terça-feira, 8 de julho de 2025

O Que Fazer Como Cidadanias Diante das Mudanças Geopolíticas da Atualidade

 

Participei nos dias 5 e 6 de julho, no Rio de Janeiro, de uma oficina de imersão do INP – Instituto Novos Paradigmas, de Porto Alegre, em parceria com IDHES, BRICs Center/PUC-Rio e IBASE sobre “A crise do Multilateralismo e os Caminhos do Sul Global”, nos dias em que se realizava na cidade o encontro dos países membros dos BRICs. Surgiram muitas ideias e propostas estimuladoras, uma espécie de mapeamento de questões para cidadanias ativas em luta por democracia, sem chegarmos a muitas conclusões consensuadas. Como o evento foi inspirador em muitas questões, resolvi fazer um apanhado do que me pareceu que merece atenção de um ponto de vista de democracia ecossocial transformadora, que venho discutindo nas mais diferentes postagens do meu blog “Sentidos e Rumos”. Isto não é e nem pretende substituir o documento completo que o INP vai produzir como resultado de um trabalho coletivo, certamente com muito mais ideias e propostas.

Destaco em primeiro lugar, a importância da iniciativa do INP em nos interpelar para a questão do multilateralismo e os BRICs tratado dominantemente como questão de governos do Sul Global. Ela é também uma questão de cidadania que, talvez, não está recebendo a devida atenção de nossa parte.

Uma primeira grande questão são os enormes riscos de tragédia no ar, para além da geopolítica, causados pelas loucuras do governo de extrema  direita do Trump, para manter a todo custo a hegemonia dos EUA, com a sua proposta MAGA -Make America Great Again, hoje ameaçada inclusive pelos BRICs. A proposta pode ser destrutiva e até nos levar a um conflito atômico de ordem mundial, com uso de seu enorme arsenal militar e bases espalhadas pelo mundo.

No entanto, cabe ressaltar a importância e a oportunidade dos BRICs, claramente apontando outro mundo possível, mais includente e próspero. Esta iniciativa de governos do “Sul Global”, dado o seu tamanho em população e PIB, aponta uma possibilidade de outros caminhos, mais virtuosos e minimamente transformadores do poder mundial vigente. Destaco algumas análises a respeito.[1] Mas será que, de uma perspectiva de democracia transformadora do capitalismo globalizado e financeirizado dominante, esperar que a aliança dos países do  BRICs prospere será suficiente para a multiplicidade de situações e necessidades dos povos existentes no mundo?

Faço um destaque de algumas questões que o evento INP me permitiu captar, como uma espécie de contribuição às análises e debates que tem muito a destilar como ideias-força para nosso ativismo cidadão, que demandam pesquisa, análise e ação. São desafios, acima de tudo:

               . A manutenção da integridade dos sistemas ecológicos do Planeta Terra como bem comum de toda a humanidade e de todos os seres vivos.

               . Redução imediata e drástica de desmatamentos e queimadas, de plásticos e produtos tóxicos, da poluição das águas de rios e mares.  

. Redução e até eliminação da extração e do uso de energia fóssil como principal causa das emissões de efeito estufa e mudança climática.

.  o bem viver como nosso ideal de um pilar para um “outro mundo”, sem deixar nenhum lugar ou povo de fora, construindo uma biocivilização universal.

. Buscar sistemas políticos de democracia ecossocial transformadora em busca de direitos iguais na diversidade.

. Construir um mundo onde cabem muitos mundos, como nos lembram os zapatistas do México.

. Trata-se de termos um mundo como um tapete global de alternativas territoriais, como bem define e articula a Global Tapestry of Alternatives ( iniciativa da Índia).

. Como prioridades de cidadanias planetárias lutando pela radicalização da democracia precisamos combater toda as formas de regimes de dominação e exclusão, racismo, discriminação de gênero, de migrantes e a intolerância cultural e religiosa.

. Precisamos de paz pelo mundo inteiro, sem guerras, sempre priorizando a negociação e a busca de acordos de cuidado, convivência e compartilhamento, sem dominação de um povo sobre outro. Um objetivo estratégico de nossa ação deverá ser impor, de forma democrática, a redução de arsenais, bombas atômicas e as guerras pelo mundo.

. Tudo isto nos pode levar à multipolaridade e às democracias vivas como alternativa radical ao capitalismo globalizado e financeirizado, com seu eurocentrismo e “colonialidade” como paradigma civilizatório.

Estamos muito longe de tudo isto, mas já existem sementes promissores lideradas por Povos Tradicionais em defesa de seus territórios e modos de vida, multiplicação de iniciativas agroecológicas, cidades sustentáveis, coleta e reciclagem de produtos descartados, governos participativos, reservas protegidas e reflorestamentos com espécies nativas, despoluição de rios, iniciativas de transporte livre em cidades, para lembrar algumas iniciativas virtuosas e inspiradoras.

Para finalizar, penso que tudo isto e muito mais podemos tomar como nossa tarefa de cidadania e intervir determinados nas iniciativas governamentais na arena mundial.  

 



 [1]  Começam a se multiplicar as análises sobre os BRICs, apontando diferentes aspectos sobre o seu significado e possível impacto na atualidade. Destaco alguns que me tem ajudado nas minhas próprias análises:

. FIORI, J.L. “Entrevista para Tutaméia, 27/08/23 (acesso: https://tutameia.jor.br/novo-brics-explode-a-ordem-internacional);

.FIORI,J.L. A “multipolaridade” e o declínio crônico do Ocidente. Rio de Janeiro, Observatório Internacional do Século XXI, n/° 5;

.GRZYBOWSKI, C. A Multipolaridade, o Papel dos BRICs e a Agenda sobre Transições Energéticas e Mudança Climática. Rio de Janeiro, IBASE.

.GRZYBOWSKI,C. Multipolaridade Para Outro Mundo? Mudanças geopolíticas em curso na atualidade. Rio de Janeiro, IBASE.

.HEINE, Jorge. The Global South is on the rise – but what exactly is the Global South? 31.07.23. (Acesso: utopia@robertosavio.info).

.MOREIRA, A.B., ALMEIDA,L.D. e STEDILE, M.E. BRICs Uma Alternativa ao imperialismo? In: Front  Tricontinental de Pesquisa Social e Front – Instituto de Estudos Contemporâneos.

.ORANGE, M. “Brics: uma cumbre que preocupa a Occidente.” BITACORA. Montevidéu,04.09.23.

.SANZ,J.A. “Lanueva Ruta de la Seda de los BRICS cruza Eurasia, África e Sudamérica.”Corporación Latinoamericana Sur. Revista Sur, 28.08.23.

SOUZA SANTOS, B. “O BRICS+ e Confúcio. (acesso: aviagemdosargonautas.net/2025/06/23/os-brics-e-confucio-por-b...)

.TOLCACHIER, J. “Qué crece con el BRICS?. Montevidéu, 04.09.23.

VISALLI, a. “La ampliación de los Brics, el amanhecer de um nuevo mundo? Montevidéu, Bitacora, 11.09.23.

 

 

 

 

terça-feira, 1 de julho de 2025

 

Como Avaliar e Enfrentar as Contradições no Coração do Estado Brasileiro

Já há mais tempo avança, mas vem se intensificando, o problema de certa paralisia do Estado por causa da correlação estrutural de forças políticas institucionais, que afetam a democracia liberal que temos. Isto não está sendo devidamente enfrentado no Governo Lula III, que voltou a criar uma maioria eleitoral e gerou  esperanças de mudança. Desde o Governo Dilma II e, sobretudo, do Golpe Parlamentar do impeachment muita coisa foi se deteriorando e até nos levou ao destrutivo Governo Bolsonaro de extrema direita, fenômeno que se alastra mundialmente. Até foi praticamente desenhada uma ameaça de Golpe para a implantação de uma Ditadura, como o STF vem demonstrando e as imagens televisas chocantes de janeiro de 2023, no assalto à Praça dos Três Poderes,  com claros apoios na sociedade civil, comprovam e não deixam dúvidas.

Este é o quadro, sem dúvida. Mas será que está sendo bem diagnosticado e enfrentado? Gostaria de aprofundar a questão, sobretudo em termos de análises e propostas do que fazer. Afinal, bem ou mal, conquistamos uma democracia institucional e de alguma forma botamos a Ditadura de lado nos anos 1980, mas não enfrentamos todas as consequências dela e nem o câncer ditatorial foi extirpado de todo. Mas, de meu ponto de vista analítico, o que mais interessa aprofundar é o que, como sociedade civil e  cidadanias extremamente diversas de nosso Brasil, podemos e devemos fazer, ao menos tentar, diante desta situação?

Na década dos 1980, com diversidade de organizações e movimentos de cidadania ativa, no seio da sociedade civil, fazendo grandes mobilizações e pressões públicas, fomos a força fundamental no fim daquela Ditadura Militar. Não conseguimos muito do que queríamos, mas conseguimos sobretudo “Diretas-Já” e “Constituinte Exclusiva”.

Precisamos voltar ao Governo de Transição de 1985 que tivemos. Basta lembrar que ele foi liderado por uma aliança reveladora do poder civil tolerável, por assim dizer. Sem dúvida, se buscou uma transição civil, mas eleita indiretamente pelo Congresso ainda constituído segundo as regras eleitorais da ditadura, em 1980. Naquele então, apesar da forte “Campanha das Diretas Já”, a eleição foi indireta e nos legou um governo de Aliança Democrática, com Tancredo para Presidente e Sarney para Vice- Presidente. Sarney, era o líder civil maior da Arena de apoio aos militares, em tempos de Ditadura. Tancredo, apesar de um passado no PTB, foi do MDB, da oposição consentida pelos militares na Ditadura, com cassações quando necessário. A esperança popular em Tancredo foi frustrada pelo destino imprevisível  da vida, que  inviabilizou a sua posse. Ou seja,  tivemos um governo civil, sim, mas liderado por um Sarney, nem tão respeitável e democrático pelo que fez no Maranhão com apoio da ditadura, e que  passou a ser nossa realidade de transição democrática.[1]

Mas, para aquela conjuntura, foi a saída encontrada, afastando o mal maior e conquistando a Constituição de 1988, apontando em novas possibilidades para o Brasil, ao menos um horizonte de esperanças. Na verdade, não foi tão  pouco o que se definiu como fundamental para a democracia liberal: liberdade, igualdade para todas e todos, não à discriminação, solidariedade e cuidado com gente e a natureza, os direitos dos povos indígenas, quilombolas e tradicionais sobre seus territórios e modos de vida e muito mais. Claro, isto tudo apenas na institucionalidade da lei. Destaco ainda como fundamental, mas insuficiente, o voto cidadão periódico na renovação da Presidência da República, Governos Estaduais, Prefeituras, Câmaras e Legislativos, em todas estas esferas, tendo certo grau de autonomia e atribuições específicas.

Porém, não conseguimos extirpar um mal presente de forma privilegiada naquela formalidade ditatorial de ter um Parlamento e um Judiciário, mas onde qualquer um poderia ser cassado e banido da política por suas ideais, propostas e atos.  Ou seja, lembro que a tal polaridade de forças políticas já estava implantada de certo modo na Ditadura. Não é nova e não foi diretamente reconhecida como tal. Princípios mais claros na organização partidária foram estabelecidos, mas as raízes do “Centrão” não mudaram. Aliás, se recompuseram. As mudanças de nome de partidos não escondem sua origem, história e lógica.  Muda como tudo mundo no processo histórico, mas muda se recompondo de alguma forma. Temos que reconhecer, apesar de todas aquelas mobilizações, não acabamos a “velhíssima” política que tem origem lá nos “coronéis”, verdadeiros donos do sertão.

Avaliando este processo político em que se moldou a institucionalidade democrática do Estado Brasileiro, a tal “Constituição Cidadã” de Ulisses Guimarães, nasceu “encurralada”. Este é um conceito que venho trabalhando desde então, talvez mais nos anos seguintes. Na minha visão como analista, nossa questão é a reprodução do encurralamento da democracia, que cresceu ao invés de diminuir, apesar de tudo o que conquistamos. No processo político que permitiu a eleição direta de governos democráticos como Fernando Henrique Cardoso I e II, Lula I e II, Dilma I e II, com novas políticas especialmente sociais, como combate à pobreza e fome  (Bolsa Família), implementação maior das aposentadorias dos que nunca contribuíram para a Previdência Social, políticas nas áreas fundamentais da saúde e educação pública, algo de reforma agrária e assentamentos de sem terra, política de demarcação de terras indígenas e de povos tradicionais, questão da água no Semiárido, e, sem dúvida, políticas ambientais e de combate ao desmatamento, políticas de retomada do desenvolvimento industrial, investimentos em infraestrutura, hidrelétricas, petróleo, com criação de empregos e esforços de estabilização da moeda.

 Mas, é do interior do Congresso eleito pelas regras constitucionais de 1988 que se gestou o Golpe Parlamentar de 2016 contra a Dilma e contra o “progressismo de esquerda”, que tivemos, pouco transformador na verdade, mas de esperança. Depois, o curto Governo Temer de 2016-2019, já dependente do “Centrão”, fez mudanças constitucionais com a nova aliança golpistas e promoveu mudança nas leis trabalhistas e nas regras constitucionais dos recursos para educação e saúde, como aspectos destacados. Tal clima político nos levou ao Governo Bolsonaro de  2019-2023, sempre com apoio do “Centrão”.  Não é meu objetivo avaliar o quanto destrutivo foi tal governo. Então foi eleito Lula III, atual presidente, mas sem maioria parlamentar. Assim, chegamos a esta fase do encurralamento democrático, definido como “Presidencialismo de Coalisão” por muitos analistas, onde o “congresso pauta o governo” e, praticamente, controla o orçamento e não dá muito espaço para uma política econômica que enfrente o “poderoso mercado”: “Faria Lima”, os fundos de investidores e bancos que enriquecem  com a dívida, o “Agronegócio” e o “extrativismo mineral”, com seus subsídios financeiros  e isenções de impostos.

Na verdade, eu tendo a achar que, como sociedade civil e cidadanias organizadas e ativas, temos grande responsabilidade política toda esta situação. Demandamos muito a participação política, mas nos contentamos em fazer parte de Conselhos de Políticas Públicas e consultas em várias áreas, além de votar. Isto é necessário, sem dúvida, mas sem disputa na sociedade civil e nas ruas nunca teremos democracia participativa. Num certo sentido, como cidadanias, demonstramos também encurralamento. Sem dúvida, temos algumas ações emblemáticas como as mobilizações dos movimentos indígenas, das mulheres, o VAT-Vida, Além do Trabalho, o MST, as iniciativas virtuosas de agroecologia, mas não muito mais na atualidade.

Em termos mais gerais,  a questão central em minha reflexão e análise é uma certa apatia da sociedade civil e das cidadanias organizadas. Não é só o “desequilíbrio do presidencialismo de coalização” e o poder de fogo do tal mercado. A nossa certa apatia política potencializa as contradições existentes. Se algo pode desempatar e mudar, só poderá ser se nós como sociedade civil e cidadania nos engajarmos. Estamos esperando não sei o que. Difícil é, assim como é necessário. Mas não podemos simplesmente esperar que da institucionalidade surja a solução. Força transformadora e que empurra as democracias para a virtuosidade são as cidadanias, como brilhantemente defendeu Rosa de Luxemburgo, no início do século passado.  E mais, não temos modelos a copiar e tentar, pois cada realidade histórica, até cada pedaço de território, tem as suas especificidades. O transformador, de meu ponto de vista, ou tem raízes territoriais locais, lá onde vivemos, ou nunca será uma força irresistível.

Assim, concluo afirmando que depende de nossas visões, vontades e ações concretas a possibilidade de sair do encurralamento e avançar com transformações democráticas. A espera do governo de turno é certamente nada mudar, com possibilidades de até piorar. Como despertar tal vontade e ação entre nós? Tarefa de todas e todos!



[1] Fui orientador no IESAE/FGV de uma dissertação de mestrado de aluna do Maranhão, ainda na década de 1980.