Estamos em um momento de grande expectativa para que a
transição de governo aconteça sem nenhum sobressalto. Isto até pode parecer
normal depois de uma intensa e tensa disputa eleitoral com o governo que agora
termina. O que mais queremos é ao menos voltar a sonhar que é possível viver em
democracia para todas e todos. Esperamos e merecemos isto.
A tarefa inicial do Governo Lula será, sem dúvida, arrumar a
casa como condição para enfrentar emergências e urgências inadiáveis. Isto tem
que ser feito, em nome do cuidado das pessoas e da natureza, como enfaticamente
anunciado e assumido pelo próprio Lula na definição de seu mandato. Mas de
imediato se coloca a questão: se trata apenas de voltar ao que era e o que
tínhamos de políticas desenvolvidas nos governos democráticos anteriores,
especialmente período dos governos petistas? Ou, desde o início, a questão é
também enfrentar o desafio de começar a
definir e lançar as bases democráticas ecossociais mais sólidas de um país de
cuidado, convivência e compartilhamento nas relações entre todas e todos e nas
relações com a natureza?
O fato é que temos uma sociedade assentada em bases
excludentes e destrutivas, que precisam ser transformadas, não só mitigadas ou
controladas. A conquista e a colonização como lógicas estruturais operam até
hoje. Nunca é demais lembrar que tais lógicas movem a economia e tem controlado
o poder estatal como seu apoio político estratégico. Não cabe aqui analisar a
violenta e triste história de nossa formação feita a pau e fogo. Mas devemos
ter sempre presente que foi um processo de violência, destruição e morte
sistemática, contra os povos indígenas originários, escravos negros africanos,
imigrantes pobres da Europa e todos os descendentes dessa população, assim como
contra a natureza. Foi um processo de formação econômica, social, cultural e
política negando o cuidado como prioridade incontornável para a vida em
sociedade de convivência e compartilhamento. Pelo contrário, como processo
ainda dominante carrega um viés colonial extrativo e destrutivo, racista,
patriarcal e violento no seu DNA, renovando-se a serviço de uma oligarquia de
base territorial, capitalista e financeira, subserviente aos interesses
geoeconômicos e políticos mundiais de turno. Os negócios do agro e do minério continuam
no centro da economia e, pior, se fortaleceram, levando a um aprofundamento da
reprimarização e dependência econômica com apoio do Estado e suas políticas.
Isto, como projeto, continua colonizando o imaginário em
amplos setores da sociedade civil, apontando o extrativismo amplo como base das
nossas “fortalezas” para o desenvolvimento do país. É emblemático em nossa
história que os colonizadores começaram pelos “fortes” de conquista no literal –
o embrião do Estado colonial -, que são a origem das próprias forças armadas e
de sua sanha sempre presente de definir autoritariamente os rumos e os projetos
da nação Brasil, como se fossem um poder legítimo para tanto.
Fome, miséria, pobreza, precariedade e violência em que vivem
milhões da nossa gente, explorados e com direitos negados, em territórios
ameaçados e degradados nas “periferias”
urbanas, nos campos e nas florestas, os que já são afetados pela mudança
climática, são o retrato ecossocial da
falta de centralidade do cuidado com pessoas e natureza entre nós. Precisamos
de economia e de Estado para o cuidado. Ou seja, desde aqui e agora, as
próprias urgências e emergências tem que ser pautados por um projeto de país
justo e sustentável buscando criar novas bases democráticas ecossociais. Tarefa
para muitas gerações, mas que não podemos mais adiar, pois poderá ser tarde e
gerações futuras não nos perdoarão.
Um projeto radicalmente democrático e transformador da lógica
colonial vigente é tarefa coletiva permanente, de todas e todos, que precisa
ser construído e constantemente renovado como imaginário mobilizador. Mais, ele
tem que plantar raízes no seio da sociedade civil, na nossa construção de
identidades e vozes como cidadania a mais ampla e participativa possível, para
ser sustentável e resiliente diante das ameaças destrutivas e excludentes. Só
assim poderemos criar algo virtuoso e irresistível, capaz de moldar e inspirar
o Estado necessário e este poderá, em nome
da cidadania coletiva com sua
diversidade, regular a economia e o mercado em tal direção.
Por onde começar? Primeiro, aceitar a centralidade do
protagonismo da cidadania em ação. Não é o Estado que vai definir o
protagonismo, mas sim cabe ao Estado acolhê-lo e facilitá-lo, através dos
poderes executivo, legislativo e judiciário, que nós, como cidadania, temos o
poder de definir e redefinir como instituintes e constituintes que somos, se
necessário for.
Sem dúvida, ampliaram-se as destruições, exclusões e ameaças
fascistas sob o governo atual, não só por cerceamento das vozes de cidadanias
discordantes, mas pelo lawfare contra
as nossas lideranças políticas emblemáticas surgidas das lutas cidadãs e nas
disputas eleitorais, pela disseminação em massa de fakenews em redes digitais e assim conquistando suporte a seu
projeto ditatorial em nome “Deus, Pátria e Família”, mote pelo fascismo. Cabe
ressaltar, também, a desconstrução de espaços de participação social em
políticas, a liberação de armas e legitimação de milicianos, a “abertura das porteiras para o estouro da
boiada” sobre os territórios de cidadania, de forma a mais violenta e
destrutiva nestes anos de perda gradual de intensidade da democracia conquistada.
No entanto, não dá para ficarmos satisfeitos com apenas um
retorno ao que tínhamos e que foi definido mais de 30 anos atrás, implementado de
forma mais virtuosa nos 14 anos de governos petistas de nosso período
democrático recente. Nós mesmos temos que nos reinventar e lutar por
reconhecimento e legitimidade de nossa participação instituinte e constituinte,
que não depende da boa vontade dos poderes de turno. Somos nós, cidadania, e só
nós que temos a legitimidade para exigir mais e empoderar os poderes existentes
para que atuem na direção necessária.
A questão que estou levantando é a falta que nos faz um
consistente projeto democrático ecossocial, baseado no cuidado das pessoas e da
natureza. Um projeto capaz de apontar para transformações estruturais em nosso
país no longo prazo. Mas projeto que precisa ser definido e assumido com a
urgência necessária pela cidadania em sua diversidade, com base em seu papel
intransferível de construtora legítima, disputando-o democraticamente para
obter hegemonia no seio da sociedade civil e, assim, para poder ser acolhido
pelos poderes constituídos. A democracia instituída em 1988 foi uma poderosa
semente conquistada devido à potente mobilização da cidadania contra a ditadura
militar, mas ainda se mostrou insuficiente para fazer emergir tal projeto
coletivo, com capacidade de moldar o Estado e, através dele, regular a economia
a serviço da democracia e assentar as bases de busca de justiça e inclusão
ecossocial de todas e todos, com cuidado e respeito à integridade dos bioamas
que são fonte da vida e do bem viver.
Assim colocada a questão de fundo, trata-se de definições e
implementação de políticas que enfrentem a origem e as causas das exclusões e
destruições ecossociais, em nome de direitos iguais na diversidade que
carregamos. Não dá para combater fome, miséria, destruição e crise climática
com uma economia que é voltada exclusivamente para acumulação com bases
centradas em um modelo capitalista dependente da vitalidade de diferentes
extrativismos destrutivos voltados para fora –
o agrário, o petroleiro e o mineral – e reguladas
pela ditadura do mercado, acima do próprio Estado. Aí está a lógica estrutural
que precisamos enfrentar com um inspirador e mais intenso projeto democrático
transformador, que não pode ser definido e assumido coletivamente sem o
protagonismo da ação da cidadania em parceria com o Estado.