sábado, 18 de maio de 2024

A Dor da Catástrofe e a Força para Dar a Volta por Cima

 


O também meu Rio Grande do Sul – o afirmo com profundo sentimento de uma espécie de migrante em relação à sua origem – onde famílias choram a morte de entes queridos e milhares sofrem a destruição de suas condições de vida, por um “dilúvio” devastador, está diante do desafio de se refazer e seguir a vida. Energia e determinação do povo sei que é algo intrínseco da “cultura gaúcha” e me sinto parte dela. Mas por mais importante que seja esta força cultural, será que ela poderá barrar os “donos do poder”, sempre atentos a possibilidades de negócios? Para eles, nada como uma calamidade para novas frentes de acumulação fácil, mirando os enormes recursos públicos que o governo federal terá que destinar para a reconstrução. As grandes empresas “abutres”  – empreiteiras de obas públicas, construtoras,  seguradoras, o trator de arrasto do agronegócio, entre tantos outros – ficam de prontidão em tais ocasiões e nunca irão se engajar numa reconstrução virtuosa do que são os territórios de vida e identidades das comunidades atingidas: seu lugar e endereço, seu lar, local de convivência com seus familiares, amigos e antepassados, de celebrações religiosas e festas?

Como milhões de brasileiras e brasileiros, passei dias sofrendo com a catástrofe e pensando em como contribuir, além da solidariedade na emergência, com ideias, reflexões e propostas sobre o que e como reconstruir as bases da vida quando tudo ou quase foi perdido. Não duvido da força das comunidades locais e de sua determinação em dar a volta por cima. Duvido muito de governantes e empresas, com seu “mantra do desenvolvimento”, que daí possa sair algo de novo, que fortaleça a resiliência de comunidades gaúchas, sua vibrante cultura e seus territórios de vida, diante da mudança climática em curso.

Antes de tudo, penso que precisamos valorizar e celebrar a solidariedade que brotou com força do seio da sociedade civil gaúcha e brasileira em relação às vítimas, prestando ajuda de emergência às milhares de famílias atingidas pelo dilúvio. Este é um gesto claro de se sentir parte e compartilhar diante de ameaças, o que dá esperanças renovadas no caminho de transformações que precisamos no modo de viver, no grande território do Brasil que nos cabe cuidar, enquanto um coletivo nacional de mais de 2012 milhões. Também saúdo a presteza e eficiência de setores governamentais para ações de emergência, do RS, de muitos Estados Brasileiros e do Governo Federal. A solidariedade e o acolhimento nestas ocasiões, com profundo sentido ético, indispensáveis ao viver,  apontam o cuidado, a convivência e o compartilhamento entre todas e todos. Está é uma potência que surge do seio da sociedade civil brasileira, uma base política indispensável, já existente, que pode ser mobilizada para a democracia ecossocial transformadora que precisamos. Ou seja, de algum modo, estão no nosso seio potentes atitudes e gestos de construção e de reconstrução de uma sociedade que tenha lugar para todas e todos, de direitos iguais, respeitadas as muitas diversidades.

Mas como isto pode inspirar as cidadanias locais, estaduais e brasileiras para pressionar politicamente o Governo Federal  e o Congresso, o Governo Estadual e a Assembleia Legislativa na busca de soluções que sejam baseadas em direitos ecossociais? Não podemos aceitar que a reconstrução se resuma a uma política de financiamento público para grandes obras, reconstruindo mais ou menos o mesmo, sem realmente mudar. Pior ainda,  ser apenas um grande aporte de recursos extraordinários que acabam se resumindo a uma oportunidade e frente de expansão de grandes negócios, com corrupção, como tem sido uma regra dominante. A reconstrução necessária é a que busca valorizar as potências e condições de vida locais, com perspectiva de direitos ecossociais, empoderando as comunidades em convivência com a dinâmica ecológica de seus territórios diversos. A hora é de reconhecer e valorizar a especificidade local. Não há um modelo único, por mais que o projeto seja tecnicamente bem feito, não será virtuoso sem considerar as especificidades ecológicas, vivências,  aspirações e culturas locais. Afinal, as cidades e as comunidades, assim como seus próprios territórios, são diversos e vibrantes por isto mesmo. Trata-se de uma grande oportunidade de olhar, descobrir e praticar a mais radical participação local, num esforço de busca coletiva de soluções entre sociedade civil e os setores do poder governamental, depois que venham as empreiteiras fazer o que sabem e podem. Neste momento, a primeira e fundamental reconstrução é da esperança no interior das comunidades atingidas, como base não só para uma superação possível, mas como um recomeço de um amanhã que pode ser melhor. Para a reconstrução ser virtuosa e de enfrentamento das ameaças, os atores mais fundamentais são exatamente os atingidos, suas comunidades locais, com a colaboração de ativistas, educadores, especialistas em questões ecológicas, agrícolas, de arquitetura e engenharia, identificados com as demandas da população local e que sabem ouvir e valorizar as demandes de gente que faz sua vida aí. Neste esforço coletivo amplo, com determinação de buscar as potencialidades de cada território e de sua comunidade, poderá ser recriado um novo mais resiliente e, ao mesmo tempo, mais com a cara da gente local e seu território.

As comunidades territoriais atingidas precisam, sem dúvida, de infraestrutura, mas com nova inspiração diante da necessidade de adaptação às dinâmicas de territórios submetidos à força das mudanças climáticas, que já estão acontecendo. Trata-se de refazer bases resilientes no modo de viver, especialmente produção e modos de organização da ocupação humana. Trata-se de lançar as bases ecossociais de organização de comunidades assentadas no cuidado e convivência, na relação e respeito ao território, no seu uso e preservação, nas regras de regulação ambiental e seus órgãos, na economia e, por fim, até no modo de conceber,  implementar, avaliar e aperfeiçoar as políticas públicas. O desafio é enquadrar os que devastam a vegetação nativa e as florestas, secam os banhados e alagadiços (esponjas naturais de armazenamento de águas), desmatam as encostas e, especialmente, acabam com as matas ciliares nas margens dos rios.  Afinal, dada a monstruosidade da tragédia, é fundamental trazer a vida, todas as vidas, humanas e não humanas, ao centro de uma reconstrução para um viver saboroso, sem ameaças. A natureza em si não é uma ameaça, é um dom e um bem essencial para viver. Está em questão o modo como a habitamos e a gerimos.

O maior causador da tragédia ecossocial ocorrida no RS é o desenvolvimento econômico movido em busca do lucro, destruidor e extrativista. Nunca é demais lembrar que o Rio Grande do Sul foi o pioneiro no estabelecer as bases do agronegócio e sua monocultura baseada em adubos químicos, agrotóxicos, sementes transgênicas. Daí, foi em direção ao Oeste e Centro, conquistando, desmatando, colonizando.  Mas também o RS nos deu um dos primeiros grandes pensadores e ativistas por mudanças na nossa forma de se relacionar com a generosa base natural que temos, o José Antonio Lutzenberger (17/12/1926 – 14/05/2002). Ele já havia, no então, alertado para o que poderia ocorrer no RS com o tipo de economia e o modo extrativista dominante. Foi também o inspirador e liderou o grupo que formulou um virtuoso Código Ambiental para o RS, desfigurado completamente por governos do período mais recente, especialmente o atual governador (já no primeiro mandato) e a sua maioria na Assembleia Legislativa.

Na verdade, precisamos nos convencer que não há uma solução ou resposta única para a grande área do Estado do RS, o número assustador municípios atingidos de algum modo e a enorme população diretamente afetada em suas condições de vida. De algum modo, há um problema no todo, dado que a mudança climática está longe de ser um fenômeno local. Mas as soluções tem que ter raízes locais com um enfoque de “territórios de vida”, para quem vive nele e dele depende, como um bem comum a ser cuidado e não exaurido, com sua potencialidades e limites, como nos ensinam Povos Indígenas e Tradicionais, assim como as muitas redes de agroecologia que se expandem pelo país. Enquanto prevalecer um enfoque de ocupação de áreas como “território de negócio”, de extrativismo e exploração, voltada para fora dos territórios, em vista de lucros o mais rápido e maior possível, as ameaças só serão intensificadas e cada vez mais destrutivas. [i] Estamos diante da oportunidade no Rio Grande do Sul – onde surgiu o Fórum Social Mundial por Outro Mundo Possível – de “recomeçar” buscando inspiração em novos paradigmas de viver, do local ao mundial, onde “muitos mundos cabem no mesmo mundo”, na genial síntese dos Zapatistas.

Que fique bem claro: emergências, quando muitas vidas humanas, inclusive não humanas, estão em questão, devem ser tratadas por ações de emergência como um direito fundamental, salvando vidas.  Reconheço que isto está merecendo a devida atenção governamental e despertou ampla solidariedade local e no Brasil inteiro. Mas e depois? Se surgiu a emergência é por ações humanas que as produziram, com responsabilidades diferenciadas, entre governos e atores empresarias, nas várias áreas. Há também responsabilidades no nível das comunidades locais, no modo como vivem e convivem com as condições locais. O grande desafio de enfoque e de prática social na reconstrução de vidas e meios de vida é a convivência com as potencialidades do local em que se vive. Algumas grandes obras acabam sendo necessárias porque nos ligam ao todo e porque precisamos todas e todos de bens e serviços para viver que só podem ser produzidos de forma mais complexa e concentrada em outros territórios e cidades. Esta visão de um paradigma de convivência com as potencialidades dos territórios se alarga em círculos, onde os locais formam conjuntos territoriais maiores integrados. A solução local é uma forma de reconstrução do global, onde não é o global que determina, mas o “global” (estadual, regional, nacional, internacional e mundial ) é a virtuosa integração dos “locais”. O princípio fundamental da convivência dos povos também deve reger o mundial como condição de preservação da integridade natural do próprio planeta, como bem comum da humanidade inteira e com a responsabilidade de conservá-lo para futuras gerações.

Sei que muita gente vai reagir desprezando o fundamental que é o “fazer de outro jeito”  aquilo que estamos fazendo, seja lá no Rio Grande do Sul, mergulhado numa catástrofe por intensas chuvas, ou em qualquer outra parte do Brasil e do mundo, como mostram as informações que circulam diariamente, nos meios de comunicação e nas redes digitais. Mas nossa parte, como brasileiras e brasileiros, é aqui, neste território grande e complexo de muita diversidade territorial e modos de viver, em que se forjou o Brasil com um trágico começo de conquista e desmatadores, dominado por colonizadores e extrativistas,  contra os Povos Indígenas Originários e com trabalho escravo, chagas dolorosas, nunca verdadeiramente extirpadas de nosso seio. Hoje fazemos o mesmo contra as maiorias que vivem em periferias urbanas e rurais, em biomas diversos, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. As emergências se tornaram uma espécie de “normalidade” entre nós, só variando onde acontecem e quando, em termos de territórios e comunidades atingidas.

A natureza não é a culpada pelas catástrofes. Pelo contrário, é o nosso modo de viver que as gera. Não há modo de viver sem se relacionar com a natureza, nossa grande Mãe Terra, tão bem definida pelos Povos Originários e Tradicionais. Este grande bem comum fundamental, com todos os complexos sistemas ecológicos que o movem, está sendo sistematicamente agredido pelo tipo de civilização e seu desenvolvimento movido pela busca de acumulação. A tarefa de mudança é hercúlea, mas inadiável. O desafio é começar por onde é mais urgente, no momento, e ir aprendendo o que e como fazer.

Companheiras e companheiros do Rio Grande do Sul, estamos juntos na empreitada cidadã de reconstrução democrática ecossocial virtuosa dos territórios de vida de vocês, que também é parte de nós todas e todos. A hora é  arregaçarmos as mangas, desde o lugar de cada uma e um, neste imenso Brasil, e fazer a parte fundamental – participar  com determinação e força – que cabe a nós e não podemos renunciar. Afinal, em democracia, como cidadanias diversas, somos as únicas forças instituintes e constituintes, não o Estado ou o Mercado. Mas como estamos longe disto!



[i] A contraposição entre “territórios de vida” em relação a “territórios de negócio” foi brilhantemente desenvolvida pelo grande geógrafo brasileiro Milton Santos.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Recuperar o Sentido do Comum e do Pertencimento: Uma questão central para uma democracia intensa

 

Estamos diante de um novo e enorme desafio para continuar a sonhar e acreditar que, por um virtuoso processo democrático, poderemos fazer as transformações ecossociais necessárias em busca de direitos iguais na diversidade, proteger a integridade do comum natural e criar modos saborosos de viver. O sonho democrático reemergiu com potência no Brasil com a vibrante onda de renovado sindicalismo e novos movimentos sociais dos anos 80 do século passado. Foi fundamental, também, o movimento da Anistia e a pactuação de forças expressa no “Diretas Já”.  A participação de cidadanias ativas diversas foi decisiva na luta contra a violenta ditadura militar e alimentou o processo de institucionalização democrática com a Constituição de 1988.

Conquistamos assim uma base legal fundamental, ainda em vigor, mas insuficiente por si só para uma democracia virtuosa. A tarefa das cidadanias apenas começava e não havia acabado. Fazer democracia exige um processo de engajamento contínuo e intenso no seio da sociedade civil, em suporte e mais além do que podem fazer as instituições de poder e as políticas públicas estatais. O resultado que temos está aí: uma democracia de importantes avanços, mas encurralada. Mudamos, sim, mas pouco e sem perspectivas de sair de um atoleiro complexo. Não estamos conseguindo avançar em transformações nas estruturas e processos de destruição e exclusões ecossociais que remontam à era colonial e parecem impossíveis de serem enfrentados. Pior ainda, voltamos a viver uma situação clara de ameaças à própria democracia duramente conquistada.

Com estratégias como a Lava Jato e o Golpe Parlamentar de 2016, entramos num processo de desconstrução das mais importantes conquistas democráticas de direitos e políticas públicas, até então. Tudo agravado com a perda eleitoral, em 2018, para um capitão truculento, com firma adesão da direita empedernida e com o apoio de amplos apoios de setores médios e populares, com discurso autoritário e com cumplicidade de oficiais militares e total adesão do financismo parasitário. O governo de direita entre 2019-2022, com aberta proposta autoritária de aprofundamento capitalista, “abrindo a porteira e deixando a boiada passar”, foi destrutivo de tudo que apontasse para direitos ecossociais e para pobres, altamente nocivo à democracia.  Não foi novidade se olharmos a nossa história,  onde sempre prevaleceu  um capitalismo assentado na destruição e exclusão ecossocial, voltado para fora e sem regulação.

Retornando ao nosso processo político mais recente, dos últimos 10 a 15 anos, é forçoso reconhecer que estava ocorrendo uma profunda transformação no seio da própria sociedade civil e que o bloco democrático-popular não havia dado a devida importância. Este processo, contando com poderosa estratégia de comunicação, financiada e articulada até pela extrema direita mundial, difundiu ideias e teses autoritárias e excludentes. Por pouco, muito pouco, não entramos numa nova etapa e nova forma de regime autoritário. Felizmente conseguimos conter temporariamente tal onda com a apertada eleição de 2022, quando venceu a ampla aliança em torno a Lula.

Mas estamos longe de celebrar o fim da ameaça à nossa frágil democracia. Na verdade, o que temos dificuldade de admitir é que estamos diante de uma direita contrária a qualquer forma de democracia participativa e transformadora. O câncer destrutivo já está fortemente implantado na sociedade brasileira, com apoios amplos dos setores do atraso, como agronegócio, mineração, milícias e crime organizado, redes mundiais da direita autoritária, além dos mercadores da fé. Além disto, está demonstrando grande habilidade em termos de comunicação, com fakenews, em disputar hegemonia política, no sentido de definir sentidos e rumos para o Brasil.

O que conhecemos de nossa triste história de colonização e massacre dos Povos Originários, da selvageria da escravidão, do mandonismo expresso no coronelismo e patriarcalismo, da truculência militar e dos milicianos a seu serviço, entre tantos “desastres”, tudo ajuda a entender as raízes históricas do que somos como país. Mesmo os muitos estudos e debates mais recentes, sobre dependência, centro-periferia, imperialismo, militarização e a globalização capitalista, tudo, sem dúvida, nos moldou e ajuda a entender o complexo que temos de exclusões, desigualdades, dominação e destruição. Por isto, são aspectos importantes em qualquer análise.

No entanto, os elementos acima são o quadro de fundo e não bastam para entender as especificidades de cada conjuntura política em nosso país. Precisamos, analítica e politicamente, avaliar como se forjam as correlações de forças políticas no momento presente e as “brechas” para ação. Isto é indispensável para qualquer ativismo e fazer político, mas especialmente para avaliar possibilidades e momentos para avançar com processos transformadores. Aliás, quem prega autoritarismo e combate a democracia também precisa avaliar os momentos e oportunidades nas correlações de forças.  Ou seja, sempre é e será fundamental entrar profundamente nos processos políticos internos de construção e disputa de hegemonia política. Trago isto para que tenhamos claro que precisamos nos entender a nós mesmos, ver quem é quem, o que se pensa e se “prega”, quem se comunica com quem e como isto chega até nós, aos nossos lares, espaços de vivência e trabalho, territórios, enfim, onde levamos a vida. Só para reforçar este ponto, o que considero potentes movimentos de cidadania ativa são aqueles movimentos sociais e políticos que fazem de tal tarefa de diagnóstico o seu alimento do dia-a-dia, permitindo ver onde há saídas e como agir.

Nesta altura, avanço uma hipótese de análise que aponta um grande desafio político do presente momento político nacional. Não estamos dando a devida atenção e importância ao “estrago” que a direita autoritária já fez, está fazendo e ainda poderá fazer com sua estratégia de construção e disputa de hegemonia política na sociedade brasileira. A “ficha ainda não caiu” para a maior parte das cidadanias ativas pela democracia ecossocial transformadora. Precisamos fazer constantemente uma avaliação política consistente e de um ponto de vista democrático do que esta direita renovada representa como força política e, assim, saber como avançar e onde incidir.

Temos muitos dados e estudos sobre as raízes coloniais e econômicas capitalistas de nossas destruições, exclusões, violências e desigualdades, com um poder estatal subserviente aos donos de gado e de gente. Este é um dado estrutural que trava da democratização mais profunda de nossa sociedade. Expandimos e crescemos, mas sempre destruindo a base natural e em benefício de poucos, pois até hoje somos um país voltado para fora e dependente de mercados globais, de costas para as maiorias que aqui vivem.

O que nos faz falta? Se as cidadanias em sua diversidade são os sujeitos instituintes da democracia estatal pelo voto, por que ficamos esperando mais intensidade do poder estatal nas transformações econômicas, ecossociais e políticas e não fazemos valer mais o nosso poder coletivo de propor e exigir tal intensidade? Afinal, o encurralamento da democracia é algo que revela o que somos como cidadanias ativas democráticas. Somos nós, cidadanias, que delegamos poderes  aos mandatados, pelo voto, para gerir as instituições estatais. Eles são e sempre serão dependentes das cidadanias que, soberanamente, os empoderam em funções estatais. Soubemos acabar com a ditadura décadas atrás, mas... cadê as propostas e as reformas de base? Como continuamos disputando ideias, princípios, valores e direitos numa sociedade fundada na exclusão e desigualdade? Sim, conquistamos políticas emergenciais e compensatórias, mas elas não avançam em direitos e transformações. Assim, ficam grandes e incontornáveis questões sem solução democrática a vista, o que gera um ambiente propício à volta de novas ameaças da direita, destrutivas da democracia enquanto modo de viver coletivo.

A política, por definição, é disputa, luta de classes, motor da história. Mas esta luta não é tão simples como a afirmação, pois existem nuances, divergências e alianças, rupturas súbitas, aventuras e surpresas. Enfim, trata-se de um processo político em permanente ação, tensão e evolução, para lados muitas vezes imprevisíveis. As democracias não são o fim de conflitos no seio da sociedade, mas são um pacto para a disputa segundo regras legitimadas e institucionalizadas de disputar, como virtude construtora em busca do possível na correlação de forças da conjuntura. Sim, rupturas são parte da história, até de democracias. Mas a proposta de democracia não passa, politicamente, de pacto sobre regras para o conflito de classes que move as sociedades, em busca de acordos possíveis. Por isto, para mais e mais democracia precisamos de mais e mais participação de cidadanias ativas e radicalizadas por direitos, os mais iguais e includentes possíveis, em cada momento histórico. A democracia não elimina o confronto de forças, mas se alimenta de tais lutas para gerar soluções possíveis para o momento histórico da correlação de forças sociais. Exige vigilância e participação permanente, Em princípio, não existe limite para propostas de leis e políticas serem aprovadas, desde que respeitadas as regras. Aliás, as próprias regras podem ser disputadas, sempre em disputas legítimas definidas na Constituição. Por sinal, até as Constituições podem ser mudadas se assim for o desejo da maioria. E o caso de “revoluções democráticas”, como o 25 de abril de 1974, em Portugal. Mas para gerar a “vontade coletiva” e, portanto, a demanda do que o Estado deve fazer para garantir direitos, primeiro temos que olhar para a sociedade, agir no seio da sociedade civil e disputar hegemonia política em busca de “direção intelectual e moral” do processo político coletivo, como bem define Gramsci.

A questão da hegemonia é sempre uma questão central em política. Hegemonia democrática tem que ser construída a partir do chão da sociedade: sentidos, princípios, valores, ética, direitos individuais e coletivos, identidade coletiva, propostas e políticas efetivas. Mais, qualquer política democrática só pode avançar por pressão participativa das cidadanias.

Este é e será o pano de fundo da política e das suas relações de forças sociais. A realidade histórica concreta de uma sociedade se move pela luta e participação entre as diferentes forças, com transformações, empates, recuos, tudo sempre momentâneo e não permanente, apesar dos tempos serem extremamente variáveis. O próprio processo de disputa pode levar a conflitos destrutivos e devastadores, como guerras internas ou entre diferentes agrupamentos nacionais, na realidade do mundo atual. O fato essencial, para a democracia, é a luta legítima em busca de mais e mais direitos, assentada na participação. Jamais a participação democrática se resume às eleições e ao voto amplo. Greve, ocupação, mobilização nas ruas, celebrações cívicas, passeatas, etc. fazem parte da luta democrática. Nas lutas, sempre é possível diagnosticar os interesses envolvidos, os princípios e valores éticos defendidos, os modos de ver e agir das forças em luta, as grandes propostas mobilizadoras. Isto é construir e disputar hegemonia como projeto de sociedade.

Estabelecido isto, volta à nossa situação atual, brasileira e, num certo sentido, regional e mundial. Estamos diante de uma direita que sempre esteve entre nós – hoje hegemonizada pelas forças capitalistas em busca da acumulação sem limites, nos vários domínios sociais da atividade humana. Mas, politicamente, estamos diante de um poderoso processo de renovação da parte das classes dominantes menos propensa a aceitar o princípio democrático de cidadania para todas e todos. Esta nova direita – cunhá-la de fascista não resolve o problema de fundo de quem ela é – tem uma estratégia política de afirmar seus interesses e valores como universais, para cada nação e o mundo como um todo. Ela vem investindo muito e elaborando discursos de modos de ver e propostas políticas para o modo de organizar a sociedade como um todo. Isto lhe dá coesão e vitalidade e nos leva à defensiva. Pior, estão conquistando adesão ampla em extratos médios e até no meio das classes sociais mais precarizadas, no Brasil e em muitos outros países estratégicos. Estamos diante de uma nova onda capitalista, para além da globalização das últimas décadas. Enfim, queiramos ou não, estamos com uma democracia encurralada e nós, cidadanias diversas que comungam princípios e valores democráticos ecossociais, também perdemos o protagonismo ativo no processo democrático.

Estamos diante de uma direita que está sabendo se renovar na defesa de seus interesses, ao menos mais do que nós que lutamos por democracia ecossocial transformadora. Há um ponto central em qualquer construção e disputa de hegemonia democrática que cabe destacar aqui. A construção de modos de pensar, de ver problemas e questões, de propor soluções e de exprimir isto tudo em ideias mobilizadoras que levam à ação, ao engajamento político.

Não falamos muito a respeito, mas o fato é que perdemos o protagonismo nas ruas. Hoje é a direita que vem se mobilizado, protestando e, até, organizando atos públicos com grande participação. A estratégia mais importante desta direita renovada é a comunicação, especialmente em redes sociais digitais  para atingir amplos  setores populares. Com falsidades? Sim, mas não só.  Além disto, com “mercadores da fé”no meio popular, de inspiração na direita norteamericana, pregando o individualismo extremado e a virtude da meritocracia, numa moral individualista de lutar por ganhar, onde Deus abençoa e recompensa os vitoriosos. Trata-se de uma versão religiosa da busca do interesse individual capitalista a todo custo, onde vence o mais competente, sem limites quanto a todos os demais. Tal individualismo extremado legitima o capitalismo como sistema de  “vitoriosos por mérito”. Não cabe aí nenhuma ideia de igualdade de direitos, fundamental nos processos de democratização, por sinal, processos sem limites enquanto sonho e desejo.

Para começar e tentar mudar, temos que reconhecer que, na disputa de hegemonia, a direita e sua “pregação” por poderosas redes sociais de comunicação, generosamente financiadas por grandes empresas, e  pela adesão dos mercadores da fé, nos levaram a um impasse ou, ao menos, ao curral em que estamos cercados, sem ver muitas saídas. O fato de termos ganho a eleição de 2022 não quer dizer que as cidadanias democráticas voltaram a ter hegemonia. Basta ver a composição do Governo Lula III para entender o encurralamento em que nos encontramos. Sem dúvida, é melhor do que um novo mandato para a extrema direita liderada pelo inominável. Mas não estamos enfrentando o problema de fundo que impede o avanço da democratização. E lá já se foi mais de um terço do mandato do atual governo.

Antes de tudo, precisamos diagnosticar profundamente a estratégia de comunicação a serviço do “boslonarismo”. Não basta o poder Judiciário fazer o que faz, criminalizando as tais “fakenews” e seus produtores e emissores, com cumplicidades dos super ricos proprietários das plataformas digitais. Precisamos nós mesmos entrar na luta da comunicação, de sentidos e rumos da democracia para o Brasil de direitos ecossociais na diversidade do que somos. São duas frentes de luta, do poder democrático instituído, e as lutas da cidadania no seio da sociedade. A virtude não vai vir do poder, pois se vier só pode vir do campo da sociedade civil e de suas cidadanias ativas.

Termino voltando ao título. A estratégia de comunicação a serviço da direita renovada está nos levando de volta a uma situação de perda do comum que nos une, pois acentua a sua diferença de valores e princípios que justificam a exclusão de amplos setores já hoje marginalizados e periferizados. Eles estão sabendo articular os fundamentos clássicos da direita e do fascismo e de autoritarismos  passados – “Deus, pátria e família”, mas de forma renovada, buscando a adesão de setores médios e populares, a meritocracia como virtude e não privilégio, a própria religião como definição de identidade comum numa concepção étnica excludente em termos de nação, que leva  a combater migrantes e os “diferentes”, praticam o machismo e aceitam a violência como legítima defesa, negam a ciência e a mudança climática, estimulam a colonização e ocupação de terras de Povos Originários e Tradicionais.

Enfim, estamos perdendo a disputa das ideias e propostas. E estamos em perigoso processo de perda de sentido do comum e do pertencimento à coletividade, essenciais para construir democracia. Isto é particularmente grave no meio mais popular das classes marginalizadas.