Nesta conjuntura eleitoral, temos que enfrentar, de forma incontornável e central, as emergências e urgências ecossociais. Elas não são de agora, pois estamos diante de uma questão intrínseca à nossa formação como “Brasil commodity”, devido à conquista, à colonização e à nossa inserção dependente no mundo eurocêntrico. Somos até hoje, como projeto internalizado pelas classes dominantes, basicamente uma fonte estratégica de matérias primas ao capitalismo e sua insaciável acumulação. Vale a pena acrescentar para a conjuntura em que estamos: capitalismo neoliberal globalizado que, mesmo em crise no momento, considera indispensável para si a liberdade incondicional dos mercados, governos subservientes e, se possível, não comprometidos com cidadania e políticas includentes, por mais tímidas que sejam.
Nunca conseguimos, de fato,
transformar tal situação estrutural. No geral, nem tentamos ou quando tivemos
governos sensíveis à questão, apenas mitigamos. Assim, vivemos ondas de crises,
cada vez mais amplas e até mais intensas, com pontuais e limitados alívios. Mas
temos exemplos e heróis civis notáveis ao longo da história, verdadeiros
exemplos de cidadania que nos orgulham pelo que disseram e fizeram, apontando
os problemas e as soluções necessárias. A lista é longa e não dá para lembrar aqui.
O fato é que até agora pouco ou nada mudamos de fundamental na estrutura
econômica, social e de poder, nem no modo predatório dominante, que só faz
estender os seus tentáculos e a destruição ecossocial. Isto vale mesmo para
a Constituição de 1988, já ficando
envelhecida pelos ações dos recentes governos, em especial o que está aí e
tenta continuar.
Cabe nos perguntar, como cidadanias
engajadas hoje para impedir com o voto o avanço do fascismo e sua barbárie entre
nós, se não nos acostumamos a uma espécie de “normalidade” de emergências e urgências.
Afinal, atingem implacavelmente milhões de contemporâneo e não recebem a devida
prioridade nas ações públicas. O fato é que, por elas serem uma ameaça de vida
ou morte, não podem esperar o amanhã. A necessária ação imediata é
indispensável. O que importa é que a ação, por mais abrangente que seja em
termos de cobertura, não pode acabar nela mesma, apenas urgente e emergente,
sem nada mudar, de fato.
A linha apontada com ênfase na última
sexta feira pelo candidato Lula, na convenção do PSD que homologou o vice da
chapa, é correta quanto à prioridade absoluta da fome e da miséria que se
expandiu e agravou assustadoramente, num país que é um dos maiores produtores e
exportadores de alimentos. Mas qual a proposta? Que mudanças transformadoras
são apontadas num novo governo Lula? Para garantir segurança e soberania
alimentar basta destinar o pacote gerado pelo agronegócio como prioridade para
saciar a fome no Brasil, dando poder aquisitivo aos pobres e famintos?
Distribuir renda é uma necessidade e uma
entrada emergente rápida, evita o pior no imediato, sem dúvida. A clara
intenção humanitária é louvável política e eticamente. Numa recente análise a
respeito para a FAO destaquei o caráter republicano no modo como foi concebido
e executado o programa Bolsa Família, em base a um Cadastro Único. Nada a ver
com os “auxílios” eleitoreiros e clientelistas de Bolsonaro. Mas a Bolsa
Família não foi uma conquista de direito com garantia de emancipação social,
econômica e política. Portanto, nada afetou a estrutura que gera a fome e a
miséria, nem as exclusões e as destruições do predador desenvolvimento
capitalista. De toda forma, muito melhor o Bolsa Família do que os “auxílios”
eleitoreiros, clientelistas e destinados e redutos políticos e religiosos
apoiadores do capitão autoritário no poder, que busca a continuidade a qualquer
custo, com forte apoio de sua gangue armada disposta a tudo.
É fundamental que fique bem claro
este ponto que destaco em minha análise. Além de derrotar o dito cujo, como
cidadanias em ação, nós precisamos ter claro o nosso papel, para não acontecer
o que pode se tornar apenas política possível de ajuda mais eficiente, mas que
nada muda e até frustra. Afirmo e reafirmo que estamos, acima de tudo, diante
de um desafio de converter socorros emergenciais e urgentes em pacotes de ações
solidárias e políticas transformadoras, que apontem para a construção de bases
de emancipação social e resiliência das e dos atingidos, seja pela fome,
miséria e pobreza, falta de emprego, de terra ou pelos desastres ambientais.
Afinal, olhando bem, não existe uma situação sem estar combinada com a outra:
são todas e todos, por definição, atingidos ecossocialmente pela lógica de um
desenvolvimento capitalista triturador de gente e da natureza, seja nos
territórios das periferias urbanas ou nos territórios de povos das florestas,
das águas e zonas atingidas pela expansão do agronegócio e minas. Esta é uma das
questões centrais para criar caminhos e fincar raízes de democracia ecossocial em
nosso país no horizonte, por mais distante que seja.
Resumindo, precisamos de políticas
para emergências e urgências, políticas que sejam republicanas, eficazes no
imediato, mas que se articulem e criem sinergia com outras e comecem processos
virtuosos de mudança ecossocial com capacidade emancipadora e criadora de mais
cidadania, de conquista de direitos, num caminho de democracia intensa. Para
isto, precisamos de estratégias de transformação ecossocial que não desdenhem
das emergências e urgências. Mas ao mesmo tempo, precisamos que tais ações de
emergência e urgência sejam tratadas com perspectiva transformadora.
Aí é que se torna fundamental a ação
cidadã, através de ações solidárias, sem dúvida, mas não descuidando da
importância de análises, propostas e ativa participação. Nesta conjuntura
eleitoral isto precisa ser posto na arena da disputa. Não basta delegar poder
através da eleição. Precisamos garantir desde já um governo disposto a
transformar e aberto à participação cidadão a mais ampla possível nas
políticas, desde o começo e ao longo de seu desenvolvimento como política em
territórios de cidadania concretos e diversos. Ou seja, para que sejam
políticas transformadoras em termos democráticos ecossociais, a cidadania
precisa participar e pressionar, ter força e reconhecimento, enfim, ajudando o
governo constituído a ser o que se espera dele. Isto na concepção da política,
alocação de recursos, sua implementação, no acompanhamento e na avaliação,
sempre com centralidade das próprias cidadanias territoriais onde ocorrem
emergências e urgências. As e os atingidos tem que se tornar protagonistas de
sua própria “libertação ecossocial”, por assim dizer. A tal “consulta forte”,
como se fez no período petista, foi um avanço, mas só apontou para uma fraca e
limitada ação cidadã como força de pressão e legitimidade do governo para que
ouse mais e amplie a sua capacidade de ação, diante de aliados e, sobretudo, o
bloco de forças contrárias.
O “viver saboroso” começa no
reconhecimento de ser cidadania, podendo participar como sujeito ativo na
sociedade civil e no governo, mesmo em meio a desgraças, com perdas,
sofrimentos e falta de horizonte. Está é a porta de entrada para conseguir
alcançar a economia e os mercados, suas forças de sustentação política, onde
tudo se origina. Catástrofes de ordem natural sempre teremos, pois são parte do
viver no planeta que temos. Mas estamos diante de catástrofes ecossociais
produzidas essencialmente por humanos. É de injustiça ecossocial que se trata,
com nossos contemporâneos e a grande Mãe Terra. Temos que dar um basta! Simplesmente
ganhar a eleição a todo custo pode não ser suficiente.