Meu objetivo, ao me debruçar sobre as diferentes conjunturas,
é participar com o que posso fazer como analista e ativista: desvendar as
potencialidades e as contradições das lutas com protagonismo da cidadania, no
chão da sociedade civil. Vejo a ação cidadã como força democrática transformadora
ecossocial de relações, estruturas e processos, apontando novos horizontes e
caminhos a percorrer. Uma tal prioridade analítica não implica em ignorar o
mercado/economia, nem o poder/Estado. Pelo contrário, trata-se de olhar
prioritariamente a partir das ações da cidadania ou a cidadania em ação, em
cada momento, como força instituinte e constituinte da democracia, dentro dos
limites econômicos, políticos e culturais existentes. O que importa, sim, é reconhecer como o domínio
real do mercado combinado com o poder estatal determina o nosso viver no dia a dia,
em multiplicidade de formas, e contamina os modos de ver e pensar, os nossos valores
e crenças, nossos desejos e sonhos, até nosso agir como cidadania. As buscas e
as possibilidades de emancipação social e política são a grande questão a ser
avaliada nas ações da cidadania.
Por mais frágeis que sejam, as ações da cidadania se expressam
sempre como formas coletivas de participação social e política, de luta enfim,
carregadas de imaginários mobilizadores, para a promoção e defesa de seus direitos.
Isto pode ou não ser reconhecido pelo
poder estatal, menos ainda pelo mercado. Aliás, ser reconhecida como identidade
e voz coletiva legítima é a primeira e fundamental conquista como forma de
expressão social e política. Um processo assim se dá de múltiplas formas,
devido a diversidade de modos de ser, viver e pensar, em cada momento
histórico. Ou seja, sempre precisamos estar atentos à diversidade de identidades
de vozes. É isto se dá em diferentes situações e processos concretos. Por isto,
prefiro pesquisar, analisar e debater conjunturas sempre buscando as “cidadanias
em ação”, sem ignorar a potência de sua diversidade e das coalizões cidadãs que
se formam a partir daí.
Sei que é questionável, mas adoto um modo de ver e analisar a
diversidade das cidadanias para romper com o domínio da conceituação abstrata, política
e jurídica, contida na definição legal de cada país, a partir do poder estatal.
Ter cidadania é, acima de tudo, se sentir ser humano titular de direitos iguais
de liberdade e participação para lutar coletivamente por eles. Em termos
teóricos e metodológicos, classifico os direitos em três grupos: direitos civis
e políticos, direitos aos comuns, direitos econômicos, sociais e culturais.
Direito que não é igual para todas e todos é privilégio e forma de dominação, não
é direito. Por isto, a luta por direitos de cidadania é uma luta que nunca
acaba, uma potência transformadora, apesar de poder celebrar conquistas
simbólicas, sempre provisórias, em momentos históricos dados. Assim como
direitos podem ser perdidos e reduzidos, direitos podem ser ganhos e ampliados.
Por que tudo isto? Primeiro, democracia nunca é algo acabado,
um modo definitivo de viver coletivamente, mas uma condição e um processo –
extremamente variável de uma situação a outra e seus contextos históricos
específicos – em que a luta social por mais direitos é sempre possível e
legítima. Mais, de força potencialmente destrutiva, a luta política vira força
viva de construção democrática e transformação ecossocial. A intensidade da
participação cidadã é que qualifica a democracia e esta se revela no modo de
agir do Estado, nos limites e regulações sobre a economia. Mas, ao mesmo tempo,
a democracia brota e se alimenta no seio da sociedade civil, não no Estado e
nem no mercado.
Isto é extremamente complexo na prática. Pois se a
participação cidadã é a força qualificadora e transformadora, o poder estatal e
as forças ocultas do mercado/economia podem e buscam de fato limitar e
deslegitimar as cidadanias e suas lutas. Nisto se configuram as conjunturas.
Não pude evitar toda esta minha reflexão pois, num certo
sentido, o voto periódico da cidadania é uma conquista e seu exercício é
fundamental, escolhendo e assim delegando poderes para governantes e
representantes, validando uns e destituindo outros. O poder votar é uma espécie
de consenso sobre o mínimo para ser ou não ser uma democracia em termos
políticos. Sem dúvida poder votar é uma qualidade de participação política
cidadã, sine qua non, que distingue
regimes políticos democráticos de outros. Mas é uma participação frágil, que
delega poderes aos eleitos através de seus partidos, que facilmente podem dar
as costas para a cidadania no exercício de seu mandato. Por mais necessárias
que sejam, as eleições periódicas não bastam para dar intensidade e capacidade
transformadora à “situação” democrática conquistada.
Voltando ao que mais me preocupa na conjuntura eleitoral em
que nosso voto cidadão é chamado a decidir, em outubro deste ano, sobre a
difícil situação em que estamos emaranhados no Brasil. Sei que vale o voto
posto na urna eletrônica, mesmo se as forças que sustentam a monstruosidade do
governo e a cumplicidade do Congresso queiram questionar de antemão o seu
resultado. Mas independentemente desta ameaça, o pior é a coalizão democrática
ampla em torno a Lula e o PT não ganhar. Este é um fato político que só a
cidadania participando é que poderá garantir a vitória.
Diante de tal quadro é que me volto, em particular, para as
cidadania ativas que demandam mais direitos ecossociais e a reversão das
políticas pró mercado e destruidoras de conquistas de direitos, ocorrida com os
governos pós destituição de Dilma Rousseff, pelo golpe político via Congresso
Nacional. Em síntese, a questão é se sentir legitimado e decisivo em participar,
desde aqui e agora, no processo eleitoral, para além do enquadramento
partidário e suas propostas e assim poder continuar lutando, com mais força e
impacto, como cidadanias ativas em sua diversidade na conformação do governo e
do Congresso. Mas será que isto vai acontecer com a força necessária e será
reconhecido? O tempo é curto, mas temos que acreditar e sonhar que, sim, é
possível. Cidadanias em outros países da América Latina demonstraram recentemente
e nós também, num passado não tão distante.
O momento exige a forte presença das diversas cidadanias nas
ruas e nos debates, assim como nas urnas
em outubro. A decisão do amanhã da democracia está em nossas mãos.
Muito bom teu texto. Estamos precisando de reflexões lúcidas Momento difícil.
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