Estamos diante de uma possibilidade histórica real, no
Brasil, de renovação democrática. Mas os desafios e obstáculos são muitos. Sabemos
que o Governo Lula e sua equipe ministerial, apesar das dificuldades que vão enfrentar
no próprio aparelho do Governo Federal (Forças Armadas e desmonte institucional
do governo anterior), no Congresso (que obriga à buscar a conciliação política)
e a ditadura dos rentistas do mercado (com seu dogma de ajuste fiscal), vai dar
o melhor de si e com determinação para reconstruir instituições públicas e
políticas, até mais vigorosas que aquelas dos governos petistas passados. Só
que a renovação democrática só acontecerá de fato se as cidadanias ativas
também renovarem seu ativismo e suas propostas naquilo que só elas podem fazer.
Sei que imediatamente a gente é levada a pensar em “governo
participativo”. Por sinal, o Lula já assinou decreto a respeito e atribuiu à
Secretaria da Presidência a tarefa de coordenar tudo o que diz respeito à
participação social no governo. Nos dois períodos passadas do Lula na
Presidência se avançou em espaços de participação, com conselhos de
participação de representantes da sociedade civil em muitas políticas – mas não
nas “duras” voltadas à economia e o mercado, a raiz do atraso e dos privilégios
vergonhosos – e com o ciclo de grandes conferências nacionais, para lembrar as iniciativas
mais importantes. Criou entusiasmo e abriu grandes expectativas. O
funcionamento foi muito desigual, com alguns bons resultados em algumas áreas,
mas gerou igualmente grandes frustrações na maior parte. O melhor do processo
de então foi o avanço em debates e propostas, gerando um aprendizado cidadão
sobre limites e possibilidades de um governo participativo pra valer. Mas como
afirmava o ministro do Governo Lula com atribuições de coordenação, no então,
foi mais um processo de “consulta forte” do que de real compromisso do governo
com as propostas feitas e encaminhadas pelos conselhos e conferências. Cabe
acreditar que desta vez a aposta em “governo participativo” seja algo mais
ousado, apesar das dificuldades.[i]
Por mais importante e necessária que seja a participação
direta no governo e suas políticas, também nos espaços do Congresso, há uma
ação política estratégica para a democracia de alta intensidade que só um bloco
histórico de cidadanias ativas em permanente renovação pode propiciar: forjar uma potente cultura
democrática como imaginário agregador e
mobilizador capaz de conquistar hegemonia na sociedade civil, condição
indispensável para um governo democrático participativo e transformador. É esta
questão, a mais desafiante e, portanto, a mais difícil na conjuntura política e
encruzilhada histórica em que estamos, que precisamos enfrentar urgente e consequentemente.
E ela depende mais de nós, as cidadanias em ação, do que do Estado.
Para enfrentar um desafio assim é indispensável não minimizar
o enorme avanço e suporte que conquistou na sociedade a onda fascista da
direita. Descobrimos, até meio espantados, que o imaginário democrático foi
posto em questão de forma sistemática. E, pior, vimos que a onda fascista em
nome de “Deus, Pátria e Família”, racista, misógina, homofóbica, armamentista,
miliciana e violenta conquistou corações e mentes e esgarçou a sociedade. Tudo alimentado
por muito ódio e fakenews espalhados de forma sistemática nas redes sociais.
Usou o governo para abrir as porteiras e “passar a boiada” sobre territórios,
instituições, políticas e conquistas
democráticas desde a Constituição de 1988. E por fim, mas não menos importante,
se mostrou muito oportuno e útil para negócios legais e ilegais, especialmente o
desmatamento e a grilagem de terras, os garimpos em terras indígenas, os
grandes extrativismos minerais e do agronegócio, e o poderoso mundo do mercado
dominado pelas grandes corporações econômicas e financeiras.
A cultura democrática viva e transformadora que precisamos
para enfrentar tal onda é um desafiante processo coletivo de nos pautar por um
modo de ver, pensar e agir democrático. Trata-se de um esforço permanente para
a construção de imaginários no seio da sociedade, assentados em princípios e
valores de busca do reconhecimento de direitos comuns da liberdade, igualdade,
diversidade, participação e solidariedade, interligados entre si, como bases do
pertencimento, cuidado, convivência e compartilhamento, sem exclusões ou
discriminações, como cimento agregador e vivência no seio da sociedade civil e
de se sentir parte de uma nação. A cultura democrática pode ganhar potência e
renovação diante dos desafios que
enfrentamos. Trata-se de priorizar isto como um processo sistemático de criar
espaços e formas de diálogo entre nós, as cidadanias ativas, sobre a
diversidade de situações e relações vividas, que nos motivam a nos organizar e
lutar, sempre em busca por direitos negados.
O saber e o imaginário coletivo desta prática de trocas de vivências,
experiências, lutas e reflexões, integrado organicamente, é a base para um
pensamento político estratégico do que é e como fazer democracia ecossocial
transformadora e disputar hegemonia na sociedade civil. Cultura democrática não
é um modelo acabado de sociedade, mas um modo de fazer e uma orientação em
busca do possível e do melhor para a maioria e, num certo sentido, para todo
mundo. Sempre baseado no poder instituinte e constituinte da cidadania. Por
isto, cultura democrática é um processo de empoderamento de nós mesmos que, a
partir de nossas lutas, abraçamos a democracia como processo transformador por
mais justiça ecossocial.
Conquistar hegemonia democrática é trazer ao centro do viver
um modo de pensar e fazer a política baseado na sociedade civil, definindo que
Estado/poder e que Economia/mercado
precisamos. Numa sociedade de classes, com suas múltiplas formas de exploração,
dominação e exclusão, é um processo contraditório de luta política, permeado
pelas relações, estruturas e situações sociais e históricas dadas, com extremas
injustiças ecossociais, onde os princípios e valores democráticos apontados
acima estão longe de serem compartidos.
Não podemos confundir a última vitória eleitoral do bloco de
forças em torno a Lula como resultado de uma hegemonia política democrática. O
maior erro na conjuntura atual é menosprezar a onda fascista e de ódio que se
implantou entre nós. Criar uma poderosa e transformadora cultura democrática como
hegemonia tem como fundamento consentimento ativo majoritário, não apenas
eleitoral. Isto supõe um permanente movimento de aprendizado em trocas e em
disputas na sociedade de como se ver e perceber a si e todas e todos os demais,
os seres humanos e não humanos vivos e da própria base de todas as formas de
vida, a natureza, de como pertencer e viver em coletividade compartida,
territorial, nacional, regional, mundial, num Planeta Terra único. A hegemonia
política de uma visão e cultura democrática será consequente e virtuosa se for
capaz de moldar e cobrar do poder as políticas promotores de direitos iguais na
diversidade social e, também, formular e executar consistentes políticas para uma
economia sustentável, baseada na preservação da integridade dos sistemas
ecológicos e biomas naturais, para produzir os bens e serviços que precisamos.
Colocado assim o desafio político, a cultura democrática
ecossocial precisa se renovar de forma permanente pela ação das cidadanias
ativas, por práticas culturais e políticas no nosso seio de sociedade civil,
que qualifiquem uma visão democrática estratégica, onde cabe a valorização da
igualdade na diversidade, o combate às discriminações de qualquer tipo e as
violências praticadas, a defesa dos comuns naturais e dos produzidos. Isto
implica em pensarmos estrategicamente a comunicação e a informação ampla e
responsável, contra as fakenews. A disputa de hegemonia é uma tarefa
essencialmente política a ser feita no seio da sociedade civil. Será mais
potente quanto mais procurarmos os elos comuns da vibrante diversidade que
existe entre nós mesmos, cidadanias em ação.
[i] Cabe lembrar aqui a reflexão sobre participação e governo participativo feitas por Olívio Dutra, do PT, que como prefeito de Porto Alegre introduziu o “orçamento participativo”, uma experiência mais direta e consequente de participação, com repercussão nacional e mundial. No pequeno período como Ministro das cidades no primeiro Governo Lula, Dutra não conseguiu avançar a respeito. Ver entrevista de Olívio Dutra a Glauco Faria, para o Brasil de Fato. Acessado no blog Combate Racismo Ambiental, de 6 de fevereiro de 2023.
Parabéns pela reflexão. Muito boa e realista.Importante ter os pés no chao.Lutar pela hegemonia sem perder o noção do contexto político atual nesse país tão dividido e tão diverso.
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