sábado, 30 de julho de 2022

As Emergências e Urgências Que Se Impõem

Nesta conjuntura eleitoral, temos que enfrentar, de forma incontornável e central, as  emergências e urgências ecossociais.  Elas não são de agora, pois estamos diante de uma questão intrínseca à nossa formação como “Brasil commodity”, devido à conquista, à colonização e à nossa inserção dependente no mundo eurocêntrico. Somos até hoje, como projeto internalizado pelas classes dominantes, basicamente uma fonte estratégica de matérias primas ao capitalismo e sua insaciável acumulação. Vale a pena acrescentar para a conjuntura em que estamos: capitalismo neoliberal globalizado que, mesmo em crise no momento, considera indispensável para si a liberdade incondicional dos mercados, governos subservientes e, se possível, não comprometidos com cidadania e políticas includentes, por mais tímidas que sejam.  

Nunca conseguimos, de fato, transformar tal situação estrutural. No geral, nem tentamos ou quando tivemos governos sensíveis à questão, apenas mitigamos. Assim, vivemos ondas de crises, cada vez mais amplas e até mais intensas, com pontuais e limitados alívios. Mas temos exemplos e heróis civis notáveis ao longo da história, verdadeiros exemplos de cidadania que nos orgulham pelo que disseram e fizeram, apontando os problemas e as soluções necessárias. A lista é longa e não dá para lembrar aqui. O fato é que até agora pouco ou nada mudamos de fundamental na estrutura econômica, social e de poder, nem no modo predatório dominante, que só faz estender os seus tentáculos e a destruição ecossocial. Isto vale mesmo para a  Constituição de 1988, já ficando envelhecida pelos ações dos recentes governos, em especial o que está aí e tenta continuar.

Cabe nos perguntar, como cidadanias engajadas hoje para impedir com o voto o avanço do fascismo e sua barbárie entre nós, se não nos acostumamos a uma espécie de  “normalidade” de emergências e urgências. Afinal, atingem implacavelmente milhões de contemporâneo e não recebem a devida prioridade nas ações públicas. O fato é que, por elas serem uma ameaça de vida ou morte, não podem esperar o amanhã. A necessária ação imediata é indispensável. O que importa é que a ação, por mais abrangente que seja em termos de cobertura, não pode acabar nela mesma, apenas urgente e emergente, sem nada mudar, de fato.

A linha apontada com ênfase na última sexta feira pelo candidato Lula, na convenção do PSD que homologou o vice da chapa, é correta quanto à prioridade absoluta da fome e da miséria que se expandiu e agravou assustadoramente, num país que é um dos maiores produtores e exportadores de alimentos. Mas qual a proposta? Que mudanças transformadoras são apontadas num novo governo Lula? Para garantir segurança e soberania alimentar basta destinar o pacote gerado pelo agronegócio como prioridade para saciar a fome no Brasil, dando poder aquisitivo aos pobres e famintos?

Distribuir renda é uma necessidade e uma entrada emergente rápida, evita o pior no imediato, sem dúvida. A clara intenção humanitária é louvável política e eticamente. Numa recente análise a respeito para a FAO destaquei o caráter republicano no modo como foi concebido e executado o programa Bolsa Família, em base a um Cadastro Único. Nada a ver com os “auxílios” eleitoreiros e clientelistas de Bolsonaro. Mas a Bolsa Família não foi uma conquista de direito com garantia de emancipação social, econômica e política. Portanto, nada afetou a estrutura que gera a fome e a miséria, nem as exclusões e as destruições do predador desenvolvimento capitalista. De toda forma, muito melhor o  Bolsa Família do que os “auxílios” eleitoreiros, clientelistas e destinados e redutos políticos e religiosos apoiadores do capitão autoritário no poder, que busca a continuidade a qualquer custo, com forte apoio de sua gangue armada disposta a tudo.

É fundamental que fique bem claro este ponto que destaco em minha análise. Além de derrotar o dito cujo, como cidadanias em ação, nós precisamos ter claro o nosso papel, para não acontecer o que pode se tornar apenas política possível de ajuda mais eficiente, mas que nada muda e até frustra. Afirmo e reafirmo que estamos, acima de tudo, diante de um desafio de converter socorros emergenciais e urgentes em pacotes de ações solidárias e políticas transformadoras, que apontem para a construção de bases de emancipação social e resiliência das e dos atingidos, seja pela fome, miséria e pobreza, falta de emprego, de terra ou pelos desastres ambientais. Afinal, olhando bem, não existe uma situação sem estar combinada com a outra: são todas e todos, por definição, atingidos ecossocialmente pela lógica de um desenvolvimento capitalista triturador de gente e da natureza, seja nos territórios das periferias urbanas ou nos territórios de povos das florestas, das águas e zonas atingidas pela expansão do agronegócio e minas. Esta é uma das questões centrais para criar caminhos e fincar raízes de democracia ecossocial em nosso país no horizonte, por mais distante que seja.

Resumindo, precisamos de políticas para emergências e urgências, políticas que sejam republicanas, eficazes no imediato, mas que se articulem e criem sinergia com outras e comecem processos virtuosos de mudança ecossocial com capacidade emancipadora e criadora de mais cidadania, de conquista de direitos, num caminho de democracia intensa. Para isto, precisamos de estratégias de transformação ecossocial que não desdenhem das emergências e urgências. Mas ao mesmo tempo, precisamos que tais ações de emergência e urgência sejam tratadas com perspectiva transformadora.  

Aí é que se torna fundamental a ação cidadã, através de ações solidárias, sem dúvida, mas não descuidando da importância de análises, propostas e ativa participação. Nesta conjuntura eleitoral isto precisa ser posto na arena da disputa. Não basta delegar poder através da eleição. Precisamos garantir desde já um governo disposto a transformar e aberto à participação cidadão a mais ampla possível nas políticas, desde o começo e ao longo de seu desenvolvimento como política em territórios de cidadania concretos e diversos. Ou seja, para que sejam políticas transformadoras em termos democráticos ecossociais, a cidadania precisa participar e pressionar, ter força e reconhecimento, enfim, ajudando o governo constituído a ser o que se espera dele. Isto na concepção da política, alocação de recursos, sua implementação, no acompanhamento e na avaliação, sempre com centralidade das próprias cidadanias territoriais onde ocorrem emergências e urgências. As e os atingidos tem que se tornar protagonistas de sua própria “libertação ecossocial”, por assim dizer. A tal “consulta forte”, como se fez no período petista, foi um avanço, mas só apontou para uma fraca e limitada ação cidadã como força de pressão e legitimidade do governo para que ouse mais e amplie a sua capacidade de ação, diante de aliados e, sobretudo, o bloco de forças contrárias.

O “viver saboroso” começa no reconhecimento de ser cidadania, podendo participar como sujeito ativo na sociedade civil e no governo, mesmo em meio a desgraças, com perdas, sofrimentos e falta de horizonte. Está é a porta de entrada para conseguir alcançar a economia e os mercados, suas forças de sustentação política, onde tudo se origina. Catástrofes de ordem natural sempre teremos, pois são parte do viver no planeta que temos. Mas estamos diante de catástrofes ecossociais produzidas essencialmente por humanos. É de injustiça ecossocial que se trata, com nossos contemporâneos e a grande Mãe Terra. Temos que dar um basta! Simplesmente ganhar a eleição a todo custo pode não ser suficiente.

domingo, 24 de julho de 2022

Os Desafios Que Temos na Atual Conjuntura Eleitoral


Como assinalo na definição do blog, estou em busca de sentidos e rumos para contribuir como analista e ativista na transformação democrática da situação que vivemos no Brasil e no mundo. Até aqui, procurei ser explícito sobre alguns pressupostos preliminares em que baseio as minhas análises. Sei que faz parte de qualquer análise o buscar e o errar, o ser incompreendido, o ser parcial, o não ver outros elementos também essenciais.  Na verdade, acredito e aposto no ganhar inteligência e força coletiva pelo compartilhamento e acolhimento, tanto de análises como de reações e críticas a elas, entre os que assumimos valores e princípios éticos comuns. Trata-se de contribuir abertamente para a construção de  saberes com sentido de ser resultado de produção conjunta. Afinal, é  uma tarefa coletiva que está na essência do fazer democracia, superando a imposição da busca de realização do interesse individual como norma dominante do viver no capitalismo.

Para  ativistas por uma democracia viva e intensa, os desafios conjunturais não se evitam ou contornam, mas se enfrentam com análise e luta. É assim que a perspectiva estratégica adquire sentido e densidade, fortalece a unidade na diversidade, vira cimento do “bloco histórico democrático”, com potencial transformador desde aqui e agora.

O se situar e lutar na conjuntura é sempre fundamental para as cidadanias em ação. Este é o campo por excelência da ação cidadã, pois sua razão de ser é buscar “brechas” e apostar em possibilidades nos momentos em que a história vai sendo feita, até nas mais difíceis relações de forças conjunturais.  Mas nem a melhor análise e  nem a mais radical ação/luta são por si mesmas suficientes. A vontade política se forja e ganha potência na combinação virtuosa de análise consistente e ação engajada entre muitos através do bloco histórico democrático transformador, gerando um movimento irresistível. Até podemos não ganhar, mas sempre produziremos efeitos novos e mais duradouros para nós mesmos e impactos no conjunto das relações de forças em dado momento histórico. Aí reside a grande potencialidade  que podemos obter no processo democrático mais intenso possível, para além de poderes políticos e econômicos existentes, nas conjunturas dadas.

A análise de conjuntura sempre implica em nos entender, a nós mesmos, como força que busca mais e mais democracia, e entender “as outras forças” em sua diversidade e os blocos em que se organizam. Aí sempre ocupa um lugar central o bloco de forças contrárias. Porém, não podemos confundir as forças contrárias a enfrentar e, se possível, derrotar,  com aquelas divergentes quanto à estratégia e o método do que propomos como bloco democrático transformador. Análise e ação cidadã ou ação cidadã e análise, sempre são bases para num processo contínuo visando nos fortalecer como “bloco de forças democráticas” diante do bloco contrário hoje dominante no cenário nacional brasileiro.

O desafio conjuntural, no Brasil e no contexto de radicalização de disputas hegemônicas globais, é contribuir para a reconstrução de um poderoso bloco de forças capaz de nos   apontar um horizonte de transformação ecossocial democrática para o país, tendo como tarefa primeira vencer eleitoralmente um personagem símbolo, autoritário e fascista, racista e misógino, pregando o ódio, como líder e aglutinador de um bloco antidemocrático. A derrota eleitoral do líder é também a forma mais imediata de fragilizar o bloco de forças antidemocráticas, que conta com um importante núcleo resiliente na sociedade brasileira, com quem temos que conviver. Mas nada melhor do que obrigá-los a se sentar à mesa e negociar democraticamente.

É sobre este imbróglio que gostaria de começar avançando na minha postagem de hoje e nas próximas. Em nenhum momento tem sido minha intenção  desviar a mirada ao que temos no aqui e agora como tarefa. Mas como é de análise que se trata, como um dos componentes a se somar à vontade coletiva que estamos construindo – para derrotar o monstro ameaçador do autoritarismo, com raízes mais profundas do que pensávamos –  estou preocupado em chamar atenção àquilo que nos pode fortalecer. Vejo que é prioritária a disputa de hegemonia, literalmente.

Para a disputa de hegemonia, devemos buscar constantemente um amálgama e uma síntese agregadora do “pluriverso” de sujeitos coletivos em ação em torno ao imaginário democrático comum  que nos mobiliza, com visões e propostas de outro Brasil. Precisamos não descuidar da tarefa de tornar claros os modos de ver, os princípios e valores éticos que comungamos, os direitos iguais na diversidade que buscamos e defendemos, as formas de participação e gestão do Estado/poder e da economia/mercado justos e includentes que propomos, garantindo a centralidade dos bens comuns, do cuidado, do compartilhamento e da convivência entre todo mundo, sem descriminações e exclusões, buscando o respeito aos sistemas ecológicos e a preservação da integridade do conjunto da natureza que nos cabe cuidar. Trata-se demonstrar consistência no modo de ver, propondo e ganhando legitimidade no discurso e no debate político sobre nós mesmos, a pluralidade cidadã deste país de enormes contradições e possibilidades, sobre nossas origens e onde estamos hoje, sobre o território e sua integridade, sobre o queremos e devemos deixar para as novas gerações usufruírem e viverem plenamente. Enfim, um imaginário mobilizador e criador de uma onda irresistível, exigindo um processo consistente de transformação ecossocial.

 Nesta conjuntura de relações de forças, a disputa de hegemonia é entre propostas de democracia em confronto com a ameaça autoritária que não pode ser desprezada, pois  já está agarrada no próprio poder estatal e no Congresso Nacional, com adesão no seio da sociedade.   Não se trata de simplesmente tentar entender  a agenda contrária  e tê-la como prioridade a ser enfrentada. Trata-se , antes de tudo, de afirmar a nossa, mas com a explícita intenção de estar desconstruindo a outra, ao mesmo tempo, ao mostrar os nossos “comos” e “ porquês”. Devemos construir desconstruindo e não o inverso, destruir para construir. É na troca, no compartilhamento  e, sobretudo, na participação dos diversos sujeitos de cidadania que compõem as forças democráticas que podemos realizar a busca virtuosa de construção da hegemonia de um modo de existir e viver que implica em coexistir e conviver –  “saborosamente” – tendo como pilar de sustentabilidade o cuidado mútuo entre todas e todos e com a natureza, a partir dos territórios em que vamos levando a vida.

A hegemonia de um pensamento e modo de fazer radicalmente democrático precisa engajamento e determinação. Não bastam alianças partidárias, pois mais necessárias que sejam.  A participação ativa desde é que pode fazer a diferença. Por isto é indispensável. Para ter impacto precisa contar com uma tarefa prioritária de informação e comunicação entre pares,  onde cada qual tem sua parte a fazer. Não é e nem será a propaganda eleitoral que irá enfrentar a avassaladora difusão de fakenews pelos propagadores do ódio e do autoritarismo, através de disparos nas plataformas das redes digitais.  Tem que vir do interior de organizações e movimentos de sujeitos coletivos, das raízes profundas das comunidades em que vivemos e das trocas dos mais diferentes saberes de viver, em círculos cada vez mais alargados e interligados. Mas precisamos considerar prioritários nos conectar  com outras e outros, se estendendo como uma poderosa onda que cresce agregando. Claro que é difícil. Ou alguém acha que fazer prevalecer a democracia como método e processo, a mais intensa possível, seja apenas manter o rito elementar de eleições periódicas? Isto tem que ser feito, mas muito, muitíssimo mais é necessário da ação cidadã para tornar a democracia um processo transformador contínuo ancorado no reconhecimento e ampliação de direitos iguais ecossociais na diversidade, afastando a ameaça autoritária.  Afinal, a primeira vontade se expressa no nós podemos porque somos cidadanias ativas! Sim, nós podemos!

Estrategicamente, construir hegemonia é também uma tarefa para dentro, entre nós mesmos, nos nossos coletivos. Isto ao mesmo tempo que nos engajamos numa disputa com outras visões, especialmente as antidemocráticas, as negadores até de direitos iguais os mais elementares como os civis e políticos, na conjuntura em que vivemos. O negar a legitimidade de todas e todos serem parte de um mesmo território, sem distinção,  e a serem titulares iguais é o melhor indicador de “estado da democracia e da cidadania”. Para a tarefa ampla de disputa de hegemonia de um pensamento ecossocial democrático transformadora precisamos reconhecer a centralidade da “tarefa cultural e civilizatória” que a comunicação com sentido democrático pode fazer.  Bota desafio nisto! Não esqueçamos que temos nossos comunicadores identificados com cidadania e democracia e assim vamos acreditar que o aparentemente impossível sempre pode ser tornar possível, agindo com determinação.

 

 

domingo, 17 de julho de 2022

O Desafio da Transformação Ecossocial Democrática

No imediato, temos que derrotar a ameaça fascista. Mas que horizonte  vislumbramos e sonhamos ser possível, finalmente, começar a construir no e para o Brasil? Sem um ideário democrático, mobilizador e transformador, para um outro país, corremos o risco de nos emaranhar em soluções conciliatórias que simplesmente evitem o pior, sem apontar saídas estratégicas para enfrentar a nossa herança capitalista colonial de exclusões, violências, desigualdades e destruições... e recorrente autoritarismo com militarização! Precisamos mudar para valer, sentir que podemos voltar a sonhar com outro modo de ser e existir como povo, por mais difícil que seja! E isto supõe visão e sinalização de estratégica de transformação, mas com método de democracia viva e intensamente praticada. Neste quadro  ganhar a eleição não é o fim, mas apenas uma importante condição inicial, conjuntural e decisiva a seu modo.

O caminho é difícil e longo, sem sombra de dúvidas. Mas estamos buscando? Se novamente, como povo, vivemos uma situação de ameaça autoritária e fascista é porque erramos ou as forças políticas que elegemos foram pouco ousados na reconstrução democrática pós ditadura militar. Apesar das intensas mobilizações da cidadania ativa, no então, acabamos experimentando um processo democrático de baixa intensidade e de capacidade transformadora muito limitada. Aí veio o golpe e ficamos encurralados, de forma brutal até. Agora, nesta conjuntura do ano de 2022, quais são os sinais que nos indicam estarmos tentando apontar as mudanças estratégicas democráticas que necessitamos, para superar e afastar de vez a recorrente ameaça fascista?

Certamente, refazer o desconstruído nos últimos anos será necessário de imediato, mas está longe de ser suficiente e, sobretudo, ser uma proposta agregadora e transformadora para um outro amanhã. Afinal, o neoliberalismo está mais estruturalmente implantado em nosso seio e ele continua vivo em sua capacidade destrutiva e excludente. Parece algo fora de lugar falar disto nesta difícil conjuntura eleitoral, ainda um tanto indefinida. Precisamos de uma grande coalizão de interesses e forças diante das ameaças, sem dúvida. No entanto, não podemos perder de vista o centro do drama coletivo, um espécie de câncer que precisa ser extirpado o quanto antes: os sofrimentos, as angústias e a falta de horizonte das “maiorias condenadas às periferias”, urbanas e rurais, onde predominam destruições, exclusões, desigualdades, descriminações, violências, fome e morte.

Temos que nos perguntar: ainda será possível superar a barbárie? Sim! Não tenho dúvidas se apostarmos na capacidade de cidadanias em ação, com governos abertos e acolhedores de sua participação forte e decisiva, e se os mercados/economia forem submetidos ao escrutínio democrático ecossocial do conjunto da sociedade. Simples e complexo assim! Devemos visar impor limites e buscar transformar a lógica de um sistema triturador de gente e destruidor da natureza, apontando o futuro para as novas gerações, que, sabemos, querem se engajar e fazer a sua indispensável parte, com seus sonhos e desejos, provavelmente muito melhor que nós, se ajudarmos a construir as condições desde hoje para tanto. Não podemos nos satisfazer com uma estratégia democrática de distribuição de riqueza social pois isto não basta – além de ser simplesmente ação emergencial –  pois nada muda, o problema  é da lógica estrutural do sistema. O modo de produção de tal riqueza concentrada de forma escandalosa e profundamente injusta tem por mote a exploração natural e social, com destruição, concentração e desigualdade e tudo mais. Enfim, vai acabar com a humanidade e a própria integridade do planeta Terra.

Sei que minha definição de tal agenda como “transformação ecossocial democrática” pode não ser a melhor, por parecer muito abstrata e teórica para a maioria. Definitivamente, não é mote de campanha! Mas pode ser a linha estruturadora de um programa de transição inadiável, isto pode! Além disto, é apontando uma estratégia de transição para um futuro mais humano e sustentável que será possível trazer ao centro do processo de transformação a potências das cidadanias ativas em sua diversidade. Por isto,  não custa esclarecer o sentido que carrega, o muito que pode significar para nos estimular e mobilizar o melhor de nossas capacidades, agregando  a diversidade de cidadanias em ação. O que se faz necessário é ousar, buscar as melhores definições no diálogo aberto e construtivo no seio da sociedade civil,  particularmente com a diversidade de sujeitos coletivos de cidadania ativa já organizados e existentes, engajando-nos num grande ateliê coletivo para plantar sementes de transformação democrática. O que importa não é a definição em si, mas o sentido agregador como imaginário mobilizador e o caminho a construir que aponta.

Temos urgências visíveis na multifacetada questão social de exclusões, violência e assassinatos, fome e miséria, desigualdade social sem par, com racismo, machismo e patriarcalismo estruturais. Chega! Não podemos continuar assim, pois isto é um problema para todas e todos, não importa idade, sexo, cor da pele e lugar na sociedade atualmente.  Precisamos tirar de nosso imaginário o que nos impuserem:  nosso drama coletivo não é por falta de desenvolvimento capitalista ou eficiência econômica na sua gestão. Aliás, todas estas mazelas são devidas à centralidade e aos excessos de economia capitalista e dos mercados, social e ecologicamente predatórios, num país de cinco séculos como colônia de exploração e dependente do sistema mundial capitalista. Precisamos, urgentemente, limitar tal economia, sua lógica, estrutura e processo, e estrategicamente visar a sua transformação. O que precisa ser nossa direção e caminho a construir é a busca do maior bem coletivo possível, sempre. Claro, isto só será possível se acreditarmos que existem, sim, alternativas estratégicas à dependência estrutural dos humores e apetites de acumulação de riquezas dos donos de capital, terras, gado e de gente, como é agora. Mas isto não basta de jeito nenhum, pois este sistema se fez e continua assim deste a colonização: ele destrói gente – as maiorias – e destrói a base natural da vida – o  imenso território que nos cabe cuidar como povo. Aliás, o nome Brasil nos denuncia perante o mundo, pois temos uma identidade de commodity – pau brasil – que tem por trás desmatamento... Alguém duvida que o avanço do desmatamento na Amazônia e Cerrado seja outra coisa? O que chamamos de “projeto de desenvolvimento” é destruição ecológica e social, hoje avançado assustadoramente com sua sina conquistadora e exploradora, para extração de riquezas naturais, pelas queimadas, garimpo, mineração e agronegócio, ameaças á biodiversidade, poluição das águas,  mercantilização total, tudo em escala que assusta o mundo inteiro.

Toda esta reflexão se faz necessária pois ainda pululam, na própria esquerda, ideias e propostas de um “outro desenvolvimento”,  sustentável e mais humano, quando o problema é o próprio desenvolvimento, que tem no centro , como seu motor, o capital privado em busca de crescimento e sua valorização, sem limites ou com a menor tributação e regulação social possível. Do desenvolvimento que temos arraigado como sonho e projeto desejável para o país, em nossas mentes e corações, desde os tempos da CEPAL,   por diferentes forças políticas, com pequenas nuances,  não há outros futuros possíveis! Estamos colonizados por um projeto que nos faz país capitalista dependente dos polos centrais capitalistas, desigualdades sociais, pobreza e destruição estruturais, como se não fosse possível pensar e viabilizar alternativas.  Pensar que transformações sejam necessárias e possíveis é ser subversivo? Bem, transformador é, mas em busca do melhor possível para todos, mesmo com desobediência civil, a grande estratégia transformadora de sociedades, na verdade. Está provado que não é o Estado em si que tem poder de vir a ser o grande transformador, assim como o mercado não é. Pelo contrário, é a cidadania ativa, em sua diversidade, que deve controlar o Estado e o mercado. Não se trata de eliminá-los, mas sim de submetê-los ao escrutínio da participação social, cultural e política a mais ampla possível, nas diferentes conjunturas. Afinal, é de um processo de transformação permanente democrático, ou seja, de construção democrática, que se trata. O que sim pode nos diferenciar é a aposta numa estratégia processual de transformação, que só democracias participativas podem desenvolver, lideradas pela cidadania e secundadas – não lideradas – pelo poder estatal. Nâo se trata de constituir governos democráticos só “menos bárbaros”,  para impor uma agenda social e conseguir certa distribuição da riqueza socialmente produzida. A   lógica do capitalismo é e sempre foi crescer para acumular a todo custo. Ou seja, nosso problema é, sim, distribuir e compartir a  riqueza que produzirmos, mas só conseguiremos isto mudando o modo de produzir, com menos capitalismo privatizante e mais centralidade e força dos processos produtores e gestores de comuns compartilhados entre todas e todos. Agronegócio e extrativismo, em que nos baseamos hoje, são destruição e morte. Pode até ter lugar complementar numa economia a serviço da democracia. Mas não podem ser o seu motor, como são hoje, pois o motor é um fim em si mesmo, ignorando a sociedade como um todo e seus territórios de cidadania.

Para começar de forma promissora e ganhar as eleições que se avizinham nosso mote deveria incorporar a ideias do cuidado mútuo, convivência e compartilhamento entre todas e todos. As diferenças e a diversidade são forças agregadoras e transformadoras de democracias. Não podem ser motivo de ódio, desagregação e morte, com ameaças autoritárias e fascistas. Estamos diante de uma necessidade de mudança estrutural de concepções e práticas nas relações com a natureza, que nos garante generosamente os bens materiais necessários, e de relações entre nós mesmos, na complexidade que isto implica para uma sociedade de múltiplas formas de ser e viver cidadania de direitos iguais para todas e todo, com diversidade  e em territórios fantásticos pelas possibilidades que nos são dadas, como país.

A possibilidade de mudança ecossocial democrática existe, sim, mas até quando? A destruição avança sem tréguas e a cada dia perdemos potência coletiva. Não dá mais para seguir assim! A destruição e a exclusão tem que pararem e serem revertidas! É agora, pois já vamos tarde! A conjuntural eleitoral é como uma panela de pressão, as ideias ficam em ebulição e o momento é curto para mudar a qualidade do que vamos a ter como “manjar democrático”. Mesmo curto e rápido, é aí que se geram horizontes possíveis de transformação a partir do imediato, sem mais escusas para quem acredita no potencial de democracias como modo de transformação. Vamos nesta... mesmo se for preciso tapar o nariz!

 

 


sexta-feira, 8 de julho de 2022

Cidadania Ativa e Democracia

 

 

Meu objetivo, ao me debruçar sobre as diferentes conjunturas, é participar com o que posso fazer como analista e ativista: desvendar as potencialidades e as contradições das lutas com protagonismo da cidadania, no chão da sociedade civil. Vejo a ação cidadã como força democrática transformadora ecossocial de relações, estruturas e processos, apontando novos horizontes e caminhos a percorrer. Uma tal prioridade analítica não implica em ignorar o mercado/economia, nem o poder/Estado. Pelo contrário, trata-se de olhar prioritariamente a partir das ações da cidadania ou a cidadania em ação, em cada momento, como força instituinte e constituinte da democracia, dentro dos limites econômicos, políticos e culturais existentes.  O que importa, sim, é reconhecer como o domínio real do mercado combinado com o poder estatal determina o nosso viver no dia a dia, em multiplicidade de formas, e contamina os modos de ver e pensar, os nossos valores e crenças, nossos desejos e sonhos, até nosso agir como cidadania. As buscas e as possibilidades de emancipação social e política são a grande questão a ser avaliada nas ações da cidadania.

Por mais frágeis que sejam, as ações da cidadania se expressam sempre como formas coletivas de participação social e política, de luta enfim, carregadas de imaginários mobilizadores, para a promoção e defesa de seus direitos.  Isto pode ou não ser reconhecido pelo poder estatal, menos ainda pelo mercado. Aliás, ser reconhecida como identidade e voz coletiva legítima é a primeira e fundamental conquista como forma de expressão social e política. Um processo assim se dá de múltiplas formas, devido a diversidade de modos de ser, viver e pensar, em cada momento histórico. Ou seja, sempre precisamos estar atentos à diversidade de identidades de vozes. É isto se dá em diferentes situações e processos concretos. Por isto, prefiro pesquisar, analisar e debater conjunturas sempre buscando as “cidadanias em ação”, sem ignorar a potência de sua diversidade e das coalizões cidadãs que se formam a partir daí.

Sei que é questionável, mas adoto um modo de ver e analisar a diversidade das cidadanias para romper com o domínio da conceituação abstrata, política e jurídica, contida na definição legal de cada país, a partir do poder estatal. Ter cidadania é, acima de tudo, se sentir ser humano titular de direitos iguais de liberdade e participação para lutar coletivamente por eles. Em termos teóricos e metodológicos, classifico os direitos em três grupos: direitos civis e políticos, direitos aos comuns, direitos econômicos, sociais e culturais. Direito que não é igual para todas e todos é privilégio e forma de dominação, não é direito. Por isto, a luta por direitos de cidadania é uma luta que nunca acaba, uma potência transformadora, apesar de poder celebrar conquistas simbólicas, sempre provisórias, em momentos históricos dados. Assim como direitos podem ser perdidos e reduzidos, direitos podem ser ganhos e ampliados.

Por que tudo isto? Primeiro, democracia nunca é algo acabado, um modo definitivo de viver coletivamente, mas uma condição e um processo – extremamente variável de uma situação a outra e seus contextos históricos específicos – em que a luta social por mais direitos é sempre possível e legítima. Mais, de força potencialmente destrutiva, a luta política vira força viva de construção democrática e transformação ecossocial. A intensidade da participação cidadã é que qualifica a democracia e esta se revela no modo de agir do Estado, nos limites e regulações sobre a economia. Mas, ao mesmo tempo, a democracia brota e se alimenta no seio da sociedade civil, não no Estado e nem no mercado.

Isto é extremamente complexo na prática. Pois se a participação cidadã é a força qualificadora e transformadora, o poder estatal e as forças ocultas do mercado/economia podem e buscam de fato limitar e deslegitimar as cidadanias e suas lutas. Nisto se configuram as conjunturas.

Não pude evitar toda esta minha reflexão pois, num certo sentido, o voto periódico da cidadania é uma conquista e seu exercício é fundamental, escolhendo e assim delegando poderes para governantes e representantes, validando uns e destituindo outros. O poder votar é uma espécie de consenso sobre o mínimo para ser ou não ser uma democracia em termos políticos. Sem dúvida poder votar é uma qualidade de participação política cidadã, sine qua non, que distingue regimes políticos democráticos de outros. Mas é uma participação frágil, que delega poderes aos eleitos através de seus partidos, que facilmente podem dar as costas para a cidadania no exercício de seu mandato. Por mais necessárias que sejam, as eleições periódicas não bastam para dar intensidade e capacidade transformadora à “situação” democrática conquistada.

Voltando ao que mais me preocupa na conjuntura eleitoral em que nosso voto cidadão é chamado a decidir, em outubro deste ano, sobre a difícil situação em que estamos emaranhados no Brasil. Sei que vale o voto posto na urna eletrônica, mesmo se as forças que sustentam a monstruosidade do governo e a cumplicidade do Congresso queiram questionar de antemão o seu resultado. Mas independentemente desta ameaça, o pior é a coalizão democrática ampla em torno a Lula e o PT não ganhar. Este é um fato político que só a cidadania participando é que poderá garantir a vitória.

Diante de tal quadro é que me volto, em particular, para as cidadania ativas que demandam mais direitos ecossociais e a reversão das políticas pró mercado e destruidoras de conquistas de direitos, ocorrida com os governos pós destituição de Dilma Rousseff, pelo golpe político via Congresso Nacional. Em síntese, a questão é se sentir legitimado e decisivo em participar, desde aqui e agora, no processo eleitoral, para além do enquadramento partidário e suas propostas e assim poder continuar lutando, com mais força e impacto, como cidadanias ativas em sua diversidade na conformação do governo e do Congresso. Mas será que isto vai acontecer com a força necessária e será reconhecido? O tempo é curto, mas temos que acreditar e sonhar que, sim, é possível. Cidadanias em outros países da América Latina demonstraram recentemente e nós também, num passado não tão distante.

O momento exige a forte presença das diversas cidadanias nas ruas e nos debates,  assim como nas urnas em outubro. A decisão do amanhã da democracia está em nossas mãos.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Repensar e Ressignificar

O momento que estamos passando é de enormes ameaças,  numa combinação de agressões e ameaças, de rupturas e desmontes, de perdas de imaginários mobilizadores, com recrudescimento de estranhamentos e intolerâncias, do local ao mundial. Para onde vamos? Ainda é possível mudar? Como? Nós, os mais avançados em idade, que legado vamos deixar para as novas gerações?  E elas, que sonhos alimentam diante desta tragédia|? Qual o futuro com que sonham ser possível para si mesmos e a humanidade, neste maravilhoso planeta que nos dá vida?

As questões são muitas e as respostas nada simples. Mas, sobretudo, temos o desafio de descobrir juntos e juntas caminhos enquanto caminhamos, acreditando que o impossível sempre pode se tornar possível. Confusões e dúvidas podem ser sementeiras de um novo modo de ver e entender. Sim, é de novos modos de pensar que se trata, repensando o já pensado e ressignificando o que já parecia serem certezas para nós e para as nossas redes de afetos e cumplicidades políticas.

Mas não dá para ignorar o profundo desconforto que as rupturas, desmontes e desencontros nos causam. Os sinais apontam para várias direções. Temos sinais de barbárie em curso , mas também de novas formas  de solidariedade, convivência e compartilhamento. São movimentos contraditórios e que geram uma sensação de impasse.  No conjunto, o que a cada dia fica mais evidente, é que o neoliberalismo é um forma de acumulação capitalista e dominação absoluta a favor de 1% dos privilegiados, sem regulação ou limites. Todas as mazelas do capitalismo que  se baseiam na exploração do trabalho, com uma visão extrativista do planeta e destruição da integridade dos sistemas ecológicos do planeta, acabam fomentando e se valendo do patriarcalismo, racismo, imperialismo, colonialidade e guerras, de uma forma globalizada, exacerbada ao extremo. Temos pandemias, apartheids, intolerâncias, milícias, desinfomação, direitas e nacionalismos excludentes e violentos, criação de periferias em meio a abundância, famintos desesperados e migrantes aos milhões tratados como párias. Estamos assistindo diariamente a uma desenfreada disputa do que "sobra", dos comuns humanos, os territórios e seus recursos, o saber e a cultura.  Até quando?

Felizmente, temos poderosos sinais que brotam em todas as partes carregados de novas sensibilidades e buscas. Como valorizá-los em propostas potentes para a transformação de tudo? Esta é uma prioridade e uma preocupação. A proposta é ressignificar e dignificar o papel transformador de nossa ação, de cidadania em ação, para uma verdadeira revolução democrática ecossocial, de direitos iguais para todas e todos, no cuidado mútuo, com solidariedade, convivência e compartilhamento, para vidas que merecem ser vividas plenamente. Claro, no imediato nos deparamos com a invisibilização a que estão submetidos nossos olhares pelo modo de vida barbarizado pelo mercado promotor do mais exacerbado capitalismo neoliberal global e toda sua estratégia de impedir imaginários questionadores. Trata-se de um câncer que ameaça de morte a humanidade inteira e o planeta único que nos dá condições de viver. O cuidado, a convivência e o compartilhamento não tem lugar no modo de dominação é exploração deste capitalismo e da civilização eurocênctrica e imperialista, machista e patriarcal, colonialista e racista, profundamente discriminadora e violenta que alimenta seu modo de ser. Temos uma tarefa hercúlea para tornar o cuidado, a convivência e o compartilhamento como princípios organizadores do viver como membros da coletividade e do território que compartilhamos.

Não penso que a construção dos caminhos democrática e ecossocialmente transformadores que precisamos seja uma tarefa fácil e curta. Só penso que é ainda possível e é inadiável, sem medos, evitando a barbárie que está aí. Obstáculos existem e muitos, eles não podem ser ignorados. Mas temos que começar por identificar as brechas em nossa busca dos comuns a fortalecer. Poderemos encontrar surpresas e nos encantar, motivando-nos para seguir buscando. Ao menos tentar, por dever e condição,  garantir direitos de existir. Mas precisamos estar de acordo no ponto de partida: não são possíveis situações, processos e bens comuns para viver sem valores e princípios éticos compartidos, onde o comum é tornado comum pela ação coletiva consciente.

Aqui cabe a pergunta: por que trazer este debate no momento, nesta conjuntura brasileira  tão difícil que atravessamos, com eleições estratégicas pela frente? De cara afirmo e reafirmo que é fundamental derrotar o "inominável" e o projeto bárbaro em termos democrátios e ecossociais que ele e o "bando" que o respalda representam. Também não tenho dúvidas e não escondo meu apoio e ativismo para o Lula como a real e a única possibilidade democrática que temos nesta conjuntura. Mas ter isto como passo e mudança fundamental, no que estou querendo compartir nesta minha reflexão e análise, não pode nos iludir sobre os desafios que teremos pela frente. Sei que é desconfortável chamar atenção dos enormes "vazios" e "ausências" nesta conjuntura, quando precisamos urgentemente derrotar a ameaça que representa um possível continuidade da monstruosidade destrutiva liderada politicamente pelo bando de milícias, polícias e Forças Armadas, com concepções antidemocráticas e fascistizantes, segredadoras e violentas.

Uma primeira e fundamental questão: o que significa resgatarmos a democracia? Estamos em conjuntura eleitoral e a proposta é defender a democracia que temos? Esta nascida em 1988 e que aceitou o cancer da "conciliação política" como modo de ser democrático e que nos levou á tragédia em que estamos mergulhados? Ou buscamos restaurar a democracia como força cidadã transformadora? Afinal, democracia antes de tudo sinfica radical e simplesmente o poder do povo!   A força de democracia está ancorada na cidadania ativa, consciente dos direitos e convicta de seu poder. Claro, não existe democracia sem uma correspondende institucionlidade legal e poder definidos, sempre passíveis de transformações para melhor. Democracia viva e significativa supõe cidadania ativa, em sua enorme diversidade, engajada e sempre presente. Para isto, a cidadania ativa exige imaginários mobilizadores e irresistíveis por mais e mais, rompendo sempre com os limites do considerado possível. Democracia é tornar possível o antes impossível, pela ação da cidadania.  Claro precisamos votar, mas não só em eleições. Precisamos participar e ser ativos em todos os momentos. Este é o segredo da democracia: ser um modo de fazer conquistas de direitos, políticas e promover as necessárias transformações, sempre pautadas pelo bem comum. Aliás, bem comum que não tem limites, em termos de imaginários, mas que exige ação, motivação, capacidade de não desistir de lutar. Mas limitar o exercício da democracia ao voto, como se isto bastasse, é nos enganarmos. Democracia não é um fim em si mesmo, mas o modo de agir coletivo para os fins que conseguirmos acordar e que o voto define como objetivos majoritários, sempre revisados e renovados. Neste simples fundamento reside o poder transformador ecossocial de relações, estruturas e processos coletivos da democracia. 

Dar o voto numa eleição é o começo e não o fim em si mesmo. É apenas parte do processo. Vejamos a situação em que nós estamos mergulhados sob ameaças de uma direita com aspirações fascistas e que não dissimula a sua vocação violenta de eliminar quem não concorda com ela, atropelando tudo, mesmo a Constiuição conciliadora, que suadamente conquistamos mais de 30 anos atrás, as políticas inclusivas limitadas e nossas frágeis instituições. Deu para celebrar, mas era apenas um começo e não o fim. Fomos atropelados e agora ameaçados de barbárie novamente. Vamos votar, sem dúvida. Mas onde estão as cidadanias ativas em sua diversidade de vozes, as mobilizações que criam entusiamo cidadão e os debates acalorados sem fim? 

Vejo a conjuntura eleitoral sem tais evidências que podem apontar esperança e transformação. Não há dúvidas sobre a barbárie que nos ameaça. Isto não! As dúvidas são sobre o que buscamos além de adiar a barbárie de uma possível reeleição com catástrofes já sabidas. Afinal, parece que não acordamos para a questão racial, para a questão indígena, para a questão climática e a destruição sistemática da natureza que nos cabe cuidar, para a violência sistêmica, com suas milícias não tão clandestinas, para o rearmamento do cada um por si e de quem pode, pode. Cadê as questões da segregação e da dominação e violência contra as mulheres? As questões são muitas e parece que a busca da vitória as inviabiliza. A vida me ensinou que sonhar e acreditar, qualificando e significando isto, tem enorme poder transformador. Sim podemos, mas precisamos querer!

Termino lembrando o que aconteceu no Chile e na Colômbia, onde o "sim podemos" venceu algo que parecia inimaginável. Claro, isto é apenar um começo. Mas as cidadanias ativas fizeram as vitórias nas urnas e dela depende a efetividade do que acontecerá em termos de conquistas e transformações. Fico encantado ao pensar na proposta da vigorosa mulher afrodescendente, a Francia Marques, que a levou com longo ativismo, ao centro do poder na Colômbia, como vice presidente de Petro, outro corajoso e obstinado ativista desde a juventude. Francia propõe o "Viver Saboroso" para todas e todos, algo em processo e sem limites. Isto é o que precisamos voltar a ter no Brasil: almejar um viver saboroso!