sábado, 17 de junho de 2023

Cultura Alimentar: Base de resiliência e transformação ecossocial


Estou motivado a voltar à cultura alimentar, um tema recorrente em minhas análises de ativista por direitos ecossociais.[1] Não escondo a emoção que senti com o desfecho do caso das quatro crianças indígenas colombianas encontradas com vida, 40 dias após a queda do pequeno avião em que viajam no interior da imensa Floresta Amazônica. O acidente levou à morte da mãe, do piloto e de um agente indigenista. A façanha da sobrevivência em tal adversidade foi das próprias crianças sob o cuidado da irmã mais velha, de apenas 13 anos, que garantiu a sua própria vida e das menores de 9, 4 e 1 ano apenas. Como foi possível? Não foi milagre! Foi saber tradicional, transmitido de geração em geração, de convívio com o território, com tudo o que ele contem,  tirando daí a própria vida e sabendo como se virar diante de ameaças. Potência da cultura indígena, de um saber viver nos territórios, mesmo nas maiores adversidades, aprendendo a se proteger, a se orientar e se mover, demarcando pistas, buscando a água e o alimento necessários e resistindo.

Enquanto isto, aqui no Brasil  voltamos a ameaçar os remanescentes de Povos Indígenas com o  projeto – velho de mais de 5 séculos – de conquista, destruição de seus territórios e morte à seus modos de vida em sintonia com a natureza. A Constituição do Brasil de 1988 reconhece o direito dos povos às suas terras. Já deveriam estar todas demarcadas. Mas, a sina colonizadora, que ainda move a expansão avassaladora do extrativismo mineral, hidrelétrico, madeireiro e do agronegócio sobre territórios, nada respeita. E tem a maior bancada no Congresso Nacional para impedir a efetivação da demarcação das áreas de Povos Originários. Votaram às pressas o  tal “marco temporal”, legitimando a conquista e devastação dos seus territórios originários anterior à data da Constituição atual, outubro de 1988. É um absurdo não reconhecer que os Povos Originários são os legítimos ocupantes do imenso território, bem antes de qualquer conquistador e colonizador. Por sinal, são de antes de abril de 1.500

Esperamos que o STF defina a inconstitucionalidade do marco temporal. De toda forma, já perdemos muito do que os Povos Indígenas desenvolveram como saber sobre biodiversidade, animais e plantas, alimentos e medicinas, pois extinguimos muitos deles. Agora temos a única possibilidade, como sociedade brasileira, de garantir o reconhecimento dos direitos fundamentais dos povos indígenas e, com isto, garantir os seu modo de vida sustentáveis e os próprios biomas que ocupam, baseados no cuidado e na convivência, com respeito à natureza. Esta é a única possibilidade de continuar e nos inspirar para um novo modo de gerir o bem comum que nos dá a vida. Se o marco temporal prevalecer, O Brasil vai continuar a devastação e perder o muito que os Povos Indígenas tem a nos ensinar para voltar a nos conectar e conviver com os ritmos, os segredos e as maravilhosas potencialidades dos territórios. E, assim, evitar a catástrofe de uma crise climática sem controle para nós, a região e o planeta inteiro.

Motivado por estes fatos reais, voltei a pensar especificamente no elo entre alimento, natureza e sociedade, como condição incontornável do viver. O nosso modo de vida dominante, marcado por um capitalismo levado ao extremo, onde o que conta é transformar a própria natureza em mercadoria para acumular riquezas, é de rupturas radicais entre natureza e sociedade humana, apesar de não podermos viver sem o que natureza nos dá. Aliás, somos constituídos  dela e dependemos umbilicalmente dela. A vida humana, como todas as vidas, é parte da natureza, por mais que queiramos ter o pleno domínio sobre ela. Aliás, o esforço de dominá-la está nos levando a  extremas  rupturas com ela, ameaçando a integridade de seus sistemas ecológico e já provocando a crise climática, com consequências inimagináveis para a vida, humana e não humana. Mas nos faltam narrativas inspiradoras para refazer conexões e encontrar sentidos do cuidado, do conviver e do compartilhar, sem destruir e nem ameaçar os guardiões das matas, águas e campos, os Povos Indígenas.

O incrível é que o alimento, de algum  modo, sintetiza tudo isto como elo entre nós e a natureza, tanto de resiliência e resistência, como de dominação e destruição social e ecológica. Por isto, precisamos dar maior radicalidade à avaliação e ao debate da cultura alimentar em nossas buscas de caminhos de transformação democrática ecossocial.  A cultura alimentar dos povos carrega saberes e potencialidades de resiliência e transformação maiores do que normalmente considerados. A chaga da fome e a própria crise climática podem ser diagnosticas a partir de como o alimento é produzido na sociedade e chega ou não chega até as mesas de todas e todos. Os alimentos sintetizam muito do que são direitos democráticos ecossociais negados para excluídos e famintos por este sistema que tritura a natureza e, junto, tritura seres humanos. Não há como combater a fome e a miséria em nome de cuidar de gente, se, ao mesmo tempo, não estivermos cuidando da natureza, seiva de todas as formas de vida.

Ao longo das postagens no blog venho insistindo em duas questões fundamentais imediatas para, ao menos, dar a chance para que as novas gerações no mundo tenham a possibilidade de evitar a catástrofe ecológica e social que terão que enfrentar para poder sonhar e curtir a vida que lhes cabe viver no planeta. Isto como direito fundamental. Para tanto, cabe a nós evitar o pior desde aqui e agora. Isto implica em enfrentar radicalmente a lógica de desenvolvimento para a acumulação capitalista acima de tudo com uma perspectiva que integra virtuosamente o social e o ecológico. Tal desafio só será possível com transformações ecossociais ao mesmo tempo. Não há modelo a seguir, mas existem inspirações sobre como reestabelecer o que não pode ser rompido: a relação entre os processos e criações sociais, humanas, com o fluxo natural da vida, em simbiose, pois não há outra maneira de viver. Assim, o cuidado entre nós mesmos – fundamental na vida humana e todas as formas de vida – deve implicar no cuidado com as condições naturais que impregnam a vida. Tudo isto se exprime em cultura, em sua total radicalidade e abrangência, que implica em convivência, compartilhamento, troca respeitosa, potencialidades e limites combinados entre todas e todos, seres vivos humanos e não humanos, e a integridade dos sistemas naturais.

A segunda questão que considero fundamental, gestada ao longo da história humana, é o transformar conscientemente contradições e desencontros entre nós humanos  em potências de busca do melhor para todas e todos, inclusive a natureza.Trata-se de um modo de fazer radicalmente democrático, de disputas e tensões, nas circunstâncias dadas. De forma muito sintética, defino isto como concepção e prática de uma perspectiva democrática ecossocial transformadora: de busca de direitos ecossociais iguais para todas e todos em simbiose com o respeito radical dos direitos da natureza, a Mãe Terra.

São apenas visões estratégicas, mas dão uma direção para orientar o caminho. Mas o caminho precisa ser feito e, no fazer, precisa ser ajustado. Não há modelo a seguir e, sim, um sonho a buscar, atualizando-o sempre. É de processos sociais, culturais, políticos e econômicos que se trata, como criação humana nas circunstâncias históricas dadas, a cada momento.

Isto tudo me leva a insistir na cultura democrática a ser construída disputando. Concebo isto como um constante fazer estratégico de pensamento e ação, que se exprime na busca de hegemonia democrática a partir do coração e do chão da sociedade, um imenso ateliê de buscas e de fazeres coletivos. Nesta base, é possível definir o que demandar do Estado, que políticas e que regulações para o seu próprio agir e para ter força política de submeter e regular a economia para o bem comum coletivo. A cultura alimentar, pela conexão entre vida humana e natureza, é central. Como negócio, o alimento nos está levando ao desastre. Resgatemos a cultura alimentar em sua vibrante diversidade de sabores, cheiros, sentidos, significados, celebrações! Isto é buscar democracia ecossocial transformadora.   

 



[1]Dois textos recentes sobre o tema escrevi em 2018. Eles estão disponíveis em artigos do site do Ibase www.ibase.br. Um, sob o título “Cultura Alimentar e Resistência Transformadora”, foi publicado em 15/01/18. O outro, “O Prato de Comida Espelho da Sociedade”, é de 27/08/18.

sexta-feira, 2 de junho de 2023

Os Territórios: Direitos Coletivos dos Povos Indígenas


Levamos 488 anos para reconhecer o direito coletivo dos Povos Indígenas – povos originários – a seus territórios. Mas tal direito, cláusula pétrea na Constituição de 1988 – artigos 231 e 232 – ainda continua sendo questionado e ameaçado com o absurdo do chamado marco temporal, ou seja, 5/10/1988, data de sua promulgação, como se o direito não existisse desde antes de abril de 1500, pois seus ancestrais viviam já viviam aqui. A Constituição de 1988, finalmente, restaurou um direito que lhes tinha sido expropriado violentamente desde o início da colonização e ainda continua sendo nos dias de hoje, de forma implacável.

No processo, a Pindorama dos Povos Indígenas – “território das palmeiras” – se transformou no Brasil – do “pau brasil”. Carregamos na nossa identidade de nação o nome de uma commodity, o que diz muito das bases em que nos formamos e que continuam predominantes até hoje: um país de conquistadores, desmatadores, colonizadores e escravizadores.  Historicamente, depois do pau brasil, veio o ciclo da cana de açúcar, do ouro, do café, da borracha, até chegarmos às exportações dos extrativismos mineral e agronegócio,  de hoje. Ainda continuamos praticando um colonialismo interno, com invasão de territórios indígenas e de povos tradicionais, desmatando, queimando, grilando terras, “passando a boiada”. Até quando?

Estamos diante de uma das questões centrais de reparação de direitos em nome da justiça social em contexto democrático.  Mas como é difícil diante de uma lógica dominação férrea dos “donos de gado e gente”. Nunca poderemos dissociar a conquista de terras para mineração e agronegócio da expropriação violenta, assassina e destrutiva dos próprios Povos Indígenas e Tradicionais. Como nunca poderemos esquecer o outro tenebroso braço desta história: a escravidão negra para as plantações. Também ela, como forma de trabalho, continua até hoje, de algum modo. Mas o mais grave é que nunca fizemos a reparação, apesar de legalmente termos acabado com o trabalho escravo.

Enfim, as grandes questões ecossociais que temos estão no centro de um processo que se renova para nada mudar,  pois é a base de uma economia com DNA destrutivo, que cresce conquistando e destruindo, com um modelo de desenvolvimento assentado em commodities, pois sempre a serviço da acumulação das economias centrais do capitalismo. Não temos como enfrentar democraticamente injustiças ecossociais mantendo tal base de estruturas, relações e processos econômicos. Cuidar de gente e da natureza, como Lula 3 está propondo, exige mudanças estruturais profundas. Com conciliação política, como condição do exercício do poder, vamos continuar encurralados, enquanto a boiada vai passando e destruindo.

A farsa do “marco temporal” – PL 490/2007 – revela exemplarmente a profunda contradição das estruturas e lógicas em que assentamos, tanto econômicas como políticas. O marco temporal esconde o que é: uma “farsa colonialista”.[1] Mas foi aprovado na Câmara, com 283 votos a favor, contra apenas 155. Agora está para ser votado no Senado. Tudo para constranger a retomada da votação no STF do Recurso Extraordinário 1017365, da disputa de um território indígena, em Santa Catarina, mas que será referência para todas as disputas de indígenas no país.

Temos que rever coletivamente a destruição e a exclusão que foi imposta aos Povos Indígenas como um marco de justiça reparatória para com seus descendentes. Se há um marco temporal a reconhecer é de 1500 para cá, quando portugueses aportaram no que é hoje o litoral sul baiano e implantaram a sua destrutiva lei de colonizadores contra os “bárbaros” indígenas, em nome de um eurocentrismo “civilizador”, cristão e mercantil, depois capitalista. Não podemos reverter o que foi feito no passado, mas podemos, sim, reparar e, sobretudo, com uma contribuição fundamental dos Povos Indígenas originários, poderemos estabelecer bases ecossociais para todos nós e gerações futuras.

Precisamos reconhecer também que são os Povos Indígenas e tradicionais que sabem cuidar da natureza como fonte de vida e são os que mais podem nos ajudar no enfrentamento da ameaçadora mudança climática. O que temos preservado da biodiversidade e das florestas devemos muito a eles. Somos nós que precisamos deles, mais do que eles de nós. Mas não é assim que pensa o “Centrão”, das bancadas do agronegócio e mineração, um verdadeiro câncer que vem corroendo a própria possibilidade de uma transformadora democracia em busca de justiça ecossocial. E pior ainda é constatar que o “bolsonarismo” – inimigo declarado dos Povos Indígenas – está  por aí, muito vivo,  e será o grande beneficiado se a manobra no Congresso não for barrada.

Volto a afirmar que só as cidadanias em ação poderão desempatar tal disputa. O que nos falta para agir? Será falta de convicção sobre o quanto tal agenda é fundamental? Ou esperamos que um governo encurralado encontre uma solução milagrosa? A possível solução só poderá ser política, mas a política antes de ser institucional, nas esferas do poder, está no chão da sociedade. Precisamos acordar... antes que seja tarde demais.

 

 

 



[1] Com o marco temporal o agronegócio quer fazer valer o direito indígena somente para terras em que else viviam em 5/10/1988. Vale a pena ler o que nos lembra Eder Alcantra Oliveira. “Nossa hisóoria não começa em 1988: a favor da vida e contra a tese inconstitucional do Marco Temporal”. Combate Racismo Ambiental. 30/05/2023. Ed. Vespertina