics-explode-a-ordem-internacional);

.FIORI,J.L. A “multipolaridade” e o declínio crônico do Ocidente. Rio de Janeiro, Observatório Internacional do Século XXI, n/° 5;

.GRZYBOWSKI, C. A Multipolaridade, o Papel dos BRICs e a Agenda sobre Transições Energéticas e Mudança Climática. Rio de Janeiro, IBASE.

.GRZYBOWSKI,C. Multipolaridade Para Outro Mundo? Mudanças geopolíticas em curso na atualidade. Rio de Janeiro, IBASE.

.HEINE, Jorge. The Global South is on the rise – but what exactly is the Global South? 31.07.23. (Acesso: utopia@robertosavio.info).

.MOREIRA, A.B., ALMEIDA,L.D. e STEDILE, M.E. BRICs Uma Alternativa ao imperialismo? In: Front  Tricontinental de Pesquisa Social e Front – Instituto de Estudos Contemporâneos.

.ORANGE, M. “Brics: uma cumbre que preocupa a Occidente.” BITACORA. Montevidéu,04.09.23.

.SANZ,J.A. “Lanueva Ruta de la Seda de los BRICS cruza Eurasia, África e Sudamérica.”Corporación Latinoamericana Sur. Revista Sur, 28.08.23.

SOUZA SANTOS, B. “O BRICS+ e Confúcio. (acesso: aviagemdosargonautas.net/2025/06/23/os-brics-e-confucio-por-b...)

.TOLCACHIER, J. “Qué crece con el BRICS?. Montevidéu, 04.09.23.

VISALLI, a. “La ampliación de los Brics, el amanhecer de um nuevo mundo? Montevidéu, Bitacora, 11.09.23.

 

 

 

 

terça-feira, 1 de julho de 2025

 

Como Avaliar e Enfrentar as Contradições no Coração do Estado Brasileiro

Já há mais tempo avança, mas vem se intensificando, o problema de certa paralisia do Estado por causa da correlação estrutural de forças políticas institucionais, que afetam a democracia liberal que temos. Isto não está sendo devidamente enfrentado no Governo Lula III, que voltou a criar uma maioria eleitoral e gerou  esperanças de mudança. Desde o Governo Dilma II e, sobretudo, do Golpe Parlamentar do impeachment muita coisa foi se deteriorando e até nos levou ao destrutivo Governo Bolsonaro de extrema direita, fenômeno que se alastra mundialmente. Até foi praticamente desenhada uma ameaça de Golpe para a implantação de uma Ditadura, como o STF vem demonstrando e as imagens televisas chocantes de janeiro de 2023, no assalto à Praça dos Três Poderes,  com claros apoios na sociedade civil, comprovam e não deixam dúvidas.

Este é o quadro, sem dúvida. Mas será que está sendo bem diagnosticado e enfrentado? Gostaria de aprofundar a questão, sobretudo em termos de análises e propostas do que fazer. Afinal, bem ou mal, conquistamos uma democracia institucional e de alguma forma botamos a Ditadura de lado nos anos 1980, mas não enfrentamos todas as consequências dela e nem o câncer ditatorial foi extirpado de todo. Mas, de meu ponto de vista analítico, o que mais interessa aprofundar é o que, como sociedade civil e  cidadanias extremamente diversas de nosso Brasil, podemos e devemos fazer, ao menos tentar, diante desta situação?

Na década dos 1980, com diversidade de organizações e movimentos de cidadania ativa, no seio da sociedade civil, fazendo grandes mobilizações e pressões públicas, fomos a força fundamental no fim daquela Ditadura Militar. Não conseguimos muito do que queríamos, mas conseguimos sobretudo “Diretas-Já” e “Constituinte Exclusiva”.

Precisamos voltar ao Governo de Transição de 1985 que tivemos. Basta lembrar que ele foi liderado por uma aliança reveladora do poder civil tolerável, por assim dizer. Sem dúvida, se buscou uma transição civil, mas eleita indiretamente pelo Congresso ainda constituído segundo as regras eleitorais da ditadura, em 1980. Naquele então, apesar da forte “Campanha das Diretas Já”, a eleição foi indireta e nos legou um governo de Aliança Democrática, com Tancredo para Presidente e Sarney para Vice- Presidente. Sarney, era o líder civil maior da Arena de apoio aos militares, em tempos de Ditadura. Tancredo, apesar de um passado no PTB, foi do MDB, da oposição consentida pelos militares na Ditadura, com cassações quando necessário. A esperança popular em Tancredo foi frustrada pelo destino imprevisível  da vida, que  inviabilizou a sua posse. Ou seja,  tivemos um governo civil, sim, mas liderado por um Sarney, nem tão respeitável e democrático pelo que fez no Maranhão com apoio da ditadura, e que  passou a ser nossa realidade de transição democrática.[1]

Mas, para aquela conjuntura, foi a saída encontrada, afastando o mal maior e conquistando a Constituição de 1988, apontando em novas possibilidades para o Brasil, ao menos um horizonte de esperanças. Na verdade, não foi tão  pouco o que se definiu como fundamental para a democracia liberal: liberdade, igualdade para todas e todos, não à discriminação, solidariedade e cuidado com gente e a natureza, os direitos dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais sobre seus territórios e modos de vida e muito mais. Claro, isto tudo apenas na institucionalidade da lei. Destaco ainda como fundamental, mas insuficiente, o voto cidadão periódico na renovação da Presidência da República, Governos Estaduais, Prefeituras, Câmaras e Legislativos, em todas estas esferas, tendo certo grau de autonomia e atribuições específicas.

Porém, não conseguimos extirpar um mal presente de forma privilegiada naquela formalidade ditatorial de ter um Parlamento e um Judiciário, mas onde qualquer um poderia ser cassado e banido da política por suas ideais, propostas e atos.  Ou seja, lembro que a tal polaridade de forças políticas já estava implantada de certo modo na Ditadura. Não é nova e não foi diretamente reconhecida como tal. Princípios mais claros na organização partidária foram estabelecidos, mas as raízes do “Centrão” não mudaram. Aliás, se recompuseram. As mudanças de nome de partidos não escondem sua origem, história e lógica.  Muda como tudo mundo no processo histórico, mas muda se recompondo de alguma forma. Temos que reconhecer, apesar de todas aquelas mobilizações, não acabamos a “velhíssima” política que tem origem lá nos “coronéis”, verdadeiros donos do sertão.

Avaliando este processo político em que se moldou a institucionalidade democrática do Estado Brasileiro, a tal “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, nasceu “encurralada”. Este é um conceito que venho trabalhando desde então, talvez mais nos anos seguintes. Na minha visão como analista, nossa questão é a reprodução do encurralamento da democracia, que cresceu ao invés de diminuir, apesar de tudo o que conquistamos. No processo político que permitiu a eleição direta de governos democráticos como Fernando Henrique Cardoso I e II, Lula I e II, Dilma I e II, com novas políticas especialmente sociais, como combate à pobreza e fome  (Bolsa Família), implementação maior das aposentadorias dos que nunca contribuíram para a Previdência Social, políticas nas áreas fundamentais da saúde e educação pública, algo de reforma agrária e assentamentos de sem terra, política de demarcação de terras indígenas e de povos tradicionais, questão da água no Semiárido, e, sem dúvida, políticas ambientais e de combate ao desmatamento, políticas de retomada do desenvolvimento industrial, investimentos em infraestrutura, hidrelétricas, petróleo, com criação de empregos e esforços de estabilização da moeda.

 Mas, é do interior do Congresso eleito pelas regras constitucionais de 1988 que se gestou o Golpe Parlamentar de 2016 contra a Dilma e contra o “progressismo de esquerda”, que tivemos, pouco transformador na verdade, mas de esperança. Depois, o curto Governo Temer de 2016-2019, já dependente do “Centrão”, fez mudanças constitucionais com a nova aliança golpistas e promoveu mudança nas leis trabalhistas e nas regras constitucionais dos recursos para educação e saúde, como aspectos destacados. Tal clima político nos levou ao Governo Bolsonaro de  2019-2023, sempre com apoio do “Centrão”.  Não é meu objetivo avaliar o quanto destrutivo foi tal governo. Então foi eleito Lula III, atual presidente, mas sem maioria parlamentar. Assim, chegamos a esta fase do encurralamento democrático, definido como “Presidencialismo de Coalisão” por muitos analistas, onde o “congresso pauta o governo” e, praticamente, controla o orçamento e não dá muito espaço para uma política econômica que enfrente o “poderoso mercado”: “Faria Lima”, os fundos de investidores e bancos que enriquecem  com a dívida, o “Agronegócio” e o “extrativismo mineral”, com seus subsídios financeiros  e isenções de impostos.

Na verdade, eu tendo a achar que, como sociedade civil e cidadanias organizadas e ativas, temos grande responsabilidade política toda esta situação. Demandamos muito a participação política, mas nos contentamos em fazer parte de Conselhos de Políticas Públicas e consultas em várias áreas, além de votar. Isto é necessário, sem dúvida, mas sem disputa na sociedade civil e nas ruas nunca teremos democracia participativa. Num certo sentido, como cidadanias, demonstramos também encurralamento. Sem dúvida, temos algumas ações emblemáticas como as mobilizações dos movimentos indígenas, das mulheres, o VAT-Vida, Além do Trabalho, o MST, as iniciativas virtuosas de agroecologia, mas não muito mais na atualidade.

Em termos mais gerais,  a questão central em minha reflexão e análise é uma certa apatia da sociedade civil e das cidadanias organizadas. Não é só o “desequilíbrio do presidencialismo de coalização” e o poder de fogo do tal mercado. A nossa certa apatia política potencializa as contradições existentes. Se algo pode desempatar e mudar, só poderá ser se nós como sociedade civil e cidadania nos engajarmos. Estamos esperando não sei o que. Difícil é, assim como é necessário. Mas não podemos simplesmente esperar que da institucionalidade surja a solução. Força transformadora e que empurra as democracias para a virtuosidade são as cidadanias, como brilhantemente defendeu Rosa de Luxemburgo, no início do século passado.  E mais, não temos modelos a copiar e tentar, pois cada realidade histórica, até cada pedaço de território, tem as suas especificidades. O transformador, de meu ponto de vista, ou tem raízes territoriais locais, lá onde vivemos, ou nunca será uma força irresistível.

Assim, concluo afirmando que depende de nossas visões, vontades e ações concretas a possibilidade de sair do encurralamento e avançar com transformações democráticas. A espera do governo de turno é certamente nada mudar, com possibilidades de até piorar. Como despertar tal vontade e ação entre nós? Tarefa de todas e todos!



[1] Fui orientador no IESAE/FGV de uma dissertação de mestrado de aluna do Maranhão, ainda na década de 1980.

domingo, 18 de maio de 2025

A Cultura que Precisamos para uma Democracia Transformadora

 Normalmente avaliamos as democracias de uma perspectiva quase exclusiva da política e do poder estatal vigente, incluindo aí o Congresso. Pessoalmente, tenho destacado a economia que aprisiona o poder estatal e o papel estratégico que pode ter a sociedade civil e as cidadanias ativas em disputa de hegemonia, como nos lembra Gramsci. Mas precisamos considerar a questão cultural cujo papel decisivo  cabe fundamentalmente à sociedade civil, pois tem a ver com solidariedade, valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, entre todas e todos e a natureza.[1]

Estou me referindo à cultura consumista, fundamental para o capitalismo. Foi o José (Pepe) Mujica que me fez pensar nisto num artigo recente, a que tive acesso agora, depois de sua morte. Sua reflexão me parece fundamental. Ele foi guerrilheiro Tupamaro quando jovem e lutou contra a ditadura militar no Uruguai,  com aquela inspiração foquista da revolução em Cuba e a instalação de um regime socialista. Pagou 12 anos de prisão por isto, grande parte trancafiado em cela solitária. Mas mudou muito e virou uma referência fundamental com seu modo simples de viver com sua companheira numa chácara nos arredores de Montevidéu. Mesmo no período que foi eleito senador e presidente do Uruguai, nunca deixou a chácara e seu fusca, com um modo de viver simples e sóbrio.

No artigo que li, Pepe Mujica afirma claramente o seguinte: “Um sistema social capitalista não se resume apenas a relações de propriedade; é também um conjunto de valores comuns à sociedade. Estes valores são mais fortes do que qualquer exército e são a principal força que mantém o capitalismo vivo hoje.” Um pouco mais abaixo contin:“ A luta é por uma sociedade autogerida, para aprendermos a ser nossos próprios chefes e a liderar nossos projetos comuns. (...) Queríamos fazer o mesmo que o capitalismo, mas com mais igualdade.” E conclui que precisamos de uma nova cultura, uma nova ética.[2]

Em outro artigo, de César G.Galero, em memória do Pepe Mujica, o autor mostra a volta ao tema da luta cultural. Segundo ele, Mujica queria dar sentido à vida, quando defendeu um modo de viver não governado pelo mercado e pelo consumismo, que é fundamental para o capitalismo. Por isto Mujica afirmava que “...só é derrotado quem desiste”. Nas suas próprias palavras, ele teria afirmado que “Quando fica evidente que erramos, simplesmente digo: errei, fiz cagada. Não devemos ficar mentindo. Porque é necessário cultivar confiança.”[3]

Tudo isto remete a nossas análises e visões aqui no Brasil, até dominantes na própria esquerda. A pergunta que devemos fazer é quanto nosso modo de ver está contaminado pelo desenvolvimento capitalista como condição de combate à desigualdade e pobreza vergonhosas que temos. Será que este caminho poderá transformar nossa economia, nossa política e nossa sociedade para uma democracia ecossocial mais potente?

Tenho postado uma série sobre o mantra do desenvolvimento. Também sobre o encurralamento da democracia, pelo sujeito “mercado” da Faria Lima, agronegócio, Petrobras e as grandes obras como se não tivéssemos alternativas. Até a política praticada pelo Ministério da Fazenda e Banco Central se rende ao mercado neste governo Lula III. Sem dúvida cria empregos precários e estimula o tal “empreendedorismo” e, em parte, distribui a renda e acesso ao consumo. Mas de que qualidade e, sobretudo, com que impacto na integridade da natureza e mudança climática? Como afirmou o Pepe Mujica, não estamos mudando as condições para um democracia transformadora, de direitos iguais na diversidade.

Reconheço que temos movimentos e redes de cidadania ativa virtuosos. Mas não são hegemônicos e nem são prioridade para o governo ou Congresso. A existência de Conselhos de representantes de organizações em volta de algumas políticas não indicam que estamos em uma democracia participativa. Além disto, temos uma onda de extrema direita com raízes  fortes e ameaçadoras, em quase todos os países democráticos. Até onde e quando? Temos que diagnosticar tudo isto como limites para uma democracia transformadora. Cabe fundamentalmente aos setores organizados da cidadania a tarefa de enfrentar o mercado e o consumismo como condições de mudança de tal quadro. Não bastam ações pontuais em situações de calamidade, mas que são, sem dúvida, necessárias. Temos que olhar e nos engajar numa estratégia livre da ditadura do mercado e seu consumismo.



[1] Demorei para voltar às minhas postagens no meu blog Sentidos e Rumos, pois sofri um acidente doméstico com fogo, que afetou minhas mãos e o braço direito. Fui bem cuidado pelo SUS daqui de Rio Bonito, o que me permitiu permanecer no sítio. O fato real é que minha capacidade de escrever no computador ficou totalmente comprometida. Agora estou voltando, mas ainda com limitações.

[2] MUJICA, José. “Minha geração cometeu um erro ingênuo’. Acesso na edição do de 15 de maio de 2025, do Combate Racismo Ambiental.

[3] GALERO, César G. (Público.es). “Mujica, el Guerrillero Sereno”. <acesso no Others News, desta semana).

terça-feira, 25 de março de 2025

O “Centrão” e os Impasses da Democracia no Brasil

 

Que classes ou forças sociais compõem o Centrão? Por que ele é tão presente e, num certo sentido, fundamental para analisar governos e políticas governamentais no Brasil? A resposta é um desafio. No entanto, há um certo acordo tanto na esquerda como na direita do espectro político brasileiro que, sem o Centrão, a própria governabilidade é inviável. Considerar como uma amálgama de classes médias é se esquivar e evitar uma análise mais acurada. Sem dúvida existe uma forte presença de “classes médias” na sua múltipla composição, mas não são elas que definem a agenda do ator político Centrão que temos.

O Centrão surgiu no processo Constituinte dos anos 1980. Na época, agrupou grande parte de forças civis que compuseram a bancada da ARENA, na ditadura militar, como um suporte civil no parlamento para a ditadura e em oposição ao MDB, que agrupou a oposição tipo aceitável e palatável para o regime ditatorial, mas sempre sob permanente ameaça de exclusão/cassação e até repressão das vozes mais dissidentes e críticas. O fato fundamental é que a invenção do Centrão contaminou e encurralou a Constituinte e o processo de redemocratização. O Sarney, primeiro presidente na redemocratização, foi presidente da ARENA e vice do hábil Tancredo para viabilizar o processo de eleição presidencial no “Colégio Eleitoral” – o Congresso eleitor da ditadura. Acho que há uma quase unanimidade que a nova Constituição conseguiu dar um rumo democrático ao país, mas veio viciada por um vírus que não mata, mas limita o poder transformador de uma democracia minimamente voltada ao bem comum coletivo.

Mas o que dá vida e durabilidade ao Centrão nestes mais de 30 anos de democracia encurralada que temos? Claro que forças políticas tem base em classes na sociedade para poder existir. Mas aqui estamos diante de amálgama complexo, pois agrupa frações de classe dominante, como agronegócio, pequenos empresários e os tais empreendedores, interesses que se escondem atrás de igrejas que tem raízes em amplos setores populares deixados ao léu, com múltiplos grupos das sempre complexas classes médias, trabalhadores assalariados com cargos mais bem remunerados e profissionais liberais. Um conjunto fisiológico mais do que força política com programa, mas não necessariamente autoritário. É um montão de partidos, com nomes que vão mudando e novos surgindo. O Centrão tende a ser algo como o ditado “já que a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Por isto é volátil e, sobretudo oportunista e fisiológico. Pode apoiar a direita raivosa se sentir que é não devidamente atendido pelo governo mais à esquerda. Assim como pode apoiar a esquerda com agenda mínima de promoção de direitos iguais democráticos – o conjunto de sindicatos, movimentos sociais organizados, intelectuais ativistas, ONGs, redes e fóruns sociais, grupos discriminados ou considerados intoleráveis por conservadores. Mas nunca vai deixar de lado os seus interesses corporativos de Centrão. Definitivamente, a marca registrada do Centrão – como expressão política no Brasil – é mais oportunista e fisiológica do que outra característica, não um programa ou projeto de pais. Politicamente, as forças políticas do Centrão ficam satisfeitas se generosamente contempladas pelo orçamento – emendas parlamentares ou políticas públicas direcionadas a seus redutos eleitorais.

Importa esclarecer que expressões políticas de centro sempre podem e existem em qualquer democracia, sobretudo de forças entre os polos esquerda e direita. Num certo sentido é o nosso PSDB e o que o MDB se tornou. Há, sim outras forças de centro, mas menos robustas, na profusão de partidos que temos. Também são um pêndulo, para um lado ou outro, que pode ser decisivo em muitas conjunturas políticas, como por sinal foi na última eleição do Lula presidente. Mas, do que vejo como analista, não existe algo tão influente e decisivo na esfera política como o bolo do Centrão, nestes anoss do Brasil democrático contemporâneo. Aqui ninguém governa sem o Centrãoque precisa ser atendido em seus interesses paroquiais. Entre nós é um mosaico e não um acordo programático, por definição um tanto volátil, mas decisivo.

O fato político incontornável é a proeminência do Centrão no Congresso do Brasil. Hoje é o fator de equilíbrio. Ninguém consegue governar sem apoio majoritário do complexo Centrão, seja Bolsonaro da extrema direita ou o Lula do PT e aliança de esquerda em torno a ele. As agendas e reformas passam pelo voto do Centrão no Congresso, que sempre exige concessões ou compensações. Hoje as emendas parlamentares cobram 50 bilhões para atender seus nichos eleitorais, sem consideração nenhuma aos programas e políticas governamentais. Parece e é uma certa herança do “coronelismo” vigente na Primeira República, onde territórios/municípios pequenos tem “donos”, como verdadeiros redutos eleitorais.

Esta realidade nos obriga a pensar o chão da sociedade, os territórios em que vivemos. As heterogêneas expressões partidárias do Centrão tem demonstrado capacidade em obter apoio local, como mostraram as últimas eleições municipais de outubro de 2024, em todos os mais de cinco mil municípios brasileiros. Isto coloca um desafio tremendo para o que vai acontecer nas eleições em 2026, tanto presidencial como de governadores, de deputados e senadores do Congresso Nacional e membros das Assembleias Legislativas, em todos os Estados da Federação, independentemente de tamanho territorial ou número de eleitores. Nada indica uma possível mudança significativa. Provavelmente a disputa será entre os extremos,  direita extrema e coalizão de esquerda. Mas o Centrão tem tudo para continuar como o pêndulo político, o que ele é na prática, por que está bem enraizado nos territórios de todo país.

Não creio que forças democráticas de esquerda tentem radicalizar minimamente a agenda em busca de voto mais comprometido com direitos iguais e mudanças. Aliás, as eleições  apontam para o repeteco do que foi a eleição de 2022, onde os votos deram a vitória a Lula, mas  por pequena margem,  junto com um Centrão ampliado no Congresso. Objetivamente, como cidadanias, estamos paralisados diante de um quadro político assim. Aliás, durante este Governo Lula III a maior apatia e a espera paralisa vozes ativas da cidadania, com exceção de indígenas, MST e algo do MTST. Creio que acontecem muitas coisas no chão dos múltiplos territórios que nos compõem como país, mas pouco, muito pouco, chega até o debate público.

Enfim, parece simples tratar o Centrão, mas politicamente não é. Estamos diante de um osso duro de roer e enfrentar. Não se governa sem ele. Até quando? E temos no horizonte a expansão da extrema direita aqui e pelo mundo, como um vírus ainda sem vacina, destruindo as instituições e as políticas democráticas, o sentido do comum, do convívio social, do respeito da diversidade e do cuidado tanto de gente como da natureza. Uma ameaça e tanto! Felizmente, a esperança é a última que morre. Mas o que e como agir é uma busca e aprendizado coletivo. O certo é que tudo que foi feito pode também ser desfeito...

quarta-feira, 5 de março de 2025

A Cultura, em suas diversas expressões, é fundamental na disputa de hegemonia política


Como analistas e ativistas políticos, de diversas áreas, priorizamos análises de situações e relações de forças mais visíveis, em situações históricas dadas, necessárias, sem dúvidas, mas insuficiente para a disputa de hegemonia. Às vezes, nosso critério se centra basicamente na economia e no Estado, onde as relações de forças de poder são mais evidentes, pois se expõem na defesa de interesses concretos[1]. Claro que temos tudo o que acontece na comunicação e que sabemos ser um campo estratégico na disputa política, porque muito determinada pelas relações econômicas e políticas, ou seja Estado e economia, mas ela tenta não se assumir como tal, sempre afirmando seu compromisso com a “verdade” e nunca como visão e versão dos fatos, eles próprios escolhidos criteriosamente sobre o que se passa, segundo interesses políticos.

O  que pretendo destacar aqui é que temos pouca capacidade de ver e prever o que se passa no chão da sociedade civil como um todo,  nos territórios em que vivemos como podemos, uns em melhores condições de vida que outros, organizados em grupos e movimentos sociais ou não. Mas um dia tais situações de vida podem emergir e se insurgir como novas forças, se exprimindo e impactando de formas variadas e reconfigurando  as relações políticas do momento histórico, de algum modo. O fato é que existem processos históricos longos, que fermentam e emergem de forma imprevista, pois  acontecem quando a gente não espera. O máximo que conseguimos é admitir que, apesar de tudo, um dia algo explode, por assim dizer. Aí, sim, entram no foco das nossas análises de ativistas.

Este é o caso da cultura e seu papel na sociedade. São expressões culturais muito diversas e complexas, movimentos de longo impacto, mas datados e situados.[2] E, a seu modo, jogam um papel fundamental nas situações e relações de forças, mas para além das expressões políticas deste ou daquele momento da sociedade. São processos mais duradouros, mas fundamentais, pois por definição tratam de sentidos de viver em coletividade: como vivemos, como nos vemos, como nos sentimos, como nos expressamos, como somos percebidos, o que carregamos de herança cultural, por que dramas históricos passamos, como nossas identidades coletivas se forjaram, por que das exclusões, discriminações e violências no seio da sociedade, qual o lugar das religiosidades, qual o cimento do comum vivido, como tudo isto se expressa ou faz parte de movimentos de longo alcance como a construção de uma identidade nacional, por exemplo? Enfim, são muitas perguntas que inspiram as expressões culturais de todos os tipos.  Isto não quer dizer que sejam sempre virtuosas. O ódio de uns sobre outros, a não aceitação da diversidade, o desprezo por quem não comunga do mesmo que defendemos, o extermínio, a busca do próprio interesse individual acima de tudo, a ideia de nação e projeto, enfim, uma complexidade enorme de questões estão constantemente sendo elaboradas e expressas nos diversos campos da cultura. Em si mesmo a cultura é um enorme desafio para a análise histórica e política consequente, influindo mais do que aceitamos, nas disputas políticas de hegemonia. Mas o fato é que os processos culturais existem e se expressam de muitos modos.

Volta ao ponto de partida desta minha análise: a cultura na disputa de hegemonia política. Não se trata das formas em termos  estritos, apesar de ser importante  como as diversas formas  constroem e expressam  uma Ideia de projeto de sociedade e, ao seu modo, dialogo e disputa impactando o conjunto, onde pode ser entendida ou rejeitada. Isto é disputa de sentido e rumo. Ela não é conjuntural, mesmo se expressando e influindo nas conjunturas e sendo por elas, de algum modo, determinadas. Como processo, a cultura se expressa em momentos históricos longos que é necessário sempre ter presente. Por mais difícil e complexo que seja, precisamos ver até como as expressões culturais, nas diversas formas, carregam focos, que a seu modo interpretam e instigam os processos sociais e históricos. Assim elas se tornam movimentos culturais datados e situados. Mas, sobretudo, o que imprta politicamente dizem da sociedade em questão. O que não é possível negar é seu impacto no modo de pensar a vida e o mundo. Portanto, como um substrato de referência do modo como somos vistos e nos vemos ao longo do nosso tempo de vida humana muito específico e curto.

Estamos em um momento de Carnaval, algo de origem religiosa, especialmente as escolas de samba, mas que se transformou numa potente expressão cultural a partir das periferias das nossas grandes cidade. Ele se renova, ano a ano, nas questões abordadas (enredo) e nos modos de expressar como canto, samba, fantasias e carros alegóricos.

Entre nós, no Brasil,  quase tudo para, dado o tamanho da celebração do Carnaval. São milhões de pessoas alegremente pulando nas ruas e outras tantas olhando e se contagiando pelo clima de festa. Sempre há as e os muitos que ficam distantes, não gostam, sentem seu cotidiano alterado e preferem se refugiar. Mas o Carnaval como cultura carregada de visões, leituras da realidade e mensagens, umas formas de pular e dançar mais que outras, impactam nos contraditórios processos que nos constituem como sociedade viva. Como isto se dá não é no ato ou no momento em que nossas vidas se moldam? Que agendas estão em disputa sobre a herança que carregamos, o que está sendo disputado hoje e que sinais apontam para o amanhã?

Bem, precisa ficar bem claro que não sou nenhum crítico cultural. O meu foco assumido é de um analista e ativista de conjunturas políticas. Eu me pauto, como muitas e muitos, mas longe de ser uma maioria, pela construção de democracia ecossocial transformadora para a conquista de direitos iguais na diversidade do que somos, aqui e para os diferentes territórios em que vivemos no Planeta Terra, bem comum a todas e todos. Mantenho um blog para contribuir na disputa por tal direção, mas sei que estamos longe, muito longe, de ter hegemonia política e nem dá para garantir quando isto pode ser conquistado , dada a correlação de forças num mundão dominado por um capitalismo globalizado, de exclusões e guerras e genocídios, lutas geopolíticas e ameaças de mudança climática devastadora de todas as formas de vida e da integridade dos ecológicos do Planeta Terra. Mas, também, preciso registrar poderosas resistências a isto tudo, tendo vibrantes culturas como forças construtivas.

Agora voltando para o nosso Brasilzão – ou Pindorama, como os Povos Originários nos lembram por que esquecemos ou não queremos pensar –, estamos vivendo aquele  momento em que o Carnaval prepondera, como poderosa festa popular. Ao mesmo tempo, neste ano particular, aconteceu o reconhecimento mundial da potência da nossa produção cultural através do cinema. Não vou me ater aos que não gostam do Carnaval ou aqueles que não valorizam o que o cinema em particular contribui para a cultura neste país em que vivemos. Vou destacar alguns pontos como agendas que precisamos pensar politicamente.

Talvez um ponto que pode ser consensual, aos menos para quem luta por democracias mais virtuosas, seja, em primeiro lugar, a potência da diversidade intrínseca do que somos como povo, ou melhor, do que queremos ser e temos o direito de lutar por isto. A diversidade é afirmada e celebrada como direito de ser parte e não ser excluída ou menosprezada, mas recorrendo a formas culturais festivas de se afirmar no Carnaval. Isto tanto acontece na grandiosidade que assumiram as escolas de samba e seus desfiles, mas também nas ruas tomadas por foliões. Considero as escolas de samba afirmando e expressando uma agenda de identidade social, cultural e religiosa da enorme população negra que constitui a nossa sociedade. Afinal, apesar de serem a maioria na configuração do que somos, as e os cidadãos negros e lutam por ser reconhecidos como tal e de respeito ao que são, sua religiosidade, suas expressões culturais, sem racismos e violências excludentes. Neste sentido, queiramos ou não, constituem sujeitos políticos lutando por direitos iguais. Mais, afirmo que são parte da emergência destes sujeitos na política e exigindo reconhecimento. Como trazer e avaliar  isto? Em termos de análise política ainda temos muito caminho a percorrer.

E o cinema do Brasil, outro acontecimento de impacto no momento, como avaliamos politicamente seu impacto. O filme Ainda Estou Aqui dirigido por Walter Salles e uma fabulosa equipe de atores e tudo que exige a produção de um filme de qualidade. De novo, não é a minha área. Estou aqui destacando o filme com um foco de analista e ativista político. Nestes dias, o filme levou a estatueta de ouro da Academia do Oscar do Cinema, localizada na clamorosa e rica Los Angeles, nos EUA. O reconhecimento do filme em questão se deu em muitos outros festivais e amostras de cinema pelo mundo, desde que foi lançado apenas a alguns meses. Aqui no Brasil está também sendo visto por muita gente e, provavelmente, vai ser visto ainda por muitas mais pessoas. O que se destaca são a qualidade, sem dúvida, mas sobretudo para analistas políticos como eu, a visão e mensagem sobre um período tenebroso de ditadura militar, com perseguição, prisão e morte de muitos pais, mães, filhos e filhas, jovens...

 Não cabe aqui entrar em detalhes e porque foi esta a história particular representada, pois um filme se faz montando uma versão da história, que pode ser dura mas revestida de vida e emoção, como só as expressões culturais são capazes de fazer pensar e reescrever a história vivida no cotidiano de um povo. Esta é a força que só a cultura tem, pois sabe falar para muita gente com linguagem artística que impacta.

O certo é que o cinema produzido no Brasil tem um acervo e certa tradição no esforço de não esquecer o que foi esquecido de nós mesmos ou que os poderosos não querem que seja lembrado. Tivemos a recente perda do Cacá Diegues, um outro diretor que trilhou tal caminho na produção de filmes sobre o Brasil. Mas podemos incluir muitos outros aqui.

Nisto que defino como cultura na disputa de hegemonia, não podemos esquecer da potente produção cultural musical, literária, teatral, literatura de cordel, as festas populares como São João, os grupos culturais de periferia e a potência de seus bailes e festivais, entre tantos outros movimentos culturais. As identidades coletivas, em muitas situações e momentos, começam com poderosos movimentos culturais. [3] As frações e as classes dominantes também tem suas expressões culturais, muitas vezes autodefinidas como eruditas, que precisam ser levadas em conta, pois ao seu modo, ignoram ou desprezam a cultura popular.[4]

Termino afirmando que avaliar politicamente o fazer cultural, em suas várias formas e expressões ao longo do tempo,  contribui de modo estratégico para disputar modos de se ver e ser visto, e, por isto, modos de buscar inspiração na luta democrática transformadora.

 



[1] Mas, num certo sentido, também este aparecer da ”economia” à luz do dia tem estratégias de dissimulação mais ou menos eficazes. Quem é  o tal “mercado”, por exemplo? Todas e todos estamos no mercado como relação social, mas não nos consideramos como mercado, mesmo os autônomos  ou entregadores, na maior parte trabalhando em condições precários e de longas jornadas. O incrível que sejam vistos e se considerem como empreendedores individuais. Mas muito poucos, talvez algo em torno de 1% da população, constituem os poderosos donos de capital investido em economia concreta (fábricas, agronegócio, comércio, transporte...)ou aplicado especulativamente em bolas de valores. Este minúsculo percentual da população, no mundo capitalista que vivemos, conforma os que se escondem como “mercado” enquanto força política, capaz de impor a sua agenda sobre todo o Estado, com profundos impactos na vida de todos, não importa em que condições e qualidade de vida tenham. Vivemos isto aqui no Brasil. Mas, talvez, o mais evidente na atualidade seja o que se passa sob o governo Trump, nos EUA.

[2]  Estou retomando  a leitura de um livro que li há mais de uns 40 anos atrás, quando era professor, que está me fazendo repensar muita coisa nesta etapa de minha vida. Trata-se de um livro feito a partir das notas nos cadernos de cárcere de Antonio Gramsci, que me fez, durante o doutorado, descobrir a importância da longa disputa de hegemonia política nas análises de conjuntura. O livro se centra na questão do papel das expressões culturais. Trata-se de: Gramsci, Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 1968.

[3] Não vê e avalia quem não quer, mas os bailões de jovens nas periferias e favelas das nossas metrópoles, são carregadas de identidades em construção e afirmação de direito de ser cidadania apesar de sofrer muitas violências, precariedades e exclusões. Li recentemente um número especial da Revista  Nueva Sociedade, em espanhol, sobre os movimentos culturais na América Latina que se expressam pela música . Os artigos publicados tentam analisar suas conexões com conjunturas políticas e o aparecimento de novos movimentos. São vários artigos sobre diferentes movimentos. Pelo que significou para a formação do potente movimento feminista na Argentina, destaco a análise de Mercedes Liska, doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e etno-musicóloga.  LISKA, Mercedes. “Si no puedo perrear, no es mi revolucion? Música, sexualización de la cultura y feminismo”. Nueva Sociedad: Buenos Aires, nº e14, Noviembre-Diciembre 2024.

[4] Lembro aqui os movimentos de Cultura e Educação Popular que surgiram no Brasil no período prévio à ditadura imposta pelos militares. Aliás, é do período que Paulo Freire começou com a sua perspectiva de educação como prática de liberdade e emancipação social e política. Até tivemos uma potente Teologia da Libertação, no meio católico e protestante. Tanto educação popular como as expressões progressistas  no cristianismo contribuíram muito na emergência de muitos movimentos sociais no Brasil, que impactaram no final dos anos 1970 e especialmente na redemocratização do Brasil na década de 1980.