Neste momento, entre a vitória eleitoral e a posse, as grandes questões que dominam as análises e debates estão centradas na política fiscal e no “teto de gastos” no novo governo, políticas para o cuidado das pessoas e da natureza e, claro, a possível composição da equipe ministerial, em particular para a Fazenda e a Defesa. Merecem muita atenção as revelações da equipe de transição sobre o diagnóstico do desmonte feito nas mais diferentes áreas pelo governo do inominável, como forma de implantar no coração do Estado o seu projeto de poder antidemocrático. Há, sem dúvida, a questão das manifestações e dos atos dos fanáticos apoiadores demandando uma solução militar autoritária, que mesmo perdendo força continua sendo uma ameaça para a democracia e uma demonstração de organização, financiamento e força de uma direita fascista que vai ser um desafio político e de segurança nos próximos anos.
Vejo certa normalidade na ênfase com que se tratam tais questões que tem a ver mais com o poder estatal e sua renovação a partir de janeiro, sob liderança de Lula e da coalizão política em torno a ele. Até é bom que isto venha à tona e seja debatido, pois é parte do processo democrático. Seria necessário que também entrasse no debate mais destacadamente a ideia do “revogaço”[i] necessário de tudo o que foi feito em termos infralegais, por normas e desregulações para “passar a boiada” na democracia e criar uma espécie de ambiente autoritário no modo de operar de todas as esferas do poder executivo federal.
Enfim, estamos diante do desafio do governo vir a ser capaz de responder ao mandato que lhe damos pelo voto: restabelecer democraticamente o destruído e produzir novas políticas democráticas para toda a sociedade brasileira, políticas de regulação da economia que tende a ser ecossocialmente excludente e destruidora, e políticas de nossa inserção nas relações internacionais, participando na definição e implantação de programas mundiais para o enfrentamento da crise climática e a construção de caminhos de cuidado e compartilhamento do Planeta entre todos os povos que formamos a humanidade. Sem dúvida, esperamos do Governo Lula a coragem e a determinação para avançar em tal rumo neste momento histórico político e econômico difícil, nacional e internacional.
É aqui que cabe apontar um desafio fundamental para a democracia que ainda não está claramente pautado na esfera pública. Tudo o que foi destacado acima, importante sem dúvida, é parte da esfera do governo. Porém, democracia tem a ver com muito mais, pois não se restringe a tal esfera. Penso que o Estado é ainda insuficiente para respirar ares de democracia mais viva e mais virtuosa em transformações. Para podermos sonhar com futuro possível melhor precisamos criar ou revitalizar muito mais, sem esperar outro momento, pois agora é a hora. Precisamos criar outras condições políticas e culturais para florescer a democracia. Este momento é novo também para a sociedade civil brasileira, para os movimentos e organizações de cidadania ativa em sua diversidade de vozes, muito cerceados em sua atuação e até criminalizados nos últimos anos.
A democracia como um modo de organização da vida coletiva, em comum, está longe de ser só um modo de organização e operação do poder estatal e suas esferas, baseado numa Constituição e nas leis, por mais importante que seja. Estou me referindo a algo muito além da concepção liberal de democracia, pois está já provou entre nós e no mundo todo que a forma liberal só serve a uma economia liberal e, mesmo assim, desde que não ouse enfrentar o privilégio da propriedade privada, as grandes fortunas e/ou enquadrar o mercado capitalista. Democracia é um modo da sociedade se organizar e fazer, exercendo seu poder instituinte e constituinte sobre o poder e a economia.
Aqui estou apontando o desafio para reconstruir um protagonismo cidadão indispensável e com potência para fazer o poder andar e a economia ser, no mínimo, enquadrada pelo poder. É um processo em disputa permanente, pois democracia viva é isto mesmo, exige participação sem limite, a mais intensa e radical, a mais respeitadora da liberdade e igualdade entre todas e todos.
Este desafio está na esfera da sociedade civil em seu sentido profundo de relações, estruturas e processos vividos e pensados,com disputa de imaginários, de visões de mundo, de princípios e valores, de rumos, enfim. Isto tem a ver com a cidadania política “emancipada” ou, melhor, em luta por sua plena emancipação, situação vivida e compartida entre todas e todos, com sentido profundo de liberdade e igualdade de direitos, mas diversa e com oposições, nos múltiplos e complexos territórios em que vamos levando a vida. Trata-se de exercer protagonismo cidadão aberto, no espaço público, nas praças e ruas, nas associações e organizações, nos meios de comunicação, nas instituições públicas, nos espaços da cultura, na relação com o poder estatal e seus órgãos. Trata-se, também, de tornar públicos, denunciar e exigir controle dos conchavos com corrupção, às escondidas, dos donos de tudo, os mesmos que buscam sempre ter governos e legisladores a seu favor e até colonizar nossas cabeças com suas propostas, propagandas e mentiras.
Bem, aqui só aponto a questão: trata-se de disputar hegemonia democrática de modos de pensar e agir no seio da própria sociedade e com base a isto participar. Por exemplo, a questão religiosa, especialmente o que aconteceu no seio de muitas comunidades de fé, como por exemplo os pentecostais, que levou a apoiar um projeto fascista, é uma questão para a cidadania e não para o Estado republicano. Mas tem muito mais. Racismo e machismo são questões estruturais presentes e constitutivas do modo de ser da sociedade, da economia e do Estado. A colonização dos povos e dos territórios que ocupam está na economia e colonizou o próprio Estado Nacional a serviço de seu projeto de país. Tudo isto, ou nós, como cidadanias, assumimos juntos para extirpar de nossas mentes, corações e práticas sociais, não é um governo em si que vai poder enfrentar, por mais sensível e aberto que seja a tais questões.
Enfim, como cidadanias deste imenso Brasil, precisamos nos refazer profundamente e, no processo, construir uma esfera pensada e praticada como um grande comum, onde há lugar para todo mundo e todo mundo é estratégico. Trata-se de um saber e uma consciência coletiva, como potente patrimônio democrático frente ao Poder/Estado e o Mercado/Economia. Trata-se, enfim, de exercer protagonismo político cidadão autônomo, mais que partidário, para que alguma forma de democracia ecossocial transformadora seja possível e a seu modo irresistível como processo gerador de projetos de cuidado, convivência e compartilhamento, sem exclusões, discriminações ou “esquecimentos”.
Termino
esta reflexão apontando o seguinte: nosso problema é que não estamos discutindo
tal protagonismo cidadão. Ou seja, o desafio nem está bem plantado entre nós.
Até quando?
[i] O conceito de “revogaço” antifascista foi cunhado por Josué Medeiros, do Núcleo de Estudos sobre Democracia Brasileira, da UFRJ. Aponta para a necessidade de desconstruir o feito através de normas, regulamentos, portarias, cortes orçamentários em políticas, esvaziamento da capacidade de ação de instituições, etc., para minar por dentro o aparato estatal e implantar condições políticas e uma cultura administrativa a serviço de um projeto autoritário excludente. O “revogaço”, que não depende de outros poderes, precisa ser feito no momento inicial do novo governo como condição para governar.
Concordo 100%. Com o espaço sindical minguando e os mecanismos institucionais de participação restritos a opinar sobre projetos e programas de terceiros; o protagonismo social está sem espaço.
ResponderExcluirAporto aquí mis comentarios a propósito de los artículos que el amigo y maestro Cândido ha aportado en su Blog en los meses de noviembre y diciembre hasta hoy.
ResponderExcluirSeñalo algunas cuestiones fundamentales que atraviesan todos los artículos en mayor o menor medida: esperanza por los nuevos rumbos que toma la política brasileña tras la feliz elección presidencial de Lula, la permanente amenaza por la fortaleza del fascismo en todos los espacios de la sociedad y del poder, la permanencia de una cultura machista, racista, colonialista y extractivista en la sociedad brasileña, la disputa permanente por la democracia, la necesidad de unas políticas públicas que se impongan a la política capitalista de la dictadura del mercado, la insuficiencia de la intervención desde el Estado para implantar un nuevo programa de transformación y justicia ecosocial y la necesidad del empoderamiento ciudadano que ejerza una presión organizada y movilizada continuada sobre el Estado y sobre el Capital para garantizar la consolidación democrática y las políticas de justicia social y ambiental -se trata de construir y ganar la hegemonía cultural y social-, y la importancia de alcanzar la democracia económica como condición necesaria para alcanzar una verdadera democracia política.
Cândido nos propone un programa: cuidar a la gente y a la naturaleza en un proyecto de justicia ecosocial, para Brasil y para el mundo, para el Brasil que el mundo necesita. Un programa basado en los valores de la igualdad en la diversidad, y con el objetivo y el reto inmediato de garantizar pan, trabajo digno, casa, educación y salud para toda la población brasileña, preservando la naturaleza y los bienes comunes, en el que la justicia social es ya incompatible con la destrucción ecológica y viceversa. Un programa político del cuidado.
Un programa para el cual existen ya múltiples experiencias organizadas en la sociedad local, en comunidades, foros y redes. Experiencias que podrían y deberían convertirse en políticas públicas a escala brasileña y que podrían ser inspiradoras a escala internacional.
Esperanza bienvenida en un momento de crisis de horizontes utópicos. Una nueva esperanza desde Brasil para el mundo.
Comparto y agradezco esta esperanza, estos valores y este programa.
Deberemos construir y disputar la hegemonía desde cada territorio y articular esperanzas y luchas globalmente.