O que me faz entrar na questão das religiões é o fato que, queiramos o não, elas ocupam um lugar muito importante na vida coletiva em todo mundo. Não dá para simplesmente ignorar do ponto de vista da análise e, sobretudo, do que podem implicar para as sociedades, as suas culturas e as suas evoluções políticas. No campo de ativismo e análise em que me situo, tendo como referência a ação cidadã para democracia ecossocial transformadora, a questão tem a ver com a centralidade que atribuo para a igualdade cidadã na diversidade, assentada no sentido de pertencimento coletivo, com cuidado, convivência e compartilhamento entre todas e todos, assim como com a natureza. Aliás, o poder/Estado para ser democrático tem que ser republicano e laico, por definição. Mas precisa saber reconhecer e valorizar a diversidade cidadã, toda forma de diversidade, como condição do republicanismo que deve praticar.
Deste ponto de vista, não dá para excluir grupos por suas opções, crenças e tradições religiosas, sejam quais forem, desde que se assentem nos princípios acima. Sabemos que não é bem assim na vida real. Pelo contrário, um dos grandes desafios para as democracias são as “guerras santas”, para impor um regime fundado em uma determinada crença religiosa como verdadeira. Isto, normalmente, implica em uso de força violenta e destruidora das próprias das bases de vida coletiva e, no geral, leva a formas de regimes autoritários e até a expansões e conquistas colonizadoras de outros povos, em nome de doutrinas e deuses considerados superiores e únicos, como a história humana está cheia de exemplos.
Trago esta questão ao aprender, como ativista cidadão, o quanto as religiões também fazem parte da igualdade na diversidade e que a disputa política não pode ser avaliada pela orientação religiosa ou mesmo o ateísmo confesso. Afinal, é parte dos direitos de cidadania ter a liberdade de escolha, inclusive aquelas de foro íntimo, como são as religiões. Mas não é isto o que hoje está instalado de forma intensa no Brasil pelo presidente e seu bando de pastores ministros, alimentando uma espécie de guerra santa em apoio ao armamento amplo,tendo a a violência como norma e o poder autoritário como condição. No círculo em torno ao Presidente Bolsonaro, incluindo a sua esposa, há uma clara negação de tradições culturais e religiosas outras, que não a sua, com as quais precisamos democraticamente conviver e valorizar,, especialmente de povos originários e tradicionais, bem como da enorme riqueza constitutiva das identidades da grande população negra do nosso país. O exclusivismo de uma forma de cristianismo está sendo mobilizado especialmente por alguns pastores, verdadeiros mercadores da fé, pois seu bolso e o acúmulo de riqueza, com dízimos, acaba sendo o motivo principal de sua atuação política. Felizmente, já há posicionamentos públicos, vindo de setores do interior das próprias religiões, que denunciam tal sectarismo como nada religioso e até negador da própria relição, por incitar o ódio e, assim, contaminar a disputa política atual.
Em princípio, toda religião pode ser legítima como expressão de uma visão da vida e do mundo e como fé pessoal a dar sentido ao próprio viver. Sem dúvida, as grandes tradições religiosas são elaborações complexas em termos filosóficos e teológicos, com grande influência na evolução da humanidade. Mas o fazer e viver coletivamente em democracia implica em conviver com diferenças e diversidades de opções em todos os campos, nunca os exclusivamente políticos. O que destrói democracias é sempre a imposição de um único modo de ser e viver. Afinal, democracia é um processo contraditório que tem a virtude de transformar as lutas, as mais diversas, em possíveis forças de construção. Mas para isto, sempre aceitando mutuamente o princípio de convivência dos diversas e até dos contrários, em todas as formas de relações e concepções.
Como nos lembra Tarso Genro[1], argumentar pela fé vai contra a razão democrática e submete a política à religião. Isto está contaminando o processo eleitoral atual no Brasil. Aliás, já temos um verdadeiro “bloco ideológico-religioso-moral” formado pela bancada evangélica, um dos maiores blocos de interesses que atuam no Congresso acima das opções partidárias[2]. Trata-se de um fundamentalismo que alimenta a intolerância religiosa como prática do poder. Isto está acontecendo no mundo todo, até como mais gravidade em alguns países, que nem preciso lembrar aqui. É alarmente o nível com que se implantou no Brasil e como está impactando o processo eleitoral[3]. Precisamos ter presente tal ameaça e diagnosticar seu poder destruidor do sentido de ser parte de um mesmo povo. Ou isto não tem sentido? Será que existe alguma forma de homogeneidade, seja cultural, racial, sexual, religiosa ou política, que não seja imposta pela força, como regime autoritário de regulação social?
As cidadanias ativas, em sua diversidade, estão sendo desafiadas a encarar este problema não como de opção religiosa em si, mas como uma forma de alimentar o ódio e estimular a violência contra adversários políticos, inaceitável como forma de disputa eleitoral democrática. Para constituição dos governos e legislativos, com mandatos legítimos delegados pela cidadania em sua diversidade, é fundamental que princípios comuns entre todas e todos estejam na base das motivações de participar. Só assim conseguiremos promover a democracia capaz de ter vitalidade na busca da inclusão de todas e todos nos plenos e iguais direitos de cidadania, sem discriminações.
Volto aqui a uma grande ativista que irrompeu com força na histórica virada política democrática, muito recente, que as esquerdas conseguiram na Colômbia, elegendo Petro presidente e Francia Márquez como vice. Colômbia teve um século inteiro de governos de direita que nunca deixaram de usar as formas mais violentas e até assassinatos de todos que se opunham politicamente ao saque das riquezas naturais do país por uma oligarquia agrária poderosa, respaldada por forças militares e paramilitares sempre a seu serviço. Isto foi muito bem retratado de forma genial nas obras de Garcia Marques, ganhador do premio Nobel de literatura. Sem dúvida, vale registrar a grandeza de Petro em chamar a Francia Márquez para compor a chapa vitoriosa. Petro vem de uma engajamento desde jovem na mudança de tal estrutura, primeiro através da guerrilha, e, depois, apostando nas virtudes do ativismo cidadão e na construção democrática num longo processo de conquista de legitimidade representativa. Francia vem do ativismo direto, desde a comunidade quilombola, “onde sua mãe enterrou seu umbigo”, como costuma afirmar.
Francia Márquez aprendeu e ensina que “Resistir não é aguentar” e afirma que “Sou porque somos”, porque pertencemos a um coletivo desde o nascimento, ressaltando assim a ética da interdependência numa comunidade solidária, em um espaço físico e uma cultura para cuidar. Enfim, um território humano de cidadania – como defino - para viver e pensar, revindicando os direitos inerentes tal modo de viver. E por aí chega à proposta simples do “viver saboroso”, em oposição a tudo o que representa formas de imposição e dominação, destruição, violência, mercantilização de tudo e acumulação de riqueza, em detrimento de gente e da natureza. Nas suas palavras “...viver saboroso é viver sem medo, em dignidade, em liberdade, em comunidade, com direitos plenos e em relação harmônica com os territórios”. [4]
A liberdade de opção religiosa é um direito fundamental, não pode ser uma imposição política de uma delas para o conjunto da sociedade. Isto é uma forma de autoritarismo e destrói o convívio social, base de democracias.
[1] GENRO, T. “O Deus dos desgraçados”. Boletim do blog Combate Racismo Ambiental. 17/08/2022
[2] EVANGELISTA, Ana Carolina. Piauí, Rio de Janeiro.
[3] OSAVA, Mario. “Religión, economia y democracia em la guerra electoral de Brasil”. Other News. 19/08/2022
[4] As traduções do espanhol para o português são minhas. Foram extraídas de um inspirador texto de Iván Olano Duque, que produziu um texto maravilhoso sobre este exemplo para toda a cidadania de ativismo cidadão de engajamento total, não importa onde estejamos e o que enfrentamos, que Francia Márquez carrega como seu modo de ser, vestir, falar e celebrar. Ver: OLANO DUQUE, Iván. “La Izquierda en el Gobierno. Francia Márquez: de la resistência al poder (I) e (II). Bitacora, Montevideo, nº 950, 15/08/2022.
Parabéns
ResponderExcluirTexto muito bom 👍👍👍. E preciso entender esse fenômeno evangélico tao desvirtuado em nosso país, se estendendo e envolvendo o o povo pobre em crenças absurdas que vão desde a compra de lugares ao lado de Deus até conseguir empregos com altos salários desde que contribua fartamente para o cofre do pastor.
Muito bom. Lúcido e preciso
ResponderExcluirObrigada pela partilha, vou divulgar!
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