quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Massacre como o Ocorrido no Rio de Janeiro Pode Ser Considerado Parte de Política de Segurança Pública?

 O que aconteceu no Rio na terça-feira, dia 28 de outubro, é inaceitável em uma democracia que vale a pena ser vivida. Empreender uma “verdadeira guerra” em território bem comum de cidadania é um ato que só produz morte e nunca poderá ser considerado uma política para garantir o direito fundamental de segurança pública.

O que passa na cabeça do governador Castro? Bem, para quem até propôs um adicional para os policiais eliminar “criminoso” é revelador da afronta ao sentido mesmo de segurança pública numa democracia. Queremos direitos garantidos, mas não uma política que, sob justificativa de combate ao crime organizado, nega o devido processo legal na condenação e prefere o enfrentamento que acaba dando no que deu: muitos inocentes mortos por viver em periferia pobre, junto com criminosos que nunca poderão ser julgados por que eliminados. Aliás, se presos fossem, nossa política, que prefere o confronto, não garante a vida para quem é considerado criminoso, preso e julgado. Ao governo do Estado do Rio parece que só conta eliminar os considerados bandidos, sem se importar com os muitos inocentes que podem ser fuzilados, só por ter que sobreviver em território “de risco”.  Sr. Governador, para onde eles podem ir senão aguentar a falta de tudo que são as favelas e os tais “complexos?”. Basta e basta! Impeachment no Castro e mais oito anos de inelegibilidade!

A primeira razão de ser de uma política de segurança pública é para garantir iguais direitos a toda cidadania. Aliás, criminalizar o consumo de drogas só pode levar a situações assim. Não só matanças, mas crimes. Basta ver o que o Trump e o poderoso exército sob seu comando estão fazendo no Caribe e Pacífico. Abater simplesmente pode ser aceitável? Por que não prende e averigua? Isto vale para nós aqui, para nossas cidades. Quantos mortos ainda precisamos chorar e contar com esta política de “guerra” inútil? Até quando vamos aceitar tal agressão a um direito fundamental de segurança, individual e coletivo?

Bem, podemos divergir como cidadãos sobre a melhor política. Mas estamos realmente buscando uma verdadeira política de segurança pública em todos os níveis de governo? Concordando com muitos, considero a política de criminalização de drogas um erro e a pior forma de combater uma questão de vício e saúde, que sempre existiu e que a criminalização de seu consumo só aumento mortes e em qualquer lugar do mundo vem se mostrando ineficaz. Não seria melhor considerar o consumo de drogas como uma grave questão de saúde ao invés de usar arsenais de repressão que só estimulam mais e mais o próprio tráfico e seu investimento em armamento com armas letais e até bombas jogadas por drones, como noticiado e visto no caso de terça-feira, no Rio? A Suíça, centro financeiro mundial e até de lavagem de dinheiro do crime organizado – pouco criminalizado neste mundo globalizado – na questão das drogas tem uma política de saúde antes e acima da repressão. Vamos só imitar a lavagem de dinheiro e não os bons exemplos de políticas de cuidado com drogados da Suiça? É uma contradição, eu sei, mas vale a pena lembrar que boas políticas públicas sempre ficam atrás de mercados. Aliás, os traficantes são antes de tudo uma questão de mercado, de bom negócio e sua “ditadura”.

Bem, temos o imediato a tratar e encontrar formas de evitar que volte amanhã a acontecer: uma “guerra interna”, bem ao gosto de ditaduras repressivas e assassinas. Na verdade, simplesmente nada dá para esperar do Governo Estadual que temos, com grande conivência da própria Assembleia Estadual e um Judiciário... que deve muito, fazendo pouco para o que pode fazer. Afinal, é a institucionalidade do Estado do Rio que está em questão.

O que agrava tudo é constatar que os Governos Estadual e os Municipais não criam prioritariamente “virtudes” com suas políticas pois “deixam ao léu” as áreas periféricas e faveladas. Como lembrou-me minha filha, que trabalha na Barra mas mora em Santa Tereza,  sobre o verdadeiro terror e paralização da cidade do Rio: “A Zona Sul é outra cidade e outro Estado, não o Rio”. Precisamos de muito mais cidadãs e cidadãos do Rio que vejam assim os contrastes de um território comum com muralhas, cuidando a cidadania de “ricos” e promovendo a repressão/guerra aos pobres”. Isto não pode ser considerado como democracia efetiva.

A política de Segurança Pública que a democracia e a diversidade para ser cidadania necessitam nunca poderá ter como base a possibilidade de usar prioritariamente a repressão e a violência armada, ao invés de ser uma ação assentada na prevenção da violência.  O que aconteceu na terça-feira no Rio foi uma guerra interna do Estado contra a cidadania. Os inocentes assassinados não são simplesmente “mortes colaterais” em zona de crime. Se é “zona do crime”, foi o Estado negligente que permitiu se formar aí, exatamente nas periferias pobres e excluídas, longe do olhar do Estado e, no caso do Rio, da glamorosa “Zona Sul”. Temos uma cidade partida e políticas públicas partidas. O ocorrido mostra ação estatal desastrosa e até criminosa. “Balas perdidas” não existem, pois sempre são intencionais e dirigidas. Estamos diante de ação estatal que é um desastre, tanto na concepção como na execução. Inadmissível em democracia, que, aliás, só floresce desde o chão da sociedade, desde os territórios que habitamos e onde buscamos viver tendo por princípio o cuidado, cuidado com todas e todos e cuidado com a própria integridade dos territórios. “Favelas são cidades” e não zonas de crime!

Sei que esperar no imediato algo virtuoso em termos de políticas públicas no Rio é quase perder tempo e mergulhar no desespero. Mas culpar o Governo Federal é ignorar que a Política de Segurança, como vem sendo pensada e proposta,  precisa passar pela institucionalidade existe. Ou seja, depende de aprovação do Congresso, dominado pelo execrável “Centrão” – uma espécie de câncer implantado em nossa democracia institucionalizada, com suas virtudes e limites. No Congresso não predomina a busca do bem público possível. Antes disto, predominam os interesses paroquiais de “lobbies” e do tal “Centrão”, mais preocupado em emendas parlamentares para seus redutos eleitorais do que com a democracia e a busca do bem comum e de direitos iguais na nossa diversidade.

Finalizo afirmando que não teremos saída se a Segurança Pública não for pensada e formulada como base em direitos iguais. Mais, não avançaremos se nós, a diversidade de cidadanias ativas neste nosso imenso país, não tivermos um foco especial em tal política pública. Este nosso Brasil de múltiplas exclusões  e até “guerras internas” depende da nossa ação, como cidadanias ativas na praça pública e apontando caminhos para mudanças profundas, entre elas na Segurança Pública.  Não podemos esperar por milagres em políticas! Ou nós agimos, pois somos a base de políticas, ou nada acontecerá.

Rio de Janeiro, 29.10.2025

Cândido Grzybowski

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Os Golpistas Foram Condenados, Mas o Câncer da Extrema Direita Exige Terapia Cidad

 


A institucionalidade democrática do Brasil, sobretudo o STF, Procuradoria e Polícia Federal, pela primeira vez, respondeu de maneira eficaz condenando o núcleo central dos que haviam armado o golpe na transição de governo em 2023. Trata-se de uma ação sem precedentes em nossa história política. Lembrando a auto-anistia que se concederam os criminosos da ditadura militar de 1964-1985, estamos diante de uma demonstração para nós mesmos e o mundo que democracias podem ser extremamente virtuosas diante dos poderosos, civis e/ou militares, que se acham acima da lei. Isto é um fato histórico a celebrar.

No entanto, não podemos baixar a guarda, pois o problema político da extrema direita continua vivo entre nós, no seio da sociedade civil brasileira, como um câncer destrutivo que pode levar à morte a nossa democracia. Pior, ele tem laços fortes com algo que está presente em muitos países, como se fosse uma pandemia política que se expandiu e contaminou o mundo quase completamente.

Na falta de um imunizante conhecido que fazer? As cidadanias ativas em disputa radical de princípios éticos democráticos, valores e ideias virtuosas, com capacidade de transformação de situações, são uma das únicas possibilidades  que temos. Mas o mundo pode estar caminhando para uma terceira guerra mundial catastrófica.  Os que tem o dedão no gatilho que pode disparar um imenso arsenal nuclear destrutivo do planeta como um todo estão fora de nossas possibilidades como cidadanias e governos no grande Sul-Global. O vergonhoso genocídio promovido por Israel sobre o povo palestino, com o suporte incondicional dos EUA, mostra claramente que falta pouco para um desastre planetário.

Nós estamos aqui, no Brasil, que até no nome carregamos uma história de destruição, de desmatamentos, violência e morte, como nos lembram os Povos Indígenas e os milhões descendentes dos escravizados. Mas temos possibilidades, mesmo sendo limitadas, de fazer valer modos mais virtuosos de viver, que garantam uma democracia de direitos iguais na diversidade, de cuidado com nossa gente e com a  preservação do território que nos pode garantir condições de bem viver. Bem ou mal, no tabuleiro mundial, sem arsenais ameaçadores, o Brasil hoje conta como voz a ser ouvida.

Temos que ter consciência do nosso tamanho e do que somos como povo e nação. Estamos entre as maiores populações e gerimos um dos territórios maiores e dos mais biodiversos do Planeta Terra. Temos a chance de fazer parte dos BRICS em busca de um mundo mais igualitário na diversidade. E temos, gostemos ou não, um líder político como Lula de projeção mundial, que pode ajudar na gigantesca tarefa de agir como cidadanias conscientes de seu papel, tanto aqui como no mundo todo.

Mas sabemos que o câncer destrutivo está ainda em nosso seio. Ele não foi condenado, menos ainda ameaçado de ser extirpado. Está livre e usa da fé como liga forte, dando unidade a seguidores. Pior é termos  forças policiais que parecem, em muitas ocasiões, até conviventes com as gangues do crime. Derrotamos um de seus projetos destrutivos políticos recentes, a destruição da democracia que conquistamos com suor e sangue. Os golpistas agiram em nome de um Brasil para poucos, de imposição de uma ditadura e de negação de direitos iguais básicos para viver e ser gente. Chegaram a  propor abrir totalmente a porteira do crime, para a boiada das milícias, traficantes e grileiros passar impunemente, como quizesem, matando gente e outras formas de vida, desmatando, extraindo a riqueza dos territórios e contaminando com mercúrio e agrotóxico os alimentos, os rios e o ar que respiramos. No momento, condenar os golpistas  é muito e, sem dúvida uma demonstração de democracia viva. Mas olhando o amanhã, é ainda muito pouco, pois o câncer está vivo em nosso seio. Seus líderes foram condenados exemplarmente. Mas seus seguidores e líderes sorrateiros andam por aí. Sempre podem armar novos golpes.

Sabemos que temos uma institucionalidade democrática a preservar. Mas ela é,  a seu modo, insuficiente para nos dar uma democracia transformadora das relações sociais e das precariedades de todos os tipos existentes em nosso seio. Precisamos almejar mais bem viver para todas e todos. Mas, para tornar tal sonho possível  devmos lutar com determinação, com ativismo transformador deste os territórios – bens comuns em que vivemos. Não é aceitável que milhões ainda tenham que, a cada dia. viver sem saber se terão comida para si mesmos e os seus entes queridos à noite. Não é admissível que milhões de nós se sintam discriminados por sua cor de pele, por suas opções sexuais, por seus desejos e sonhos.

Vamos focar direito no que estou chamando de câncer no nosso seio. Não considero a prática do centrão no Congresso como algo democrático nem tolerável. Sua primazia é o próprio bolso e o privilégio do cargo, como um direito adquirido sobre os direitos de todos os demais da coletividade. Isto não tem nada minimamente virtuoso. Sim, a institucionalidade democrática existente produziu isto. Ou melhor, nós produzimos isto como cidadanias com o voto e o direito de escolher. Lamentavelmente, aceitamos ser enganados, roubados... talvez por uns trocados ou favores. Sem dúvida,  muitos precisam desesperadamente de alguma ajuda. Mas vale a pena se vender hoje e amanhã continuar a ter que viver a sina de se vender novamente?

Bem, eu sei que sou, em termos de condições de vida, um privilegiado que teve oportunidades para estudar e depois bons empregos. Nunca passei pela  necessidade de er que  me vender por alguns tostões para ir levando a vida. Sei que tenho uma obrigação maior que muitos para ajudar a reverter este quadro. O câncer maior  que precisa de terapia intensiva é a cura da exclusão social praticada contra milhões de nossos conterrâneos. Este maldito câncer precisa ser extirpado, para ontem.  Mas a direita viva e com seu modo sorrateiro de ser e agir não deixa que algo mude e afete os seus “direitos conquistados”, Esta é a verdade afirmada e reafirmada, como se normal fosse ser assim.  Mas também é verdade que a terapia ou vem da arena política ou nunca virá.

É nestes termos que caracterizo o câncer da direita presente em nosso cotidiano, sordidamente implantada e alimentando o favor como forma de manter cidadanias subordinadas aos seus interesses, nesse nosso imenso país das diversidades sem fim. É esta espécie de políticos que acaba sustentando os golpistas, sejam quais forem, desde que seus interesses mais paroquiais sejam atendidos, acima de qualquer interesse público e democrático. A direita engravatada nas esferas do poder, sem ética e sem compromisso político com o bem comum, encurrala a democracia e encurrala a institucionalidade.

Mas, no final da conta, temos que reconhecer que a direita do Centrão é legitimidade pela institucionalidade que temos. Ele não representa exatamente a cidadania sofrida. Ela se vale de tal cidadania pelas regras de nossa institucionalidade, onde o favor que subordina está acima do direito. Parece que isto tem a ver somente com a falta de consciência cidadã. Pessoalmente considero muito mais complexa a questão. Temos estados federados, extremamente diversos em todos os aspectos, a começar por tamanho da  população total, a cidadania constituinte. Cada Estado Federado, independentemente do tamanho de sua cidadania,  tem três senadores, seja o menor dos Estados ou o maior. Donde vem a distorção na composição do Senado? Será que não precisamos de uma profunda reforma democrática da política institucional de representação, dando maior equilíbrio na representação final? O presidente é eleito pelo voto igual em valor, algo mais democrático impossível sem dúvida. Mas deputados e senadores não, pois dependem do território em foram votados. Temos um mínimo de 8 deputados para os menores  Estados e um máximo para os aqueles maiores. A desigualdade é legitimida pela institucionalidade. Será que não podemos inventar algo mais virtuoso para um equilíbrio de cidadania instituinte com o seu voto?

Sei que estou fazendo um desabafo de mal-estar em meio a euforia da justa condenação dos “graúdos” chefões que se consideram acima da lei democrática e que pensam poderem fazer prevalecer  a sua vontade. Na verdade, nem tenho proposta para os problemas de nossa institucionalidade em relação ao monstrengo do Centrão no Congresso, que paralisa praticamente tudo, especialmente qualquer  política mais virtuosa e transformadora em busca de direitos iguais. Mas vale enfatizar o muito que temos que fazer para extirpar possíveis golpistas instalados nas instâncias do poder democrático, imunes, com poder de barganha a partir do Congresso, instância democrática, mas que poderia ser mais representativa...O coronelismo numa foi virtuoso, mas ainda persiste em nossa institucionalidade política. Penso que deveríamos dar mais atenção a tal problema. Não estou convicto que a distorção legal da atual representação seja compatível com a democracia transformadora que precisamos, até para os que vivem nos menores Estados Federados.

A questão da representação que levanto é uma preocupação de longo prazo. A condenção dos golpistas a celebrar e lançar foguetes não redime enquanto lutadores por democracia. Mas a tarefa de tornar a democracia cada vez mais virtuosa precisa de muito mais. Termino dizendo, que podemos sonhar com mais, sem medo de ser felizes.

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

NAÇÃO, SOBERANIA POLÍTICA, IDENTIDADE E CULTURA

 


Estou intrigado conosco mesmo, analistas, ativistas e organizações de cidadania  portadoras de perspectiva de transformação democrática ecossocial, para garantir direitos iguais na diversidade como povo brasileiro. Qual o porquê do nosso quase silêncio e falta de reação em relação às questões que o título anuncia? Isto em um contexto explícito de ataque do Trump, presidente dos EUA, à nossa institucionalidade democrática e acordos comerciais se julgando no direito de impor, de forma unilateral, taxação de 50% sobre as nossas exportações a seu país e condenar membros do STF, que estão julgando o líder da extrema direita e seus cúmplices pela tentativa de golpe de Estado e imposição de uma ditadura.

Não há dúvidas que estamos sendo agredidos de forma imperialista por Trump, com a justificativa diversionista de estarmos condenando quem tentou o golpe na transição de Governo. É um atentado vindo dos EUA como potência à nossa soberania política. Sim, temos até muitas análises a respeito e lembrando que não estamos sendo uma exceção no caso da arma comercial usada, que Trump impôs a muitos países com a justificativa do seu projeto MEGA. Mas por que não se registra uma reação cidadã forte no seio da sociedade civil brasileira contra o ataque à nossa soberania e democracia?

Até temos reações dos setores da economia afetados, mas pressionando, como sempre, por políticas compensatórias. São as vozes do tal sujeito “mercado”, pouco comprometido com direitos e democracia transformadora. Claro, a taxação sobre exportações implica em perdas econômicas e de empregos no Brasil. Mas estou preocupado com o nosso papel de cidadanias em luta por direitos democráticos para todas e todos. Vamos simplesmente esperar para ver como fica? E onde está a defesa de nossa autonomia e soberania como nação diante da agressão? Que riscos representa para a institucionalidade democrática duramente conquistada? Vamos nos contentar com a melhora nos índices de avaliação do Governo Lula?  Será que não é grave o fato que haja vozes no nosso Congresso que estão até apoiando a agressão econômica e institucional dos EUA e sua justificativa?

Devo reconhecer que existem análises sobre a real motivação do ataque. Concordo com Reynaldo Aragão que  a questão fundamental na motivação da agressão  dos EUA tem a ver, como central, a ousadia do Brasil de regular as grandes plataformas  digitais, sobretudo pelo não compromisso delas com o que é difundido pelas redes sociais. Com seu alcance global, o domínio  pelas big tecks norte-americanas é até aqui uma evidência  e uma possível base para a continuidade da hegemonia capitalista dos EUA, ameaçada no processo de busca de nova ordem global. Por outro lado, penso que talvez é ainda mais pertinente a análise de José Fiori, em entrevista a Tutaméia, ao afirmar que o problema deve ser colocado num contexto de terceira guerra mundial contra a ousadia dos BRIS em recompor o multilateralismo abalado e criar novas bases para suas economias, até com o abandono da hegemonia do dólar nas transações globais, usando suas próprias moedas. Acho os dois argumentos muito mais pertinentes do que a justificativa da ação do STF contra Bolsonaro e seus cúmplices. Isto, sem dúvidas, é diversionismo ou camuflagem, visando o grande público.

De todo o modo, existe o fato real da agressão ao que o Brasil é para nós mesmos: uma nação soberana. Lutamos muito para nos livrar da ditadura militar alinhada com a doutrina emanada dos EUA de combate ao comunismo. Diante de prisões arbitrárias, torturas e mortes de opositores, mais rígida censura sobre a comunicação e expressões culturais críticas, foi difícil conquistar uma institucionalidade democrática e buscar caminhos que garantam direitos a todas e todos, sem exclusões,  como parte de uma nação soberana. Com a democracia, tendo potencialidades e limites, mas nossa, ainda nos falta muito para sermos uma nação capaz de priorizar o bem de todo o seu povo, em nome do cuidado com a gente e a natureza, enfrentando poderes internos e externos que dominam nossa economia e impõem limites à nossa capacidade da democratizar de forma transformadora.  Mas é uma conquista que vai avançado e retrocedendo, aqui e lá, apesar de tudo. O que significam as agressões lideradas por Trump como ameaça destrutiva real à nossa democracia e poderes instituídos?

Considero que, neste momento,  estamos diante de um desafio que está muito além dos poderes de Estado para nos defender como nação. Por que não acontecem mobilizações como quando lutamos contra a ditadura nos anos 1980?  Ou a mobilização cidadã pelo impeachment do Collor em nome da ética na política no início dos 1990? 

Antes de tudo, lembro que no meu tempo de jovem universitário, nos anos 1960 e 70, particularmente puxado pelo movimento estudantil e organizações de esquerda, tínhamos um clara visão e fazíamos denúncias e promovemos grandes mobilização contra o imperialismo dos EUA, suas agressões e seu controle sobre nossa soberania e de todos os países da América Latina. Tínhamos até um mote: “Go home yankees”.

Estou preocupado com a falta de reações no chão da sociedade. Na verdade, sem um explícito e amplo apoio cidadã, sem a luta pela autonomia e contra a hegemonia dos EUA, ou outras se necessário for, os nossos poderes constituídos se acanham, apesar de legitimados pelo voto cidadão. A verdadeira causa é domínio desproporcional de um “Centrão” nada comprometido em ter uma potente democracia que priorize as maiorias da Nação, muito além de seus interesses corporativos e paroquias.

Sim, temos uma institucionalidade democrática, mas acaparada por forças e interesses corporativos internos, com poder real de veto como se o “mercado” e o agronegócio fossem expressão de cidadania e, portanto, se sentirem os árbitros maiores sobre direitos a defender e que políticas implementar democraticamente para o bem de todos, muito além de seus próprios bolsos.  Temos uma “democracia encurralada” por interesses corporativos, que atropelam o próprio sentido de buscar e zelar pelo bem comum acima de tudo, tendo soberania e autonomia como nação soberana.[1] O lucro e acumulação privada não podem estar acima dos direitos iguais, nem bloquear o poder do Estado Democrático Brasileiro e sua legítima capacidade regulatório e legítimo poder de julgar em defesa do bem comum.

Bem, não há dúvidas que se trata de relações de forças políticas em disputa. Precisamos da institucionalidade democrática expressa no Estado mas que seja aberta a ampla participação cidadã como força real na definição de  políticas virtuosas e que priorizem o comum e os direitos iguais a toda a população. Mas isto exige que as cidadanias assumam seu papel constituinte e instituinte decisivo. Sem organização e participação cidadã isto  não acontecerá e o espaço da política será dominado por interesses e forças de acumulação. O quando real se completa com  toda uma história de vergonhosas exclusões, racismo, colonialismo, patriarcalismo, periferias, violência e negação de direitos fundamentais.

Excluídos e periféricos entre nós resistem bravamente  para sobreviver. A única saída possível para eles  é se organizar como forças cidadãs e disputar direitos e até o próprio sentido de se sentir parte de uma nação democrática e soberana. Se aí, entre o povão, não se forjarem forças coletivas determinantes do que podemos ser, não teremos capacidade para superar as múltiplas exclusões sofridas no dia a dia, pouco avançaremos em termos de direitos iguais na diversidade. Mas também nem teremos uma forte soberania e força para enfrentar ataques externos.

Voltando à questão que aponto acima, não nego que tivemos como sociedade civil brasileira grandes momentos históricos a celebrar. Mas não podemos nos contentar, enquanto cidadanias, com o pouco conquistado no passado. Nem esperar que transformações virtuosas da situação possam vir dos poderes constituídos, sem potente ação política cidadã que incida neles, contrabalançando as forças sociais que priorizam a defesa de seus interesses privados. Em última análise, precisamos de Economia e de Estado, mas que priorizem o bem viver de toda a população.

Na conjuntura atual, de mudanças geopolíticas e imposição de regras contra a nossa soberana como nação, percebo certo silêncio das ruas, da falta de indignação e revolta diante de poderes de fora que atentam contra nossa soberania como nação, nossa identidade e cultura. Mesmo tão desiguais na atualidade, o que temos é a nossa nação, pois nela e sobre ela é quer podemos ser sujeitos a reivindicar direitos, baseados nos princípios éticos da democracia: liberdade, igualdade, diversidade, solidariedade e participação,  que deveriam estar acima de interesses privados e a serviço de seu povo. Ataques como o que estão em vigor nesses dias, da potência hegemônica em crise, deveriam nos levar a reagir, pois criam uma situação grave ao limitar ainda a nossa autonomia em definir nosso destino.

Existe algo que assinala alguma esperança: os BRICS e a diferença que nele está fazendo o Lula, como nosso presidente. Mas quem, na diversidade das cidadanias deste país, se preocupa com as possibilidades que os BRICS podem significar como contenção da potência hegemônica e militarizada. Penso que esta coalização, em busca de cooperação para um mundo mais multilateral, não é pouco em termos de enfrentar a hegemonia decadente dos EUA. Pelo contrário, é algo potencialmente transformador. No entanto, como diz a canção dos tempos de luta contra a ditadura, “esperar não é saber”. Fortalecer os BRICS é uma tarefa comum das diversas cidadanias dos países integrantes da aliança, ela também com contradições internas.

Talvez precisemos colocar mais no centro a importância e a disputa de sentido de nossa identidade e soberania como nação para os desafios internos e externos. Em minhas análises, destaco a potente cultura que temos em suas muitas expressões, dada a diversidade interna da nossa própria população. Cultura que também tem raízes no potencial natural de nosso território nacional para poder se organizar  democraticamente, com respeito às  diversidades de modos adaptados de produzir as condições do viver.   Precisamos fazer desta base nossa potência e identidade nacional qualificadora da soberania. Claro que precisamos de economia potente também, mas não para servir somente a uma pequena parcela de “donos do mercado” e seus aliados políticos no Congresso.  

Sei que a própria ideia de nacionalismo e soberania é uma dificuldade política e um déficit no campo da esquerda. Mas para disputar internamente hegemonia democrática e potência transformadora, em termos de direitos iguais, a soberania nacional também é uma condição. O capitalismo prioriza o seu domínio sem limites e, num certo sentido, descarta totalmente democracia soberana fundada na cidadania nacional. Não teremos verdadeira soberania e autonomia para intensa democracia só contando com o Estado. A resistência aos ataques e imposições externas é também uma necessidade para termos uma nação democrática soberana em busca de influência para compartir o bem comum planetário, onde cabem muitos mundos diferentes com seus bens comuns compartidos.

Meu estranhamento é a passividade e a espera, sem agir e mobilizar nossas forças como cidadania, com sua legitimidade de instituintes e constituintes da democracia e da soberania, com todo seu poder de resistência. Não dá esperar potência de um Governo encurralado pelo Congresso. Temos uma espécie de câncer político autoritário destrutivo. São forças agindo no seio da sociedade com expressão forte nas relações de poder existente. As suas manifestações  públicas até aqui demonstram satisfação e apoio diante da conjuntura de agressões externas do Trump, mesmo que sejam diversionistas, podem enfraquecer a capacidade de reação interna do Brasil. Lamentavelmente, isto faz parte da correlação de forças políticas e da disputa de hegemonia democrática desde o chão da sociedade civil, combinadas com os poderes no Estado democrático que temos. Mas não são aceitáveis, de forma nenhuma, as agressão à soberania democrática que é de todo o povo brasileiro. Até nesta questão precisamos assumir nossa parte de cidadanias para conter a extrema direita autoritária, que busca também apoio externo, seja qual for, para se impor no Brasil.

Concluo afirmando que não vamos avançar democraticamente  sem enfrentar as agressões externas, visando manter um capitalismo globalizado a todo custo, sob o jugo de imperialismos, quaisquer que sejam. Por isto, penso que iniciativas de mobilização e agregação de forças de cidadanias democráticas, diversas e com sua potencialidade, são fundamentais num contexto de agressões externas que podem crescer. As imposições de fora, combinadas com a extrema direita  autoritária interna, são um ataque à institucionalidade democrática como nação soberana, que lutamos para conquistar. Não dá para ficar calados e esperar diante de tal situação.

 

 

 

 

 

 



[1] Nas minhas postagens no Blog Sentidos e Rumos, de forma sistemática, trato desta questão do encurralamento da democracia brasileira.

terça-feira, 8 de julho de 2025

O Que Fazer Como Cidadanias Diante das Mudanças Geopolíticas da Atualidade

 

Participei nos dias 5 e 6 de julho, no Rio de Janeiro, de uma oficina de imersão do INP – Instituto Novos Paradigmas, de Porto Alegre, em parceria com IDHES, BRICs Center/PUC-Rio e IBASE sobre “A crise do Multilateralismo e os Caminhos do Sul Global”, nos dias em que se realizava na cidade o encontro dos países membros dos BRICs. Surgiram muitas ideias e propostas estimuladoras, uma espécie de mapeamento de questões para cidadanias ativas em luta por democracia, sem chegarmos a muitas conclusões consensuadas. Como o evento foi inspirador em muitas questões, resolvi fazer um apanhado do que me pareceu que merece atenção de um ponto de vista de democracia ecossocial transformadora, que venho discutindo nas mais diferentes postagens do meu blog “Sentidos e Rumos”. Isto não é e nem pretende substituir o documento completo que o INP vai produzir como resultado de um trabalho coletivo, certamente com muito mais ideias e propostas.

Destaco em primeiro lugar, a importância da iniciativa do INP em nos interpelar para a questão do multilateralismo e os BRICs tratado dominantemente como questão de governos do Sul Global. Ela é também uma questão de cidadania que, talvez, não está recebendo a devida atenção de nossa parte.

Uma primeira grande questão são os enormes riscos de tragédia no ar, para além da geopolítica, causados pelas loucuras do governo de extrema  direita do Trump, para manter a todo custo a hegemonia dos EUA, com a sua proposta MAGA -Make America Great Again, hoje ameaçada inclusive pelos BRICs. A proposta pode ser destrutiva e até nos levar a um conflito atômico de ordem mundial, com uso de seu enorme arsenal militar e bases espalhadas pelo mundo.

No entanto, cabe ressaltar a importância e a oportunidade dos BRICs, claramente apontando outro mundo possível, mais includente e próspero. Esta iniciativa de governos do “Sul Global”, dado o seu tamanho em população e PIB, aponta uma possibilidade de outros caminhos, mais virtuosos e minimamente transformadores do poder mundial vigente. Destaco algumas análises a respeito.[1] Mas será que, de uma perspectiva de democracia transformadora do capitalismo globalizado e financeirizado dominante, esperar que a aliança dos países do  BRICs prospere será suficiente para a multiplicidade de situações e necessidades dos povos existentes no mundo?

Faço um destaque de algumas questões que o evento INP me permitiu captar, como uma espécie de contribuição às análises e debates que tem muito a destilar como ideias-força para nosso ativismo cidadão, que demandam pesquisa, análise e ação. São desafios, acima de tudo:

               . A manutenção da integridade dos sistemas ecológicos do Planeta Terra como bem comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos.

               . Redução imediata e drástica de desmatamentos e queimadas, de plásticos e produtos tóxicos, da poluição das águas de rios e mares.  

. Redução e até eliminação da extração e do uso de energia fóssil como principal causa das emissões de efeito estufa e mudança climática.

.  o bem viver como nosso ideal de um pilar para um “outro mundo”, sem deixar nenhum lugar ou povo de fora, construindo uma biocivilização universal.

. Buscar sistemas políticos de democracia ecossocial transformadora em busca de direitos iguais na diversidade.

. Construir um mundo onde cabem muitos mundos, como nos lembram os zapatistas do México.

. Trata-se de termos um mundo como um tapete global de alternativas territoriais, como bem define e articula a Global Tapestry of Alternatives ( iniciativa da Índia).

. Como prioridades de cidadanias planetárias lutando pela radicalização da democracia precisamos combater toda as formas de regimes de dominação e exclusão, racismo, discriminação de gênero, de migrantes e a intolerância cultural e religiosa.

. Precisamos de paz pelo mundo inteiro, sem guerras, sempre priorizando a negociação e a busca de acordos de cuidado, convivência e compartilhamento, sem dominação de um povo sobre outro. Um objetivo estratégico de nossa ação deverá ser impor, de forma democrática, a redução de arsenais, bombas atômicas e as guerras pelo mundo.

. Tudo isto nos pode levar à multipolaridade e às democracias vivas como alternativa radical ao capitalismo globalizado e financeirizado, com seu eurocentrismo e “colonialidade” como paradigma civilizatório.

Estamos muito longe de tudo isto, mas já existem sementes promissores lideradas por Povos Tradicionais em defesa de seus territórios e modos de vida, multiplicação de iniciativas agroecológicas, cidades sustentáveis, coleta e reciclagem de produtos descartados, governos participativos, reservas protegidas e reflorestamentos com espécies nativas, despoluição de rios, iniciativas de transporte livre em cidades, para lembrar algumas iniciativas virtuosas e inspiradoras.

Para finalizar, penso que tudo isto e muito mais podemos tomar como nossa tarefa de cidadania e intervir determinados nas iniciativas governamentais na arena mundial.  

 



 [1]  Começam a se multiplicar as análises sobre os BRICs, apontando diferentes aspectos sobre o seu significado e possível impacto na atualidade. Destaco alguns que me tem ajudado nas minhas próprias análises:

. FIORI, J.L. “Entrevista para Tutaméia, 27/08/23 (acesso: https://tutameia.jor.br/novo-brics-explode-a-ordem-internacional);

.FIORI,J.L. A “multipolaridade” e o declínio crônico do Ocidente. Rio de Janeiro, Observatório Internacional do Século XXI, n/° 5;

.GRZYBOWSKI, C. A Multipolaridade, o Papel dos BRICs e a Agenda sobre Transições Energéticas e Mudança Climática. Rio de Janeiro, IBASE.

.GRZYBOWSKI,C. Multipolaridade Para Outro Mundo? Mudanças geopolíticas em curso na atualidade. Rio de Janeiro, IBASE.

.HEINE, Jorge. The Global South is on the rise – but what exactly is the Global South? 31.07.23. (Acesso: utopia@robertosavio.info).

.MOREIRA, A.B., ALMEIDA,L.D. e STEDILE, M.E. BRICs Uma Alternativa ao imperialismo? In: Front  Tricontinental de Pesquisa Social e Front – Instituto de Estudos Contemporâneos.

.ORANGE, M. “Brics: uma cumbre que preocupa a Occidente.” BITACORA. Montevidéu,04.09.23.

.SANZ,J.A. “Lanueva Ruta de la Seda de los BRICS cruza Eurasia, África e Sudamérica.”Corporación Latinoamericana Sur. Revista Sur, 28.08.23.

SOUZA SANTOS, B. “O BRICS+ e Confúcio. (acesso: aviagemdosargonautas.net/2025/06/23/os-brics-e-confucio-por-b...)

.TOLCACHIER, J. “Qué crece con el BRICS?. Montevidéu, 04.09.23.

VISALLI, a. “La ampliación de los Brics, el amanhecer de um nuevo mundo? Montevidéu, Bitacora, 11.09.23.

 

 

 

 

terça-feira, 1 de julho de 2025

 

Como Avaliar e Enfrentar as Contradições no Coração do Estado Brasileiro

Já há mais tempo avança, mas vem se intensificando, o problema de certa paralisia do Estado por causa da correlação estrutural de forças políticas institucionais, que afetam a democracia liberal que temos. Isto não está sendo devidamente enfrentado no Governo Lula III, que voltou a criar uma maioria eleitoral e gerou  esperanças de mudança. Desde o Governo Dilma II e, sobretudo, do Golpe Parlamentar do impeachment muita coisa foi se deteriorando e até nos levou ao destrutivo Governo Bolsonaro de extrema direita, fenômeno que se alastra mundialmente. Até foi praticamente desenhada uma ameaça de Golpe para a implantação de uma Ditadura, como o STF vem demonstrando e as imagens televisas chocantes de janeiro de 2023, no assalto à Praça dos Três Poderes,  com claros apoios na sociedade civil, comprovam e não deixam dúvidas.

Este é o quadro, sem dúvida. Mas será que está sendo bem diagnosticado e enfrentado? Gostaria de aprofundar a questão, sobretudo em termos de análises e propostas do que fazer. Afinal, bem ou mal, conquistamos uma democracia institucional e de alguma forma botamos a Ditadura de lado nos anos 1980, mas não enfrentamos todas as consequências dela e nem o câncer ditatorial foi extirpado de todo. Mas, de meu ponto de vista analítico, o que mais interessa aprofundar é o que, como sociedade civil e  cidadanias extremamente diversas de nosso Brasil, podemos e devemos fazer, ao menos tentar, diante desta situação?

Na década dos 1980, com diversidade de organizações e movimentos de cidadania ativa, no seio da sociedade civil, fazendo grandes mobilizações e pressões públicas, fomos a força fundamental no fim daquela Ditadura Militar. Não conseguimos muito do que queríamos, mas conseguimos sobretudo “Diretas-Já” e “Constituinte Exclusiva”.

Precisamos voltar ao Governo de Transição de 1985 que tivemos. Basta lembrar que ele foi liderado por uma aliança reveladora do poder civil tolerável, por assim dizer. Sem dúvida, se buscou uma transição civil, mas eleita indiretamente pelo Congresso ainda constituído segundo as regras eleitorais da ditadura, em 1980. Naquele então, apesar da forte “Campanha das Diretas Já”, a eleição foi indireta e nos legou um governo de Aliança Democrática, com Tancredo para Presidente e Sarney para Vice- Presidente. Sarney, era o líder civil maior da Arena de apoio aos militares, em tempos de Ditadura. Tancredo, apesar de um passado no PTB, foi do MDB, da oposição consentida pelos militares na Ditadura, com cassações quando necessário. A esperança popular em Tancredo foi frustrada pelo destino imprevisível  da vida, que  inviabilizou a sua posse. Ou seja,  tivemos um governo civil, sim, mas liderado por um Sarney, nem tão respeitável e democrático pelo que fez no Maranhão com apoio da ditadura, e que  passou a ser nossa realidade de transição democrática.[1]

Mas, para aquela conjuntura, foi a saída encontrada, afastando o mal maior e conquistando a Constituição de 1988, apontando em novas possibilidades para o Brasil, ao menos um horizonte de esperanças. Na verdade, não foi tão  pouco o que se definiu como fundamental para a democracia liberal: liberdade, igualdade para todas e todos, não à discriminação, solidariedade e cuidado com gente e a natureza, os direitos dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais sobre seus territórios e modos de vida e muito mais. Claro, isto tudo apenas na institucionalidade da lei. Destaco ainda como fundamental, mas insuficiente, o voto cidadão periódico na renovação da Presidência da República, Governos Estaduais, Prefeituras, Câmaras e Legislativos, em todas estas esferas, tendo certo grau de autonomia e atribuições específicas.

Porém, não conseguimos extirpar um mal presente de forma privilegiada naquela formalidade ditatorial de ter um Parlamento e um Judiciário, mas onde qualquer um poderia ser cassado e banido da política por suas ideais, propostas e atos.  Ou seja, lembro que a tal polaridade de forças políticas já estava implantada de certo modo na Ditadura. Não é nova e não foi diretamente reconhecida como tal. Princípios mais claros na organização partidária foram estabelecidos, mas as raízes do “Centrão” não mudaram. Aliás, se recompuseram. As mudanças de nome de partidos não escondem sua origem, história e lógica.  Muda como tudo mundo no processo histórico, mas muda se recompondo de alguma forma. Temos que reconhecer, apesar de todas aquelas mobilizações, não acabamos a “velhíssima” política que tem origem lá nos “coronéis”, verdadeiros donos do sertão.

Avaliando este processo político em que se moldou a institucionalidade democrática do Estado Brasileiro, a tal “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, nasceu “encurralada”. Este é um conceito que venho trabalhando desde então, talvez mais nos anos seguintes. Na minha visão como analista, nossa questão é a reprodução do encurralamento da democracia, que cresceu ao invés de diminuir, apesar de tudo o que conquistamos. No processo político que permitiu a eleição direta de governos democráticos como Fernando Henrique Cardoso I e II, Lula I e II, Dilma I e II, com novas políticas especialmente sociais, como combate à pobreza e fome  (Bolsa Família), implementação maior das aposentadorias dos que nunca contribuíram para a Previdência Social, políticas nas áreas fundamentais da saúde e educação pública, algo de reforma agrária e assentamentos de sem terra, política de demarcação de terras indígenas e de povos tradicionais, questão da água no Semiárido, e, sem dúvida, políticas ambientais e de combate ao desmatamento, políticas de retomada do desenvolvimento industrial, investimentos em infraestrutura, hidrelétricas, petróleo, com criação de empregos e esforços de estabilização da moeda.

 Mas, é do interior do Congresso eleito pelas regras constitucionais de 1988 que se gestou o Golpe Parlamentar de 2016 contra a Dilma e contra o “progressismo de esquerda”, que tivemos, pouco transformador na verdade, mas de esperança. Depois, o curto Governo Temer de 2016-2019, já dependente do “Centrão”, fez mudanças constitucionais com a nova aliança golpistas e promoveu mudança nas leis trabalhistas e nas regras constitucionais dos recursos para educação e saúde, como aspectos destacados. Tal clima político nos levou ao Governo Bolsonaro de  2019-2023, sempre com apoio do “Centrão”.  Não é meu objetivo avaliar o quanto destrutivo foi tal governo. Então foi eleito Lula III, atual presidente, mas sem maioria parlamentar. Assim, chegamos a esta fase do encurralamento democrático, definido como “Presidencialismo de Coalisão” por muitos analistas, onde o “congresso pauta o governo” e, praticamente, controla o orçamento e não dá muito espaço para uma política econômica que enfrente o “poderoso mercado”: “Faria Lima”, os fundos de investidores e bancos que enriquecem  com a dívida, o “Agronegócio” e o “extrativismo mineral”, com seus subsídios financeiros  e isenções de impostos.

Na verdade, eu tendo a achar que, como sociedade civil e cidadanias organizadas e ativas, temos grande responsabilidade política toda esta situação. Demandamos muito a participação política, mas nos contentamos em fazer parte de Conselhos de Políticas Públicas e consultas em várias áreas, além de votar. Isto é necessário, sem dúvida, mas sem disputa na sociedade civil e nas ruas nunca teremos democracia participativa. Num certo sentido, como cidadanias, demonstramos também encurralamento. Sem dúvida, temos algumas ações emblemáticas como as mobilizações dos movimentos indígenas, das mulheres, o VAT-Vida, Além do Trabalho, o MST, as iniciativas virtuosas de agroecologia, mas não muito mais na atualidade.

Em termos mais gerais,  a questão central em minha reflexão e análise é uma certa apatia da sociedade civil e das cidadanias organizadas. Não é só o “desequilíbrio do presidencialismo de coalização” e o poder de fogo do tal mercado. A nossa certa apatia política potencializa as contradições existentes. Se algo pode desempatar e mudar, só poderá ser se nós como sociedade civil e cidadania nos engajarmos. Estamos esperando não sei o que. Difícil é, assim como é necessário. Mas não podemos simplesmente esperar que da institucionalidade surja a solução. Força transformadora e que empurra as democracias para a virtuosidade são as cidadanias, como brilhantemente defendeu Rosa de Luxemburgo, no início do século passado.  E mais, não temos modelos a copiar e tentar, pois cada realidade histórica, até cada pedaço de território, tem as suas especificidades. O transformador, de meu ponto de vista, ou tem raízes territoriais locais, lá onde vivemos, ou nunca será uma força irresistível.

Assim, concluo afirmando que depende de nossas visões, vontades e ações concretas a possibilidade de sair do encurralamento e avançar com transformações democráticas. A espera do governo de turno é certamente nada mudar, com possibilidades de até piorar. Como despertar tal vontade e ação entre nós? Tarefa de todas e todos!



[1] Fui orientador no IESAE/FGV de uma dissertação de mestrado de aluna do Maranhão, ainda na década de 1980.

domingo, 18 de maio de 2025

A Cultura que Precisamos para uma Democracia Transformadora

 Normalmente avaliamos as democracias de uma perspectiva quase exclusiva da política e do poder estatal vigente, incluindo aí o Congresso. Pessoalmente, tenho destacado a economia que aprisiona o poder estatal e o papel estratégico que pode ter a sociedade civil e as cidadanias ativas em disputa de hegemonia, como nos lembra Gramsci. Mas precisamos considerar a questão cultural cujo papel decisivo  cabe fundamentalmente à sociedade civil, pois tem a ver com solidariedade, valores éticos de cuidado, convivência e compartilhamento, entre todas e todos e a natureza.[1]

Estou me referindo à cultura consumista, fundamental para o capitalismo. Foi o José (Pepe) Mujica que me fez pensar nisto num artigo recente, a que tive acesso agora, depois de sua morte. Sua reflexão me parece fundamental. Ele foi guerrilheiro Tupamaro quando jovem e lutou contra a ditadura militar no Uruguai,  com aquela inspiração foquista da revolução em Cuba e a instalação de um regime socialista. Pagou 12 anos de prisão por isto, grande parte trancafiado em cela solitária. Mas mudou muito e virou uma referência fundamental com seu modo simples de viver com sua companheira numa chácara nos arredores de Montevidéu. Mesmo no período que foi eleito senador e presidente do Uruguai, nunca deixou a chácara e seu fusca, com um modo de viver simples e sóbrio.

No artigo que li, Pepe Mujica afirma claramente o seguinte: “Um sistema social capitalista não se resume apenas a relações de propriedade; é também um conjunto de valores comuns à sociedade. Estes valores são mais fortes do que qualquer exército e são a principal força que mantém o capitalismo vivo hoje.” Um pouco mais abaixo contin:“ A luta é por uma sociedade autogerida, para aprendermos a ser nossos próprios chefes e a liderar nossos projetos comuns. (...) Queríamos fazer o mesmo que o capitalismo, mas com mais igualdade.” E conclui que precisamos de uma nova cultura, uma nova ética.[2]

Em outro artigo, de César G.Galero, em memória do Pepe Mujica, o autor mostra a volta ao tema da luta cultural. Segundo ele, Mujica queria dar sentido à vida, quando defendeu um modo de viver não governado pelo mercado e pelo consumismo, que é fundamental para o capitalismo. Por isto Mujica afirmava que “...só é derrotado quem desiste”. Nas suas próprias palavras, ele teria afirmado que “Quando fica evidente que erramos, simplesmente digo: errei, fiz cagada. Não devemos ficar mentindo. Porque é necessário cultivar confiança.”[3]

Tudo isto remete a nossas análises e visões aqui no Brasil, até dominantes na própria esquerda. A pergunta que devemos fazer é quanto nosso modo de ver está contaminado pelo desenvolvimento capitalista como condição de combate à desigualdade e pobreza vergonhosas que temos. Será que este caminho poderá transformar nossa economia, nossa política e nossa sociedade para uma democracia ecossocial mais potente?

Tenho postado uma série sobre o mantra do desenvolvimento. Também sobre o encurralamento da democracia, pelo sujeito “mercado” da Faria Lima, agronegócio, Petrobras e as grandes obras como se não tivéssemos alternativas. Até a política praticada pelo Ministério da Fazenda e Banco Central se rende ao mercado neste governo Lula III. Sem dúvida cria empregos precários e estimula o tal “empreendedorismo” e, em parte, distribui a renda e acesso ao consumo. Mas de que qualidade e, sobretudo, com que impacto na integridade da natureza e mudança climática? Como afirmou o Pepe Mujica, não estamos mudando as condições para um democracia transformadora, de direitos iguais na diversidade.

Reconheço que temos movimentos e redes de cidadania ativa virtuosos. Mas não são hegemônicos e nem são prioridade para o governo ou Congresso. A existência de Conselhos de representantes de organizações em volta de algumas políticas não indicam que estamos em uma democracia participativa. Além disto, temos uma onda de extrema direita com raízes  fortes e ameaçadoras, em quase todos os países democráticos. Até onde e quando? Temos que diagnosticar tudo isto como limites para uma democracia transformadora. Cabe fundamentalmente aos setores organizados da cidadania a tarefa de enfrentar o mercado e o consumismo como condições de mudança de tal quadro. Não bastam ações pontuais em situações de calamidade, mas que são, sem dúvida, necessárias. Temos que olhar e nos engajar numa estratégia livre da ditadura do mercado e seu consumismo.



[1] Demorei para voltar às minhas postagens no meu blog Sentidos e Rumos, pois sofri um acidente doméstico com fogo, que afetou minhas mãos e o braço direito. Fui bem cuidado pelo SUS daqui de Rio Bonito, o que me permitiu permanecer no sítio. O fato real é que minha capacidade de escrever no computador ficou totalmente comprometida. Agora estou voltando, mas ainda com limitações.

[2] MUJICA, José. “Minha geração cometeu um erro ingênuo’. Acesso na edição do de 15 de maio de 2025, do Combate Racismo Ambiental.

[3] GALERO, César G. (Público.es). “Mujica, el Guerrillero Sereno”. <acesso no Others News, desta semana).

terça-feira, 25 de março de 2025

O “Centrão” e os Impasses da Democracia no Brasil

 

Que classes ou forças sociais compõem o Centrão? Por que ele é tão presente e, num certo sentido, fundamental para analisar governos e políticas governamentais no Brasil? A resposta é um desafio. No entanto, há um certo acordo tanto na esquerda como na direita do espectro político brasileiro que, sem o Centrão, a própria governabilidade é inviável. Considerar como uma amálgama de classes médias é se esquivar e evitar uma análise mais acurada. Sem dúvida existe uma forte presença de “classes médias” na sua múltipla composição, mas não são elas que definem a agenda do ator político Centrão que temos.

O Centrão surgiu no processo Constituinte dos anos 1980. Na época, agrupou grande parte de forças civis que compuseram a bancada da ARENA, na ditadura militar, como um suporte civil no parlamento para a ditadura e em oposição ao MDB, que agrupou a oposição tipo aceitável e palatável para o regime ditatorial, mas sempre sob permanente ameaça de exclusão/cassação e até repressão das vozes mais dissidentes e críticas. O fato fundamental é que a invenção do Centrão contaminou e encurralou a Constituinte e o processo de redemocratização. O Sarney, primeiro presidente na redemocratização, foi presidente da ARENA e vice do hábil Tancredo para viabilizar o processo de eleição presidencial no “Colégio Eleitoral” – o Congresso eleitor da ditadura. Acho que há uma quase unanimidade que a nova Constituição conseguiu dar um rumo democrático ao país, mas veio viciada por um vírus que não mata, mas limita o poder transformador de uma democracia minimamente voltada ao bem comum coletivo.

Mas o que dá vida e durabilidade ao Centrão nestes mais de 30 anos de democracia encurralada que temos? Claro que forças políticas tem base em classes na sociedade para poder existir. Mas aqui estamos diante de amálgama complexo, pois agrupa frações de classe dominante, como agronegócio, pequenos empresários e os tais empreendedores, interesses que se escondem atrás de igrejas que tem raízes em amplos setores populares deixados ao léu, com múltiplos grupos das sempre complexas classes médias, trabalhadores assalariados com cargos mais bem remunerados e profissionais liberais. Um conjunto fisiológico mais do que força política com programa, mas não necessariamente autoritário. É um montão de partidos, com nomes que vão mudando e novos surgindo. O Centrão tende a ser algo como o ditado “já que a farinha é pouca, meu pirão primeiro”. Por isto é volátil e, sobretudo oportunista e fisiológico. Pode apoiar a direita raivosa se sentir que é não devidamente atendido pelo governo mais à esquerda. Assim como pode apoiar a esquerda com agenda mínima de promoção de direitos iguais democráticos – o conjunto de sindicatos, movimentos sociais organizados, intelectuais ativistas, ONGs, redes e fóruns sociais, grupos discriminados ou considerados intoleráveis por conservadores. Mas nunca vai deixar de lado os seus interesses corporativos de Centrão. Definitivamente, a marca registrada do Centrão – como expressão política no Brasil – é mais oportunista e fisiológica do que outra característica, não um programa ou projeto de pais. Politicamente, as forças políticas do Centrão ficam satisfeitas se generosamente contempladas pelo orçamento – emendas parlamentares ou políticas públicas direcionadas a seus redutos eleitorais.

Importa esclarecer que expressões políticas de centro sempre podem e existem em qualquer democracia, sobretudo de forças entre os polos esquerda e direita. Num certo sentido é o nosso PSDB e o que o MDB se tornou. Há, sim outras forças de centro, mas menos robustas, na profusão de partidos que temos. Também são um pêndulo, para um lado ou outro, que pode ser decisivo em muitas conjunturas políticas, como por sinal foi na última eleição do Lula presidente. Mas, do que vejo como analista, não existe algo tão influente e decisivo na esfera política como o bolo do Centrão, nestes anoss do Brasil democrático contemporâneo. Aqui ninguém governa sem o Centrãoque precisa ser atendido em seus interesses paroquiais. Entre nós é um mosaico e não um acordo programático, por definição um tanto volátil, mas decisivo.

O fato político incontornável é a proeminência do Centrão no Congresso do Brasil. Hoje é o fator de equilíbrio. Ninguém consegue governar sem apoio majoritário do complexo Centrão, seja Bolsonaro da extrema direita ou o Lula do PT e aliança de esquerda em torno a ele. As agendas e reformas passam pelo voto do Centrão no Congresso, que sempre exige concessões ou compensações. Hoje as emendas parlamentares cobram 50 bilhões para atender seus nichos eleitorais, sem consideração nenhuma aos programas e políticas governamentais. Parece e é uma certa herança do “coronelismo” vigente na Primeira República, onde territórios/municípios pequenos tem “donos”, como verdadeiros redutos eleitorais.

Esta realidade nos obriga a pensar o chão da sociedade, os territórios em que vivemos. As heterogêneas expressões partidárias do Centrão tem demonstrado capacidade em obter apoio local, como mostraram as últimas eleições municipais de outubro de 2024, em todos os mais de cinco mil municípios brasileiros. Isto coloca um desafio tremendo para o que vai acontecer nas eleições em 2026, tanto presidencial como de governadores, de deputados e senadores do Congresso Nacional e membros das Assembleias Legislativas, em todos os Estados da Federação, independentemente de tamanho territorial ou número de eleitores. Nada indica uma possível mudança significativa. Provavelmente a disputa será entre os extremos,  direita extrema e coalizão de esquerda. Mas o Centrão tem tudo para continuar como o pêndulo político, o que ele é na prática, por que está bem enraizado nos territórios de todo país.

Não creio que forças democráticas de esquerda tentem radicalizar minimamente a agenda em busca de voto mais comprometido com direitos iguais e mudanças. Aliás, as eleições  apontam para o repeteco do que foi a eleição de 2022, onde os votos deram a vitória a Lula, mas  por pequena margem,  junto com um Centrão ampliado no Congresso. Objetivamente, como cidadanias, estamos paralisados diante de um quadro político assim. Aliás, durante este Governo Lula III a maior apatia e a espera paralisa vozes ativas da cidadania, com exceção de indígenas, MST e algo do MTST. Creio que acontecem muitas coisas no chão dos múltiplos territórios que nos compõem como país, mas pouco, muito pouco, chega até o debate público.

Enfim, parece simples tratar o Centrão, mas politicamente não é. Estamos diante de um osso duro de roer e enfrentar. Não se governa sem ele. Até quando? E temos no horizonte a expansão da extrema direita aqui e pelo mundo, como um vírus ainda sem vacina, destruindo as instituições e as políticas democráticas, o sentido do comum, do convívio social, do respeito da diversidade e do cuidado tanto de gente como da natureza. Uma ameaça e tanto! Felizmente, a esperança é a última que morre. Mas o que e como agir é uma busca e aprendizado coletivo. O certo é que tudo que foi feito pode também ser desfeito...