Nos primeiros seis meses, é forçoso reconhecer o ativismo e a incidência de Lula nas relações interestatais, o que nos levanta a autoestima. Ao mesmo tempo, vemos dificuldades e começamos a nos preocupar com o não enfrentamento das relações de forças internas para avançar com políticas democráticas ecossociais transformadoras. Será isto uma estratégia para “desencurralar” a nossa democracia e, assim, avançar na sua reconstrução virtuosa?
Sem dúvida, em curto período, Lula visitou diferentes países, participou de eventos, recebeu visitas, convocou reuniões e teve iniciativas em termos de presença no mundo. Abriu espaços, foi ouvido, mas também criticado, sobretudo na questão da guerra entre Rússia e Ucrânia. Contou com a competente assessoria do Celso Amorin em suas investidas. Lula, devemos admitir, é uma voz que não silencia diante de injustiças e destruições deste sistema mundo, obrigando seus interlocutores a reconhecer que o Brasil não pode ficar de fora neste momento, seja pelo tamanho de sua população e o território que lhe cabe gerir para o bem de todo mundo no planeta, como de sua democracia e economia. Vejo, sobretudo, que Lula está se tornando uma voz com legitimidade para falar do Sul Global diante da eterna arrogância eurocêntrica, colonizadora e racista do Norte Global. É um estadista no pleno sentido da palavra.
Sei que mesmo entre nós, brasileiras e brasileiros, temos avaliações muito diferentes e até críticas a respeito. O fato é que num quadro de crise profunda da própria globalização neoliberal, combinada com crise climática num ponto crítico e quase irreversível, com disputa geopolítica por hegemonia global em um momento de aguda tensão e indefinição, Lula abre espaço e acaba sendo ouvido, sobretudo por aqueles e aquelas que se sentem sem voz no plano mundial em sua defesa.
Mas, precisamos encarar a nossa realidade do dia a dia. Temos sinais de alívio difuso, mas insuficiente diante dos vários desafios e do seu tamanho. Novas regras de ajuste fiscal não tem nada de ousadas, pois partem exatamente do ponto de vista que nem deveria ser o central: o ajuste fiscal enquanto tal. Isto ainda é neoliberalismo, infelizmente. Ou seja, submissão aos ditamos do “mercado”, especialmente do capital financeiro em sua avidez de acumulação, como prioridade absoluta da política econômica. É certo que existe o entrave do Banco Central, com sua autonomia, e sob a presidência de um do “mercado”. Imutável? Ou falta de ousadia em enfrentar de fato a tal autonomia. Afinal, não é algo constitucional. Assim como foi estabelecida pelo Congresso pode, teoricamente, ser eliminada.
Mas tal problema nos remete a algo mais central e mais complicado. Lula ganhou legitimamente o mandato de Presidente da República. O Estado democrático que temos não é só o Poder Executivo, pois temos os outros dois poderes com suas autonomias e legitimidades constitucionais: o Legislativo e o Judiciário. A relação de forças políticas no plano estatal contemplam estes três poderes. A avaliação das relações de forças consubstanciada nestes três poderes é o que o nome o diz, de forças. Ou, inspirado por Gramsci, relações políticas militares, que se medem constantemente para avançar ou recuar, ou, ainda, ficar “empatadas”, esperando o momento adequado para agir. É neste quadro que temos que avaliar Lula e seu governo, composto em base a uma relativa ampla coalizão, mas longe de representar a todas as forças.
Para não falar num vazio conceitual, vamos por os pontos nos is. Sei que é uma simplificação, mas ajuda, ver o Estado não só como constituído em três poderes mas, também, pela composição interna de forças de cada um deles. Para começar, as Forças Armadas são subordinadas ao Executivo e parte dele, definido pela nossa Constituição. Mas, sabemos, que elas ou parte delas, no seu interior, consideram-se um quarto poder. Demonstraram na história do país e até recentemente, no período de desconstrução autoritária e fascistasa do governo anterior, que são uma possível ameaça ao poder legitimamente constituído. Lula, já no primeiro mês, mostrou concretamente quem manda, enquadrando os militares. Mas, o fantasma de “garantidoras da Constituição” ronda nas casernas e tem adeptos entre as maiores patentes. Provavelmente, nesta frente, o Governo Lula, com apoio do Poder Judiciário, poderá avançar muito mais e afastar o fantasma de intervenções e golpes. Esperamos... mas a determinação do Governo não pode falhar e nem nossa vigilância.
O Poder Judiciário está se revelando muito firme em sua função, com legitimidade e atuando no seu devido quadrado constitucional. É de saudar tal autonomia, mas não foi sempre assim. O triste momento de desconstrução democrática e ameaças desde o Golpe e a onda do governo de direita com vocação fascista teve, lá na origem, uma mãozinha do Judiciário. Está bem agora, mas não custa ficar vigilantes. A estabilidade constitucional depende do Judiciário, mas ele não faz as leis e normas, só avalia e garante a legalidade.
A grande questão democrática que temos é a composição e papel do Poder Legislativo. Sua importância em qualquer forma de República Democrática é fundamental como Poder Legislativo eleito, mas com autonomia plena em sua atuação. Teoricamente e, menos, praticamente, é no Legislativo que a cidadania em sua diversidade se expressa. Gostemos ou não, a disputa democrática é a essência da atuação do Poder Legislativo, no nosso casso composto pela Câmara e Senado Federal, formando o Congresso Nacional. É a disputa da diversidade aí representada pelo voto que dá a vida e a legitimidade a tal poder. Em termos de correlação de forças internas do Legislativo, a expressão relação militares internas se expressa por números de congressistas, em partidos e blocos. Mas se pratica pelas negociações nos gabinetes e comissões e, especialmente, pela palavra e o voto em plenário, que determina o resultado possível legítimo na votação de leis e até de reformas constitucionais.
Bem, a composição do Legislativo se origina na disputa eleitoral periódica, segundo princípios constitucionais. Isto supõe partidos, também legalmente constituídos, para o registro de candidaturas, o pleito eleitoral periódico e quotas estaduais para formar o conjunto de eleitos na Câmara e no Senado. Já falei da desigualdade na representação pela regra de quotas (ver postagem no meu blog), que fixa uma mínimo (menores Estados) e um máximo (maior Estado), no casa da Câmara, e uma igualdade de três senadores por Estado, formando o Senado. Ou seja, com a Constituinte que tivemos em 1988 – o próprio Congresso Nacional eleito pelas regras do regime militar – manteve muito mais “garantias” para si mesmo, visando fortalecer o Poder Legislativo para que funcione como contrapeso do Poder Executivo. Instaurou entre nós um regime democrático de “conciliação” entre poderes. No meu ponto de vista, uma espécie de “encurralamento” da democracia, em última análise.
Como força política concreta, temos um Congresso dominado pelo Centrão, uma frente de interesses lobistas mais do que partidárias. Aliás, a representação de lobbies consegue ficar acima de partidos, que agem com pouca autonomia. Foi o Centrão que deu governabilidade ao governo de vocação fascista em contexto democrático, como é o Centrão que continua dando governabilidade ao Governo Lula. Bota trava política democrática nisto! A relação de forças políticas no Congresso é altamente desfavorável ao Governo Lula e, portanto, às esperanças da maioria que votou nele e nas forças partidárias com ele. A vitória de Lula foi proporcionalmente pequena em termos de votos, mas gigante pelo significado de afastar o risco autoritário e fascista no imediato.
Voltando ao ponto inicial, esta relação de forças políticas no Estado Federal do Brasil (“militares”, como prefiro), é muito desafiante para o Governo Lula e sua quase exemplar equipe de ministros para ser mais ousados. Tentar sempre é ousadia política e pode ser virtuosa. Mas o risco de perder ou simplesmente empatar é muito grande.
Por isto, penso que o Lula, ele mesmo, está sendo tão ousando no front externo, pois aí depende menos do Legislativo, ao menos enquanto atuação política, impactando e ampliando a legitimidade como representante estatal do povo brasileiro. Neste palco, o gigante Lula se sente determinado e está sendo escutado, mesmo quando criticado e causando mal-estar entre líderes de grandes potências. Vai conseguir? A situação das disputas hegemônicas é muito adversa. Mas Lula não é o representante de uma potência, somente uma voz que incomoda e faz tudo para ser ouvida, tendo a ousadia e legitimidade para isto.
Mas o que gostaria de apontar aqui, como uma questão para a gente pensar, é o que a atuação no front internacional pode significar para enfrentar o emperramento interno, especialmente na relação com o Legislativo e, no interior dele, com as forças mais ou menos ocultas que movem o Centrão. Fica difícil peitar o Lula como líder num mundo conturbado. Um fato fundamental é reconhecer que o Centrão não olha o mundo, mas mais os seus currais eleitorais, pois o dinheiro do lobbies corporativos não vota, financia. São cidadãs e cidadãos, nos seus territórios, que votam. E eles tem demandas e necessidades, muito urgentes. No Congresso, boa parte do Centrão vota agendas de interesse do grande capital, mas busca compensação no acesso ao orçamento, negociando com o governo as verbas para os seus redutos paroquiais. Bem ou mal, sem votos não dá para chegar como representante na Câmara. Mas para negociar com o Governo Lula é preciso ceder em algum lugar.
Esta hipótese é o que diz: hipótese. Mas acho razoável pensar nela. Hegemonia, no sentido de direção política conferida pela cidadania na sociedade civil, capaz de se impor com legitimidade, o Governo Lula não tem. Nós, cidadanias diversas, que nos pautamos por democracia intensa e transformadora, não conquistamos ainda hegemonia para ser a direção dominante sobre as “relações de forças militares” no aparato estatal. Ganhamos uma eleição disputadíssima pela coalizão conjuntural de forças políticas, sem organicidade, no contexto de ameaças de golpe. Ganhar eleição não significa automaticamente ter hegemonia, pois para uma parte que votou em Lula foi só para evitar o mal maior: o risco de ditadura.
Precisamos construir hegemonia democrática ecossocial transformadora para derrotar o fascismo estrategicamente e, no processo, enfrentar o poder do Centrão sobre os rumos da nossa democracia. Estamos diante de um desafio complexo, pois hegemonia emana de cidadanias ativas e coalizionadas, forjando um movimento de ideias e propostas de direção política. Hegemonia não é o Estado que confere, pois ela se conquistada previamente no seio da sociedade civil. Tendo hegemonia, o bloco de cidadanias ativas pode dar direção política e legitimidade ao Estado, especialmente nos Poderes Executivo e Legislativo. A construção e conquista de hegemonia se faz no dia a dia, nas rodas de vizinhança, entre amigos, nas ruas, bares, casas, clubes, no trabalho. São espaços de construção de hegemonia democrática a cultura, a educação, as mídias, as redes sociais.
Para finalizar, fica a pergunta: nós, como a pluridiversidade de cidadanias ativas, estamos fazendo a nossa parte visando desencurralar o Governo Lula?