No imediato, temos que derrotar a ameaça fascista. Mas que horizonte vislumbramos e sonhamos ser possível, finalmente, começar a construir no e para o Brasil? Sem um ideário democrático, mobilizador e transformador, para um outro país, corremos o risco de nos emaranhar em soluções conciliatórias que simplesmente evitem o pior, sem apontar saídas estratégicas para enfrentar a nossa herança capitalista colonial de exclusões, violências, desigualdades e destruições... e recorrente autoritarismo com militarização! Precisamos mudar para valer, sentir que podemos voltar a sonhar com outro modo de ser e existir como povo, por mais difícil que seja! E isto supõe visão e sinalização de estratégica de transformação, mas com método de democracia viva e intensamente praticada. Neste quadro ganhar a eleição não é o fim, mas apenas uma importante condição inicial, conjuntural e decisiva a seu modo.
O caminho é difícil e longo, sem sombra de dúvidas. Mas estamos buscando? Se novamente, como povo, vivemos uma situação de ameaça autoritária e fascista é porque erramos ou as forças políticas que elegemos foram pouco ousados na reconstrução democrática pós ditadura militar. Apesar das intensas mobilizações da cidadania ativa, no então, acabamos experimentando um processo democrático de baixa intensidade e de capacidade transformadora muito limitada. Aí veio o golpe e ficamos encurralados, de forma brutal até. Agora, nesta conjuntura do ano de 2022, quais são os sinais que nos indicam estarmos tentando apontar as mudanças estratégicas democráticas que necessitamos, para superar e afastar de vez a recorrente ameaça fascista?
Certamente, refazer o desconstruído nos últimos anos será necessário de imediato, mas está longe de ser suficiente e, sobretudo, ser uma proposta agregadora e transformadora para um outro amanhã. Afinal, o neoliberalismo está mais estruturalmente implantado em nosso seio e ele continua vivo em sua capacidade destrutiva e excludente. Parece algo fora de lugar falar disto nesta difícil conjuntura eleitoral, ainda um tanto indefinida. Precisamos de uma grande coalizão de interesses e forças diante das ameaças, sem dúvida. No entanto, não podemos perder de vista o centro do drama coletivo, um espécie de câncer que precisa ser extirpado o quanto antes: os sofrimentos, as angústias e a falta de horizonte das “maiorias condenadas às periferias”, urbanas e rurais, onde predominam destruições, exclusões, desigualdades, descriminações, violências, fome e morte.
Temos que nos perguntar: ainda será possível superar a barbárie? Sim! Não tenho dúvidas se apostarmos na capacidade de cidadanias em ação, com governos abertos e acolhedores de sua participação forte e decisiva, e se os mercados/economia forem submetidos ao escrutínio democrático ecossocial do conjunto da sociedade. Simples e complexo assim! Devemos visar impor limites e buscar transformar a lógica de um sistema triturador de gente e destruidor da natureza, apontando o futuro para as novas gerações, que, sabemos, querem se engajar e fazer a sua indispensável parte, com seus sonhos e desejos, provavelmente muito melhor que nós, se ajudarmos a construir as condições desde hoje para tanto. Não podemos nos satisfazer com uma estratégia democrática de distribuição de riqueza social pois isto não basta – além de ser simplesmente ação emergencial – pois nada muda, o problema é da lógica estrutural do sistema. O modo de produção de tal riqueza concentrada de forma escandalosa e profundamente injusta tem por mote a exploração natural e social, com destruição, concentração e desigualdade e tudo mais. Enfim, vai acabar com a humanidade e a própria integridade do planeta Terra.
Sei que minha definição de tal agenda como “transformação ecossocial democrática” pode não ser a melhor, por parecer muito abstrata e teórica para a maioria. Definitivamente, não é mote de campanha! Mas pode ser a linha estruturadora de um programa de transição inadiável, isto pode! Além disto, é apontando uma estratégia de transição para um futuro mais humano e sustentável que será possível trazer ao centro do processo de transformação a potências das cidadanias ativas em sua diversidade. Por isto, não custa esclarecer o sentido que carrega, o muito que pode significar para nos estimular e mobilizar o melhor de nossas capacidades, agregando a diversidade de cidadanias em ação. O que se faz necessário é ousar, buscar as melhores definições no diálogo aberto e construtivo no seio da sociedade civil, particularmente com a diversidade de sujeitos coletivos de cidadania ativa já organizados e existentes, engajando-nos num grande ateliê coletivo para plantar sementes de transformação democrática. O que importa não é a definição em si, mas o sentido agregador como imaginário mobilizador e o caminho a construir que aponta.
Temos urgências visíveis na multifacetada questão social de exclusões, violência e assassinatos, fome e miséria, desigualdade social sem par, com racismo, machismo e patriarcalismo estruturais. Chega! Não podemos continuar assim, pois isto é um problema para todas e todos, não importa idade, sexo, cor da pele e lugar na sociedade atualmente. Precisamos tirar de nosso imaginário o que nos impuserem: nosso drama coletivo não é por falta de desenvolvimento capitalista ou eficiência econômica na sua gestão. Aliás, todas estas mazelas são devidas à centralidade e aos excessos de economia capitalista e dos mercados, social e ecologicamente predatórios, num país de cinco séculos como colônia de exploração e dependente do sistema mundial capitalista. Precisamos, urgentemente, limitar tal economia, sua lógica, estrutura e processo, e estrategicamente visar a sua transformação. O que precisa ser nossa direção e caminho a construir é a busca do maior bem coletivo possível, sempre. Claro, isto só será possível se acreditarmos que existem, sim, alternativas estratégicas à dependência estrutural dos humores e apetites de acumulação de riquezas dos donos de capital, terras, gado e de gente, como é agora. Mas isto não basta de jeito nenhum, pois este sistema se fez e continua assim deste a colonização: ele destrói gente – as maiorias – e destrói a base natural da vida – o imenso território que nos cabe cuidar como povo. Aliás, o nome Brasil nos denuncia perante o mundo, pois temos uma identidade de commodity – pau brasil – que tem por trás desmatamento... Alguém duvida que o avanço do desmatamento na Amazônia e Cerrado seja outra coisa? O que chamamos de “projeto de desenvolvimento” é destruição ecológica e social, hoje avançado assustadoramente com sua sina conquistadora e exploradora, para extração de riquezas naturais, pelas queimadas, garimpo, mineração e agronegócio, ameaças á biodiversidade, poluição das águas, mercantilização total, tudo em escala que assusta o mundo inteiro.
Toda esta reflexão se faz necessária pois ainda pululam, na própria esquerda, ideias e propostas de um “outro desenvolvimento”, sustentável e mais humano, quando o problema é o próprio desenvolvimento, que tem no centro , como seu motor, o capital privado em busca de crescimento e sua valorização, sem limites ou com a menor tributação e regulação social possível. Do desenvolvimento que temos arraigado como sonho e projeto desejável para o país, em nossas mentes e corações, desde os tempos da CEPAL, por diferentes forças políticas, com pequenas nuances, não há outros futuros possíveis! Estamos colonizados por um projeto que nos faz país capitalista dependente dos polos centrais capitalistas, desigualdades sociais, pobreza e destruição estruturais, como se não fosse possível pensar e viabilizar alternativas. Pensar que transformações sejam necessárias e possíveis é ser subversivo? Bem, transformador é, mas em busca do melhor possível para todos, mesmo com desobediência civil, a grande estratégia transformadora de sociedades, na verdade. Está provado que não é o Estado em si que tem poder de vir a ser o grande transformador, assim como o mercado não é. Pelo contrário, é a cidadania ativa, em sua diversidade, que deve controlar o Estado e o mercado. Não se trata de eliminá-los, mas sim de submetê-los ao escrutínio da participação social, cultural e política a mais ampla possível, nas diferentes conjunturas. Afinal, é de um processo de transformação permanente democrático, ou seja, de construção democrática, que se trata. O que sim pode nos diferenciar é a aposta numa estratégia processual de transformação, que só democracias participativas podem desenvolver, lideradas pela cidadania e secundadas – não lideradas – pelo poder estatal. Nâo se trata de constituir governos democráticos só “menos bárbaros”, para impor uma agenda social e conseguir certa distribuição da riqueza socialmente produzida. A lógica do capitalismo é e sempre foi crescer para acumular a todo custo. Ou seja, nosso problema é, sim, distribuir e compartir a riqueza que produzirmos, mas só conseguiremos isto mudando o modo de produzir, com menos capitalismo privatizante e mais centralidade e força dos processos produtores e gestores de comuns compartilhados entre todas e todos. Agronegócio e extrativismo, em que nos baseamos hoje, são destruição e morte. Pode até ter lugar complementar numa economia a serviço da democracia. Mas não podem ser o seu motor, como são hoje, pois o motor é um fim em si mesmo, ignorando a sociedade como um todo e seus territórios de cidadania.
Para começar de forma promissora e ganhar as eleições que se avizinham nosso mote deveria incorporar a ideias do cuidado mútuo, convivência e compartilhamento entre todas e todos. As diferenças e a diversidade são forças agregadoras e transformadoras de democracias. Não podem ser motivo de ódio, desagregação e morte, com ameaças autoritárias e fascistas. Estamos diante de uma necessidade de mudança estrutural de concepções e práticas nas relações com a natureza, que nos garante generosamente os bens materiais necessários, e de relações entre nós mesmos, na complexidade que isto implica para uma sociedade de múltiplas formas de ser e viver cidadania de direitos iguais para todas e todo, com diversidade e em territórios fantásticos pelas possibilidades que nos são dadas, como país.
A possibilidade de mudança ecossocial democrática existe, sim, mas até quando? A destruição avança sem tréguas e a cada dia perdemos potência coletiva. Não dá mais para seguir assim! A destruição e a exclusão tem que pararem e serem revertidas! É agora, pois já vamos tarde! A conjuntural eleitoral é como uma panela de pressão, as ideias ficam em ebulição e o momento é curto para mudar a qualidade do que vamos a ter como “manjar democrático”. Mesmo curto e rápido, é aí que se geram horizontes possíveis de transformação a partir do imediato, sem mais escusas para quem acredita no potencial de democracias como modo de transformação. Vamos nesta... mesmo se for preciso tapar o nariz!
“O Desafio da Transformação Ecossocial Democrática”
ResponderExcluirDio mio, che bello!
Quero fazer um comentário despretensioso, Cândido. Eu já tinha ficado encantado, emocionado, e energizado com a leitura dos primeiros escritos do lançamento e anúncio do Blog. Depois, com “Cidadania Ativa e Democracia” fiquei embevecido com a vontade de continuar na luta por um outro Brasil. Agora, com “O Desafio da Transformação Ecossocial Democrática” vejo um Brasil real, material, escrito de forma inteiramente consistente com elementos estéticos – arte literária da escrita – e elementos científicos – categorias dialéticas de análise. O Brasil escrito na acepção de Ítalo Calvino – uma análise de conjuntura do Brasil cotidiano, com a palavra escrita desvendando as forças das relações infinitas em luta no espaço e no tempo determinado – um desmascaramento de um governo e de um Estado destrambelhados. Ao contrário, o Brasil não escrito, só falado e encenado, via de regra, é falso, fantasmagorizado.
Seu escrito, Cândido, é esclarecedor, incentivador, um convite à luta, ao ativismo para a resistência, para uma vida melhor, para uma sociedade democrática ativa – viva. Quando você se refere ao nome “Brasil – pau-brasil”, que tem por trás o sentido do desmatamento, me fez lembrar de outra palavra de signo histórico, cuja etimologia vem da língua dos nativos tupis.
- Capira: ka´a= árvore + pir: que corta – cortador de mato;
- Caipira: ka´i= macaco + pira = pele – pele de macaco;
- Caipora: ka´a= árvore + pora = gente – habitante do mato.
Assim, em português do Brasil – pau-Brasil – ficou generalizado no signo “caipira” - morador do mato, do sertão, da roça, grosso, analfabeto, ignorante, mal vestido, cortador e destruidor da floresta, das queimadas, do garimpo ilegal, sempre a serviço e aos interesses dos latifundiários do agronegócio, protegidos sob a tutela do governo e do estado. Isso é aterrorizador.
Cândido, continue escrevendo que eu continuo lendo, reeelendo.
Valeu a reflexão. Esse momento tão tenso e tão contraditório nos deixa desesperancados.E preciso trazer pontos de reflexão para nós alinharmos. E tu fazes isso.muito bem.Obrigada
ResponderExcluirCândido tu achas que dá para ter esperança de uma participação cidadã efetiva num governo petista? Lula terá condições de fazer alguma guinada mais voltada para o social? Nem falo de esquerda!
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