Já estava na hora do governo democrático vitorioso nas urnas
de 2022 ser um pouco mais ousado em relação à economia despedaçada e
reprimarizada que temos hoje. A NIB é, sem dúvida, uma demonstração política do
Governo Lula III de mudar e regular a economia que temos, que só serve aos
interesses do rentismo parasitário da classe dominante, contra a maioria da
população brasileira. Mas a proposta política é ousada o suficiente? Será capaz
de mudar a estrutura e os processos para que a economia seja a base para cuidar
de gente e da natureza, como enfaticamente anunciado por Lula na sua posse há
um ano e pouco?
Elegemos o Lula para que organize um governo que mude de rumo
e possamos voltar a sonhar com um Brasil para todas e todos. Sabemos que a
tarefa é árdua e longa, mas também sabemos que o que realmente importa é
estabelecer processos com potencial transformador, contando para isto com a
participação decisiva de cidadanias ativas. A tarefa de mudar necessita de
intencionalidades e de pensar grande, sem dúvida, mas mais ainda de ação, de
militância, de engajamento, de participação radical de cidadanias determinadas
a partir do chão da sociedade civil, empurrando e sustentando as propostas na
esfera política. As instituições do poder são o que são, mas só as cidadanias
tem poder instituinte e constituinte pelo voto e pela ação permanente. Agora,
se o olhar prioritário dos mandatados pelo voto para o poder estatal é
prioritariamente voltado para as elites, a coisa toda muda para nada mudar na
essência. Ninguém minimamente informado e atento ignora a dificuldade do
governo Lula com o Congresso Nacional que temos, dominado pelo Centrão e as
bancadas, sem compromisso com direitos iguais de cidadania na diversidade. O Centrão
não passa de um acórdão entre verdadeiros lobbies em busca de vantagens para
seus bolsos e redutos eleitorais, sem compromisso com cidadanias e o país. Mas,
ao mesmo tempo, é de estranhar a desmobilização das cidadanias, como se não
fossem de interesse da gente as propostas do governo. Por que tal fosso entre o
chão da sociedade e o governo? De modo geral, por que votamos dando mandatos de
representação nossa – cidadanias brasileiras em sua igualdade na diversidade
- nas instituições e ficamos esperando?
Se não tentarmos de romper este fosso, nem que seja por improvisadas pinguelas,
a democracia continuará encurralada e, pior, talvez o fascismo volte com força
redobrada.
Mas foquemos um pouco mias na proposta da NIB feita
recentemente. Antes de tudo, precisamos reconhecer o esforço de restabelecer o
protagonismo estatal sobre a economia. Isto é o mínimo que se espera de uma
democracia. É o Estado que deve regular a economia e não o contrário, a livre
competição entre donos do capital, com seus recursos em busca de acumulação,
explorando o trabalho, acima de tudo, acima até da produção de bens e serviços
que sirvam para o bem estar da sociedade. Parece absurdo, mas o compromisso
primeiro do capital é sua autovalorização, ou seja, ganhar e ganhar, quanto
mais e de forma mais fácil melhor. Um cassino, sem dúvida! Há os que perdem,
mas não há limite para o ganho. Até de impostos os donos de capitais sabem se
livrar ou conseguem isenções, nem sempre tão legais, com paraísos fiscais,
subterfúgios, benesses...
É virtuoso o anúncio do Governo Lula de propor uma política
econômica industrial e usar os instrumentos do Estado para tanto. Mas,
lembremos das “destruições” empreendidas também pelo Estado e, de um modo mais
amplo, pelo imperialismo vigente, capaz de impor “regras econômicas mundiais”,
a sua moeda e as instituições financeiras como BM e FMI. A OMC foi mais uma,
mas quando o imperialismo foi confrontado pela maioria dos países, foi ela que
perdeu importância, mas não os ditames do imperialismo. Este é o problema de
fundo. A desendustrialização brasileira e de outros países foi uma imposição do
“Consenso de Washington” na perspectiva da globalização, valendo-se do domínio
do dólar nas transações internacionais. A reprimarização, de interesse de
mineradoras e agronegócio, contou com a alavanca externa. E voltamos a ocupar
um lugar parecido a uma colônia produtora de matérias primas. Saudades do Celso
Furtado que, com sua notória capacidade e brilho, nos lembrava isto!
O certo é que, hoje, para grande parte dos empresários, vale
mais viver do rentismo do que de investimentos concretos de risco. Como nos
lembra insistentemente Dawbor, 30% do PIB brasileiro anual é apropriado pelos
rentistas, aquele 1% de parasitas sociais, destruidores de qualquer projeto que
possamos ter de um Brasil voltado ao cuidado com gente e a natureza. As
fortunas do punhado de rentistas crescem no mesmo ritmo que a exclusão social,
a miséria e a fome. Só que estas matam, enquanto que o rentismo floresce na
sombra e água fresca, com apoio garantido do Banco Central e até com o
compromisso público do governo de plantão. Afinal, o “arcabouço fiscal”
desenhado por Haddad e equipe visa dar tranquilidade aos especuladores
rentistas e não o bem estar ao Brasil, com uma economia em crescimento.
Não cabe detalhar aqui o que a Nova Indústria Brasil (NIB)
propõe. Destaco enfaticamente a importância do governo sinalizar uma intenção
de regular a economia em vista de um processo que seja capaz, no mínimo, de dar
um novo rumo ao Brasil. Estamos há quarenta anos perdendo capacidade industrial
e nos tornando dependentes da produção e exportação de produtos primários,
minerais e do agronegócio. Enfim, ao invés de ganharmos uma economia mais
produtiva, mesmo capitalista, voltamos a uma posição de dependência das
exportações de commodities, de extrativismo subserviente aos interesses das
potências capitalistas globais. Trata-se de um caminho de volta a uma economia
colonial. Que tenhamos setores da classe dominante brasileira totalmente
contentes com isto não estranha, nem mesmo a sua inclinação autoritária e
fascista. Mas a continuidade de processos destrutivos da natureza, com grilagem
de terras, ódio e violência a povos indígenas e comunidades tradicionais,
desmatamento, extrativismo, contaminação das águas e mudança climática tem a
maior responsabilidade por nos devolver a uma situação de país dependente e
mero exportador de commodities.
Diante disto, o mínimo a esperar de um governo Lula é propor
algo como o NIB. Mas, levando em conta o modo como foi elaborado e lançado tal
programa, poderá mudar o rumo do nosso país no contexto das nações? Destaco
aqui dois aspectos fundamentais que enfrentam a ortodoxia econômica, o que é
muito necessário, sem dúvida. Trata-se de definir algo abrangente na forma de
Missões/Objetivos por setores. Não é esta ou aquela indústria, mas processos de
integração industrial por setores. Ao mesmo tempo, são estabelecidos Princípios
Orientadores, carregados de sentido democrático includente. [i]
O NIB foi lançando com pompa, com presença de quase todos os
ministérios (menos o ministro da Fazenda, F.Haddad – emblemático, dado o
contexto) e o recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (criado
no Governo Lula I, em 2004). Foi gestado por um grupo de trabalho liderado por
Geraldo Alkimin, o vice-presidente e ministro da Indústria. Muitas pessoas
qualificadas do mundo acadêmico participaram do processo.
Como é de esperar, a grande mídia reagiu com críticas. E a
Bolsa caiu. Coisas a esperar, pois o plano tem a virtude de demonstrar que o
Governo Lula está afim de reestabelecer o devido protagonismo do Estado
Brasileiro, não aquele capacho e subserviente da banca. Chega de “Estado
Mínimo” do neoliberalismo. Mas, atenção, estamos diante de forças nacionais e
internacionais poderosas, dispostas a impedir qualquer aventura deste tipo pelo
mundo, ainda mais num país de importância estratégia pelo tamanho da população
e território, com imensos recursos naturais, como o Brasil. Este é o contexto e
a ousadia. Como cidadanias, devemos saudar a iniciativa.
Porém, é algo que nasce um tanto velho, com inspiração
desenvolvimentista – busca de crescimento de uma economia capitalista – e sem
menção a nenhuma transformação estrutural
necessária, como se fosse virtude fazer o crescimento capitalista. Só são
apontadas orientações gerais, atreladas a princípios estratégicos com potencial
democrático de inclusão social e sustentabilidade. Mas como em contexto
capitalista?
Destaco também a questão estratégia da participação, para
além das equipes de técnicos e ministérios. Considerar a Conselho Nacional de
Desenvolvimento Industrial como participação da sociedade civil beira a
agressão política. O CNDI esteve no lançamento, não sei qual foi a sua
participação na elaboração. Mas parece inaceitável considerar o CNDI como
grande representante da complexa sociedade brasileira. Afinal, são somente 18
entidades empresariais setoriais e três centrais sindicais que compõem o CNDI.
E onde ficaram todas as cidadanias ativas do país, como MTST, MST, os Povos
Indígenas, os Quilombolas e os Tradicionais, as Redes de Agroecolonia, os
Movimentos contra a Mineração, os Atingidos por Barragens, os múltiplos
movimentos de Favelados, os movimentos contra o racismo que combina com colonialismo,
os potentes movimentos em torno à saúde coletiva, os movimentos de mulheres e
contra a violência, os que lutam contra a fome e a miséria, o amplo leque de
organizações de cidadania ativa por direitos, os movimentos contra a mudança
climática e por justiça social, os engajadas na defesa e difusão da vibrante
cultura popular, as igrejas (por que não?) ... Enfim, a lista dos que de algum
modo serão impactados por projetos da NIB é a população como um todo. Claro,
grande maioria só vota e acaba não tendo uma voz própria capaz de ser ouvida.
Toda a proposta do NIB seria algo mais virtuosa se ao invés
de apresentar um projeto tecnocrático de industrialização, a cidadania ativa do
país em sua diversidade ampla (ainda insuficiente para incorporar a todas e
todos) tivesse sido envolvida, sua voz escutada e seu protagonismo convocado
para se contrapor aos rentistas parasitas. Economia não é coisa de empresários
interessados em acumular, é a produção das condições de vida, cada vez mais
interdependente, que precisamos num gigante país como o Brasil. Economia é um
campo de disputas e precisa ser politizado e fecundado por princípios e valores
éticos de democracia ecossocial, coisa que só a multidiversidade e a
pluralidade de cidadanias ativas pode gestar. Ainda há tempo, mas a vontade
política do núcleo central do poder olha para este lado? Ou tem medo de
enfrentar o Centrão capacho dos interesses corporativos que ameaçam a
democracia?
[i] O melhor artigo que li a respeito é de Paulo Klias. Ver: P.BLIAS. “Nova Indústria e o desafio à ortodoxia publicado originalmente em Outras Palvaras. Acessado em Combate ao Racismo Ambiental, de 24 de janeiro de 2024.