Normalmente, o 07 de Setembro é mais tomado como um feriado para se curtir do que uma data a celebrar. Provavelmente, toda a população, desde a em idade escolar até os mais idosos, sabe que o dia foi fixado no calendário como data da celebração da Independência do Brasil. Não fossem os desfiles militares nas principais cidades, provavelmente muita gente nem lembraria da data. O fato deste ano ser aniversário de 200 anos da Independência em relação a Portugal não acrescentou muita coisa. O destaque foi a bravata com dinheiro público do “imbrochável” presidente, candidato à reeleição. Algo tragicômico e ainda por cima com conivência explícita das Forças Armadas!
O que vai além da data da Independência em plena campanha eleitoral, própria do rito democrático instituído, é a apropriação por um candidato dos símbolos e cores da frágil nacionalidade que nos une como povo: hino nacional, a bandeiras e as cores. Será isto uma reedição do “ame ou deixe-o” da ditadura militar de triste memória? No fundo, mais do que em outros 07 de Setembro, dada a grave situação política mais geral que vivemos e à qual somos chamados a definir saídas pela eleição geral, estamos sendo provocados a pensar quem somos e como chegamos a tal celebração agressiva.
Vale a pena lembrar aqui que já há muitos anos, por iniciativa do MST e agregando movimentos sociais populares, o 07 de Setembro é uma data de manifestações do “Grito dos Excluídos”. O mais importante, de um ponto de vista de ação cidadã, como venho enfatizando, não é o tamanho das manifestações mas seu simbolismo. Afinal, o “Grito dos Excluídos” nos lembra e nos provoca a pensar porque como povo convivemos com “excluídos” da cidadania. E eles são muitos, em muitos territórios urbanos e rurais, conformando os grandes núcleos de “periferias” onde falta de tudo. No entanto, são brasileiras e brasileiros de direito.
Daí a pergunta: quem somos, afinal? Ou que contradições nos conformam como povo de múltiplas facetas de desigualdades e injustiças ecossociais? Como forjar uma unidade possível? A língua dominante – um linguajar hoje apropriado como um comum, apesar de imposto pela colonização portuguesa – é suficiente para nos fazer um povo? Não estou questionando a importância estratégica deste comum, que o engrandecemos com muitas contribuições e musicalidade sem par, mas precisamos de muito mais para sermos um “povo” politicamente falando.
Vem dos povos indígenas um questionamento pensado mais profundo à nossa identidade como Brasil e povo brasileiro. Não tenho conhecimento do quanto isto está enraizado na cultura dos muitos povos e suas línguas, ainda existentes no território nacional. Dizimados violentamente pela conquista e colonização, os sobreviventes sofrem até hoje com a invasão de seus territórios, exclusão e invisibilidade. É de intelectuais indígenas a denúncia do que a nossa nacionalidade como Brasil carrega. Para eles, o território do Brasil era chamado Pindorama – a terra das palmeiras. A denominação Brasil vem da primeira commodity colonial, a exploração do pau Brasil na nossa Costa Atlântica, para virar tinta para os teares europeus.
Poucos países no mundo carregam identidades nacionais associados à exploração a que foram submetidos com a colonização. No nosso caso, o nome Brasil nos associa ao desmatamento, dos territórios com pau brasil. Ser brasileiro é ser identificado a uma profissão, a de madeireiro, segundo as regras do português que herdamos como língua. Enfim, algo a pensar, levando em conta que somos ainda um país que internalizou a colonização, com desmatadores munidos de armas, motosseras e grandes tratores para a “conquista de territórios”, com destruição das florestas originais, em busca de madeira nobre e garimpo de ouro. É uma onda que avança sobre povos indígenas e áreas protegidas. Estão em jogo grandes extensões de terras a privatizar para o agronegócio ... e, portanto, para produzir commodities. Até quando? Para os remanescente povos indígenas, a nossa Independência não mudou a sua situação de condenados à extinção. Os avanços a celebrar com a Constituição Democrática de 1988, mas ainda questionados pelo agronegócio e o atual governo, é o direito dos povos indígenas a seus territórios de origem.
Em um outro questionamento, também poderoso, não é sobre o nome em si, mas quem constitui o povo independente e o que celebramos com a Independência. Afinal, a grande base do trabalho escravo na economia, formada pelo tráfico de aproximadamente 5 milhões de pessoas negras da África – uma commodity fundamental do capitalismo nascente – não foi extinta. Pelo contrário, a Independência se fez pelo alto entre donos de gado e gente, espécie de nobreza agrária assentada no trabalho escravo. A tardia extinção do trabalho escravo no Brasil, sem redistribuição de terras – pelo contrário, dificultando o acesso – e sem real emancipação econômica, social e política, alimentou e alimenta até hoje um racismo estrutural na sociedade brasileira. Aliás, o “imbrochável” nega a própria existência do racismo e o direito da população negra – maioria da população brasileira – de acesso aos direitos de cidadania iguais na diversidade.
As questões sobre quem somos como povo são muitas e envolvem muitos outros segmentos populacionais fundamentais, que nos constituem como povo real. No curto espaço desta reflexão, meu objetivo é chamar a atenção a questões quentes que precisamos enfrentar e transformar democraticamente. Reconheço que muitos outros segmentos se sentem excluídos ou descriminados como parte do mesmo povo. Afinal, quem é o povo? Quem pode legitimamente reivindicar ser parte do povo?
Enfim, esta parada do quem somos e da titularidade comum a direitos de cidadania, sem desigualdades e discriminações, de termos os comuns e identidade compartilhada, só poderá ser enfrentada por nós mesmos, pluralidades de cidadanias ativas, onde os movimentos negros, dos povos indígenas e tradicionais, feministas, LGBTQI+, também são fundamentais. Enfim, todas e todos que habitam o território comum que compartimos tem direito de reivindicar pertencimento ao mesmo povo. Nunca será um governante de mal consigo mesmo e truculento que poderá definir quem é quem e como integra ou não o povo deste nosso país. Só a cidadania pode definir quem somos como povo e garantir que seja um comum a celebrar, identificando os “inimigos do povo”. Que os temos, penso que não há dúvidas. Estão aí e precisam ser enfrentados politicamente, dentro de regras democráticas radicais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário