terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Nova Indústria Brasil – NIB: Virtudes e Desafios

 

Já estava na hora do governo democrático vitorioso nas urnas de 2022 ser um pouco mais ousado em relação à economia despedaçada e reprimarizada que temos hoje. A NIB é, sem dúvida, uma demonstração política do Governo Lula III de mudar e regular a economia que temos, que só serve aos interesses do rentismo parasitário da classe dominante, contra a maioria da população brasileira. Mas a proposta política é ousada o suficiente? Será capaz de mudar a estrutura e os processos para que a economia seja a base para cuidar de gente e da natureza, como enfaticamente anunciado por Lula na sua posse há um ano e pouco?

Elegemos o Lula para que organize um governo que mude de rumo e possamos voltar a sonhar com um Brasil para todas e todos. Sabemos que a tarefa é árdua e longa, mas também sabemos que o que realmente importa é estabelecer processos com potencial transformador, contando para isto com a participação decisiva de cidadanias ativas. A tarefa de mudar necessita de intencionalidades e de pensar grande, sem dúvida, mas mais ainda de ação, de militância, de engajamento, de participação radical de cidadanias determinadas a partir do chão da sociedade civil, empurrando e sustentando as propostas na esfera política. As instituições do poder são o que são, mas só as cidadanias tem poder instituinte e constituinte pelo voto e pela ação permanente. Agora, se o olhar prioritário dos mandatados pelo voto para o poder estatal é prioritariamente voltado para as elites, a coisa toda muda para nada mudar na essência. Ninguém minimamente informado e atento ignora a dificuldade do governo Lula com o Congresso Nacional que temos, dominado pelo Centrão e as bancadas, sem compromisso com direitos iguais de cidadania na diversidade. O Centrão não passa de um acórdão entre verdadeiros lobbies em busca de vantagens para seus bolsos e redutos eleitorais, sem compromisso com cidadanias e o país. Mas, ao mesmo tempo, é de estranhar a desmobilização das cidadanias, como se não fossem de interesse da gente as propostas do governo. Por que tal fosso entre o chão da sociedade e o governo? De modo geral, por que votamos dando mandatos de representação nossa – cidadanias brasileiras em sua igualdade na diversidade -  nas instituições e ficamos esperando? Se não tentarmos de romper este fosso, nem que seja por improvisadas pinguelas, a democracia continuará encurralada e, pior, talvez o fascismo volte com força redobrada.

Mas foquemos um pouco mias na proposta da NIB feita recentemente. Antes de tudo, precisamos reconhecer o esforço de restabelecer o protagonismo estatal sobre a economia. Isto é o mínimo que se espera de uma democracia. É o Estado que deve regular a economia e não o contrário, a livre competição entre donos do capital, com seus recursos em busca de acumulação, explorando o trabalho, acima de tudo, acima até da produção de bens e serviços que sirvam para o bem estar da sociedade. Parece absurdo, mas o compromisso primeiro do capital é sua autovalorização, ou seja, ganhar e ganhar, quanto mais e de forma mais fácil melhor. Um cassino, sem dúvida! Há os que perdem, mas não há limite para o ganho. Até de impostos os donos de capitais sabem se livrar ou conseguem isenções, nem sempre tão legais, com paraísos fiscais, subterfúgios, benesses...

É virtuoso o anúncio do Governo Lula de propor uma política econômica industrial e usar os instrumentos do Estado para tanto. Mas, lembremos das “destruições” empreendidas também pelo Estado e, de um modo mais amplo, pelo imperialismo vigente, capaz de impor “regras econômicas mundiais”, a sua moeda e as instituições financeiras como BM e FMI. A OMC foi mais uma, mas quando o imperialismo foi confrontado pela maioria dos países, foi ela que perdeu importância, mas não os ditames do imperialismo. Este é o problema de fundo. A desendustrialização brasileira e de outros países foi uma imposição do “Consenso de Washington” na perspectiva da globalização, valendo-se do domínio do dólar nas transações internacionais. A reprimarização, de interesse de mineradoras e agronegócio, contou com a alavanca externa. E voltamos a ocupar um lugar parecido a uma colônia produtora de matérias primas. Saudades do Celso Furtado que, com sua notória capacidade e brilho, nos lembrava isto!

O certo é que, hoje, para grande parte dos empresários, vale mais viver do rentismo do que de investimentos concretos de risco. Como nos lembra insistentemente Dawbor, 30% do PIB brasileiro anual é apropriado pelos rentistas, aquele 1% de parasitas sociais, destruidores de qualquer projeto que possamos ter de um Brasil voltado ao cuidado com gente e a natureza. As fortunas do punhado de rentistas crescem no mesmo ritmo que a exclusão social, a miséria e a fome. Só que estas matam, enquanto que o rentismo floresce na sombra e água fresca, com apoio garantido do Banco Central e até com o compromisso público do governo de plantão. Afinal, o “arcabouço fiscal” desenhado por Haddad e equipe visa dar tranquilidade aos especuladores rentistas e não o bem estar ao Brasil, com uma economia em crescimento.

Não cabe detalhar aqui o que a Nova Indústria Brasil (NIB) propõe. Destaco enfaticamente a importância do governo sinalizar uma intenção de regular a economia em vista de um processo que seja capaz, no mínimo, de dar um novo rumo ao Brasil. Estamos há quarenta anos perdendo capacidade industrial e nos tornando dependentes da produção e exportação de produtos primários, minerais e do agronegócio. Enfim, ao invés de ganharmos uma economia mais produtiva, mesmo capitalista, voltamos a uma posição de dependência das exportações de commodities, de extrativismo subserviente aos interesses das potências capitalistas globais. Trata-se de um caminho de volta a uma economia colonial. Que tenhamos setores da classe dominante brasileira totalmente contentes com isto não estranha, nem mesmo a sua inclinação autoritária e fascista. Mas a continuidade de processos destrutivos da natureza, com grilagem de terras, ódio e violência a povos indígenas e comunidades tradicionais, desmatamento, extrativismo, contaminação das águas e mudança climática tem a maior responsabilidade por nos devolver a uma situação de país dependente e mero exportador de commodities.

Diante disto, o mínimo a esperar de um governo Lula é propor algo como o NIB. Mas, levando em conta o modo como foi elaborado e lançado tal programa, poderá mudar o rumo do nosso país no contexto das nações? Destaco aqui dois aspectos fundamentais que enfrentam a ortodoxia econômica, o que é muito necessário, sem dúvida. Trata-se de definir algo abrangente na forma de Missões/Objetivos por setores. Não é esta ou aquela indústria, mas processos de integração industrial por setores. Ao mesmo tempo, são estabelecidos Princípios Orientadores, carregados de sentido democrático includente. [i]

O NIB foi lançando com pompa, com presença de quase todos os ministérios (menos o ministro da Fazenda, F.Haddad – emblemático, dado o contexto) e o recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (criado no Governo Lula I, em 2004). Foi gestado por um grupo de trabalho liderado por Geraldo Alkimin, o vice-presidente e ministro da Indústria. Muitas pessoas qualificadas do mundo acadêmico participaram do processo.

Como é de esperar, a grande mídia reagiu com críticas. E a Bolsa caiu. Coisas a esperar, pois o plano tem a virtude de demonstrar que o Governo Lula está afim de reestabelecer o devido protagonismo do Estado Brasileiro, não aquele capacho e subserviente da banca. Chega de “Estado Mínimo” do neoliberalismo. Mas, atenção, estamos diante de forças nacionais e internacionais poderosas, dispostas a impedir qualquer aventura deste tipo pelo mundo, ainda mais num país de importância estratégia pelo tamanho da população e território, com imensos recursos naturais, como o Brasil. Este é o contexto e a ousadia. Como cidadanias, devemos saudar a iniciativa.

Porém, é algo que nasce um tanto velho, com inspiração desenvolvimentista – busca de crescimento de uma economia capitalista – e sem menção a nenhuma  transformação estrutural necessária, como se fosse virtude fazer o crescimento capitalista. Só são apontadas orientações gerais, atreladas a  princípios estratégicos com potencial democrático de inclusão social e sustentabilidade. Mas como em contexto capitalista?

Destaco também a questão estratégia da participação, para além das equipes de técnicos e ministérios. Considerar a Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial como participação da sociedade civil beira a agressão política. O CNDI esteve no lançamento, não sei qual foi a sua participação na elaboração. Mas parece inaceitável considerar o CNDI como grande representante da complexa sociedade brasileira. Afinal, são somente 18 entidades empresariais setoriais e três centrais sindicais que compõem o CNDI. E onde ficaram todas as cidadanias ativas do país, como MTST, MST, os Povos Indígenas, os Quilombolas e os Tradicionais, as Redes de Agroecolonia, os Movimentos contra a Mineração, os Atingidos por Barragens, os múltiplos movimentos de Favelados, os movimentos contra o racismo que combina com colonialismo, os potentes movimentos em torno à saúde coletiva, os movimentos de mulheres e contra a violência, os que lutam contra a fome e a miséria, o amplo leque de organizações de cidadania ativa por direitos, os movimentos contra a mudança climática e por justiça social, os engajadas na defesa e difusão da vibrante cultura popular, as igrejas (por que não?) ... Enfim, a lista dos que de algum modo serão impactados por projetos da NIB é a população como um todo. Claro, grande maioria só vota e acaba não tendo uma voz própria capaz de ser ouvida.

Toda a proposta do NIB seria algo mais virtuosa se ao invés de apresentar um projeto tecnocrático de industrialização, a cidadania ativa do país em sua diversidade ampla (ainda insuficiente para incorporar a todas e todos) tivesse sido envolvida, sua voz escutada e seu protagonismo convocado para se contrapor aos rentistas parasitas. Economia não é coisa de empresários interessados em acumular, é a produção das condições de vida, cada vez mais interdependente, que precisamos num gigante país como o Brasil. Economia é um campo de disputas e precisa ser politizado e fecundado por princípios e valores éticos de democracia ecossocial, coisa que só a multidiversidade e a pluralidade de cidadanias ativas pode gestar. Ainda há tempo, mas a vontade política do núcleo central do poder olha para este lado? Ou tem medo de enfrentar o Centrão capacho dos interesses corporativos que ameaçam a democracia?

 

 

 

 



[i] O melhor artigo que li a respeito é de Paulo Klias. Ver: P.BLIAS. “Nova Indústria e o desafio à ortodoxia publicado originalmente em Outras Palvaras. Acessado em Combate ao Racismo Ambiental, de 24 de janeiro de 2024.

sábado, 20 de janeiro de 2024

CIDADANIAS E TERRITÓRIOS EM SITUAÇÃO DE RISCO: O QUE FAZER?

Tal composição do título resume o que é viver como cidadanias consideradas periféricas, condenadas a viver em territórios urbanos e rurais entregues à própria sorte pelo domínio dos interesses do grande capital excludente, territórios comunitários com carências múltiplas e sem a devida atenção de políticas públicas, sujeitas à mudança climática em curso, tempestades e enchentes devastadoras, grileiros, garimpeiros, milicianos e traficantes, além de agressivas e violentas ações policiais, produzindo mortes. É difícil contabilizar a perda de vidas e de condições de viver nestas circunstâncias esquecidas, fora do radar, onde predominam a fome, a miséria, a negação de direitos iguais na diversidade do que somos, e as ameaças de morte no dia a dia. Aí, a solidariedade e a autoajuda comunitária é o que pode aliviar a dor e, sobretudo, salvar vidas em momentos de catástrofes.

Na disputa de ideias e direções com sentido de conquista de hegemonia democrática, de transformação ecossocial includente em direitos iguais na diversidade, esta questão, que atinge praticamente a metade da população do país, é um desafio central para cidadanias ativas em suas concepções e no seu que fazer. A barbárie do capitalismo, com sua exploração do trabalho, seu colonialismo, racismo e patriarcalismo, seu imperialismo, seus exércitos e armas, para acumular sem limites, se manifesta plenamente na criação sistemática de periferias, num processo que se estende dos vários territórios locais do para o mundo como um todo. O genocídio é visível e incontestável em situações como a da guerra de Israel contra o povo da Palestina. Mas o genocídio – é fundamental não perder de vista – é algo  presente, de forma permanente mas diferente, em praticamente todos os territórios  e países.

É próprio da lógica de exploração e dominação capitalista gestar permanentemente enormes contingentes de periferias espalhadas por todos os países do planeta. Basta olhar a “celebração” e debates anuais do grande capital no Fórum Econômico Mundial, dos 1% de donos do mundo,  nas montanhas isoladas de Davos, para se dar conta da “fortaleza”  que  protege a pequena parcela globalizada dos proprietários e gestores das grandes empresas e grandes fortunas.

Os grupos contingentes de pobres da população mundial não vivem em fortificações protegidas e nem tem acesso a elas. Os territórios concretos, com suas potencialidades e carências, é seu pedaço de chão, mas sob ameaça permanente praticadas por forças externas a ele. Claro, o risco de destruição por eventos climáticos ou então de expulsão a qualquer hora faz parte do cotidiano, basta que seu território seja avaliado como base de expansão de negócios por forças do capital em busca de valorização, tanto nas cidades, grandes ou pequenas, como nos campos, matas e águas!

O desafio político transformador de tal situação é construir coletivamente potência cidadã viva e múltipla no seu seio, pela própria população local, em seu território de vida. Por sinal, no mundo inteiro, as experiências mais poderosas e virtuosas de transformação criam raízes e se difundem a partir dessas populações em situação de precariedade. Não são obras de engenharia desenhadas sem participação local ou políticas monetárias compensatórios que podem mudar a situação de exclusão e risco. Sem dúvida, mudanças envolvem canalização de recursos. Portanto, sempre vão ser necessários governos e políticas públicas, pois o  capital que investe localmente estará sempre visando a sua própria acumulação, nunca as necessidades e o empoderamento da comunidade. Por mais precária que seja a situação da comunidade humana local a verdade é que para ela é seu território de vida, de cidadania. Ou ela é sujeita de sua própria transformação, ou a transformação será contra ela, nunca em seu benefício. Pior de tudo é que, as próprias ações do poder público podem levar à expulsão, como muitas vezes ocorre. É fundamental ter claro este ponto para não continuarmos cometendo os mesmos erros do passado.

Num situação como a de hoje, de domínio das grandes corporações econômicas e financeiras em escala global, de um lado, desigualdades, exclusões sociais, pobreza e fome, também globalizadas e em expansão, de outro lado, a mudança climática planetária vem avançando de forma cada vez mais acelerada e devastadora. Na avaliação de especialistas de centros científicos pelo mundo junto com movimentos e fóruns mundiais de cidadania ativa e muitos governos do Sul Global, estamos diante de implosão do planeta e da própria humanidade, das condições de viver para todas formas de vida, enfim. Os eventos climáticos extremos do ano que passou e que continuam neste são incontestáveis. Mas a fome e pobreza também são.

Minha intenção inicial não foi, mais uma vez, focar a estrutura de poder econômico, imperial e militar que domina o mundo e de onde só dá para esperar que nada mude ou, ainda pior, que a destruição ecossocial só se acelere. Para criar transformação  resiliente é necessário resistir, buscando saídas no contrapé da globalização capitalista, olhar o mundo de baixo para cima ao invés de cima para baixo. Ou seja, descobrir e fortalecer o que é específico, a grande diversidade ecossocial territorial, sua população, sua organização econômica, social e política, o poder de suas vozes, participação e culturas. A base é o  princípio da convivência com os sistemas ecológicos do território comunitário, não obras de engenharia, como a experiência da ASA e as cisternas para a conservação da água, no Semiárido do Nordeste do Brasil, demonstram cabalmente.

Neste sentido, trata-se transformar “carências” nos territórios de vida  em “potências transformadoras”, como muitas comunidades locais, urbanas e rurais, com suas organizações e redes de prática agroecológica, proteção comunitária, afirmação social, política e cultural vem demonstrando pelo Brasil afora. Esta é a fonte de inspiração básica para um irresistível movimento transformador ecossocial, com capacidade de trazer os direitos ecossociais iguais na diversidade do que somos e do que são as potências e comuns contidos no territórios, para nesta base começar a construir um outro Brasil e um outro mundo, onde todas e todos cabem e a integridade de todas as formas de vida e dos sistemas ecológicos sejam parte do viver humano.

Não podemos nos iludir com o “mantra do desenvolvimento” baseado na prioridade do investimento privado das grandes empresas e negócios, dos 1% de “donos” e seu poder. Daí só poderá vir mais extrativismo e destruição ecossocial, mas crescimento de seu capital, mais exclusão, mudança climática e morte, em última análise. Além de guerras, armas, muralhas e genocídios, numa combinação terrível como vemos no dia a dia. Desenvolvimento é o favorecimento da exploração do petróleo, das minas e do agronegócio, desmatamento, contaminação, doenças e “criação sistemática” de periferias em territórios de sofrimento e risco, de expulsões e migrações, além da ameaça de mudança climática. Desenvolvimento é favorecimento ao capital e limites de financiamento nos programas públicos potencialmente de cuidado de gente e da natureza. Desenvolvimento é política fiscal restritiva para tudo que é ecossocial, democratizador, transformador e garantidor de direitos iguais na diversidade.

Como afirmam os “Zapatistas de Chiapas” a solução é dar lugar a “muitos mundos num mesmo mundo”, o planeta Terra, para reencontrar e reconectar nossas vidas com as possibilidades dos territórios: sejam polos ou zonas equatoriais, tropicais, temperadas, Sul, Norte, Leste, Oeste, zonas costeiras de mares e oceanos ou rios, interiores profundos, planícies, vales, planaltos ou montanhas, grandes matas, campos ou terras semiáridas, desertos e seus oásis, com suas biodiversidade. Não há um modelo único por razões ecossociais – de dinâmica ecológica combinada com dinâmica social em todos os sentidos. A sustentabilidade depende do colar-se às potencialidades do territórios gerido como um comum compartido. É assim que se criam e desenvolvem as culturas humanas, parte da solução sustentável.

Mudar de perspectiva – na verdade de paradigma analítico e político – é necessário para ver, pesquisar e avaliar questões fundamentais que estão um tanto fora dos debates mundiais. Por isto a insistência na territorialidade das situações concretas. Mas isto não muda o fato também fundamental que somos uma mesma humanidade no mesmo planeta Terra. Como não dá para desconsiderar o fato que a mudança climática é de ordem planetária, mas de efeitos diversificados segundo os territórios,  mesmo olhando de outra perspectiva não podem deixado de lado ou ignorado tal dimensão. A verdadeira sabedoria está em entender e agir a partir do específico – a dinâmica específica da vida em territórios específicos – e construir a pluralidade do todo, do planeta terra.[i] Isto é algo por ser feito, mas que o domínio pela globalização capitalista, através da economia, do poder estatal e da ideologia/valores, impede. Temos que estar mais nas ruas, no chão da sociedade, do que em eventos globais nada consequentes pelos seus acordos simbólicos, sem força impositiva aos governos e corporações globais.

Precisamos mudar de perspectiva e ação. Claro, nas múltiplas formas que a crise climática afeta as periferias, precisamos cobrar urgentes ações de emergência para salvar vidas e um mínimo de conforto para quem tudo perde, sem esquecer da vergonhosa escalada de violência, emprisionamento e morte, focada especialmente nos jovens negros, por ações de milícias e polícias militares. Estas ações, contudo, não podem parar aí. Devemos exigir mudanças para valer, deste a contenção do capital imobiliário e milícias, e propostas de ações estruturantes concertadas com a população pobre e excluída que vive nos territórios periféricos. Chega de territórios de exclusão! Não basta de grandes conjuntos habitacionais longe das comunidades concretas e seus desejos, ou de obras de engenharia nos próprios territórios sem participação e respeito às visões, modos de viver e demandas das próprias comunidades. Existe muita vida, capacidade e criatividade apesar de serem territórios hoje de periferias em risco. Quem precisa de atenção e apoio não é a indústria de construção, mas a população do território concreto, visando fortalecer o seu potencial e resiliência. Para isto ela tem que ser a cidadania ativa e não mera população periférica ou favelada beneficiada. Estamos diante de construção conjunta de alternativas, entre as comunidades e os poderes públicos, onde empresas, quando necessárias, são apenas executoras do acordado com a cidadania local e mediação  do poder público.

Finalizo assinalando que a participação cidadã sempre faz a diferença em qualquer ação governamental que vale a pena. Mas não dá para confundir participação como ter um espaço e uma oportunidade de ser consultado pelo poder estatal sobre decisões já tomadas ou políticas já definidas por especialistas, nos reservados espaços do poder. A participação  fundamental é na concepção, na construção e na própria implementação de qualquer política democrática ecossocial transformadora, inspirada na igualdade de direitos de ser e viver como cidadania na diversidade. Daí, sim, podem vir ações  governamentais e de cidadania com virtuosidade, tendo no centro os comuns, o cuidado, a convivência e o compartilhamento como bases territoriais de resiliência ecológica e cidadã. Aliás, as transformações que ocorreram e podem ocorrer dependem do fortalecimento da cidadania local, suas resistências, propostas e ação coletiva. Nunca do capital ou da “boa ação estatal”, apesar de necessidade de investimentos e, sobretudo, da atenção e ação cuidadosa do Estado aos clamores da cidadania sujeita a viver no risco permanente no próprio território comunitário, com grandes necessidades.

 

 



[i] Aqui lembro a discussão feita em uma postagem anterior – “A Inevitável e Inadiável Transição” – quando destaquei a importância estratégica de participar e construir o “Tapete Global de Alternativas”. A respeito ver o site <globaltapestryofalternatives.com>.