Não foi necessário
muito tempo para o Centrão mostrar a sua capacidade de encurralar a democracia
que reconquistamos com Lula e a complexa frente formada para a vitória
eleitoral de 2022. Trata-se de uma espécie de maioria parlamentar no Congresso
Nacional sem nenhum compromisso com a democracia enquanto tal, mas que se
articula em torno à primazia de interesses pessoais, paroquiais (seus redutos
eleitorais) e de bancadas corporativas, acima de qualquer compromisso
programático e partidário. São parlamentares que agem, se articulam e votam sempre
em busca de vantagens. Nunca se pautam pelo bem comum ou aportam algo a
ele. Foram fiéis bolsonaristas enquanto
convinha. Agora são lulistas enquanto convier. Mas não dá para menosprezar seu
poder no Congresso Nacional.
O mal político, uma
espécie de câncer de sete vidas, vai mudando de posição, conforme as
conjunturas, para garantir que nada de essencial mude. Até parece que está no
próprio DNA de nossa República. Como Arena – Aliança Renovadora Nacional (que ironia!) - foram forças de apoio à
ditadura militar no que se manteve como Parlamento expurgado e manietado pela
Ditadura Militar e seus Atos Institucionais. Seu líder, o Sarney, até se tornou
o presidente da Nova República, em 1985, marcando o fim da ditadura militar
(outra ironia que nossa história nos pregou!). Mas como Centrão se conformou
pela primeira vez no processo que gerou a Constituição Democrática de 1988, a
base constitucional que temos até hoje. Com grandes virtudes e conquistas de
direitos constitucionais, diga-se de passagem. Mas também com o câncer da
governabilidade conciliadora embutido nela. Como já afirmei muitas vezes, temos
uma jovem democracia encurralada e até aqui não soubemos encontrar brechas de
saída democrática que não seja o “brete” estreito e sofrido do curral ... do
Centrão no Congresso.
Desde então, o Centrão
tem mantido os governos federais que se sucederam como reféns de seus
interesses. A proliferação de partidos e o troca-troca partidário são as
maneiras de acomodar interesses que são, acima de tudo, nada republicanos e
democráticos. Acontece, sem dúvida, alguma renovação em termos de pessoas e até
de métodos de agir, mas sempre cobrando favores para si ou seus redutos
eleitorais e financiadores. É um modo de ser e agir que muda para nada mudar.
Sem dúvida, não são todos os membros eleitos do Parlamento que, sob nomes partidários diversos e mutantes, acabam
compondo o Centrão. Existe claramente uma esquerda e uma direita, mas
minoritárias. É Centrão que aglutina a maior bancada, com poder de veto em
iniciativas de leis e mudanças no Congresso Nacional. Como governar em tal
situação? Eis o desafio para quem comanda o Poder Executivo Federal.
É importante que fique
claro algo próprio de democracias: as disputas acirradas nos Parlamentos são
partes constitutivas do método democrático de fazer governo. Esta é, inclusive,
sua virtude maior em contraposição a qualquer autoritarismo. Na dúvida, sempre
existe o Poder Judiciário autônomo, como garantia da ordem constitucional
vigente, para dirimir dúvidas e impasses em termos legais. O Executivo é um
grande poder propositivo e operativo, mas para mudanças mais significativas
depende de leis debatidas e votadas pelo Parlamento, assim como da aprovação do
próprio orçamento federal para executar as políticas propostas.
Mas, se temos Centrão e
aquela profusão de siglas partidárias, sem compromisso democrático e
programático real, onde está a sua origem? A lei estabelece regras, mas quem
vota e tem poder instituinte e constituinte somos nós, cidadanias com direito
ao voto. Nós delegamos, pelo voto, poder
a todos os membros do Parlamento, assim como ao Presidente e Vice-Presidente.
Somos nós, os milhões com direito ao voto -
votando ou nos abstendo – que fazemos nossas escolhas e conferimos
mandatos de tempo definido. Sempre é possível a renovação, assim como a
reeleição, mas sempre através do voto dado por eleitores e eleitoras.
Não é o caso aqui de
entrar mais aprofundadamente nas artimanhas constitucionais que enviesam o peso
dos votos. Não temos distritos eleitorais pulverizados pelo território
nacional, mas temos – no caso da Câmara e do Senado, que conformam o Congresso
Nacional – grandes distritos que são os Estados. Cada Estado da Federação elege
um mínimo de 8 deputados federais, como Roraima e outros pouco populosos, e um máximo
de 70, em São Paulo. Todas as bancadas estaduais ficam dentro de tais limites mínimo e máximo.
Em Roraima, em 2022, menor colégio eleitoral do país, bastaram menos de 46
mil para eleger um deputado. Na prática
é menos que isto, pois só valem os votos válidos, sem as abstenções ou nulos.
Em São Paulo, o maior colégio, para
eleger um deputado federal o quociente foi de mais de 494 mil, na prática menos
que isto, mas dá para ter ideia do tamanho da diferença. Além disto, não
importando o tamanho do colégio eleitoral estadual, cada Estado tem direito a 3
senadores. No caso, 3 para Roraima e 3 para São Paulo. Dada a distribuição
extremamente desigual em tamanho populacional dos Estados, dá para ver a
distorção na expressão do voto da cidadania para um dos poderes maiores e mais
representativos da democracia brasileira: o Congresso Nacional.
Não sei se algum dia poderemos
alterar isto, mas é dentro destas bases constitucionais que elegemos os
congressistas brasileiros. Não dá para negar que são representantes legítimos,
porque eleitos segundo as leis, mas que distorção da vontade das cidadanias que
votam! Todas as múltiplas e diversas cidadanias deste país acabam mascaradas
por regras e poderes nada democráticos, está é a verdade. Felizmente, tais regras não valem para a
eleição da Presidência da República, onde decidem os votos majoritários em
eleição nacional, permitindo refletir melhor a composição da diversidade social
e política cidadã do Brasil.
O problema concreto
para governar a partir do Executivo é que se faz necessário compor politicamente
com o Congresso assim conformado. Não indo muito longe e ficando no período
inaugurado pela Constituição de 1988, a conciliação com o Congresso é uma regra
que limita o poder do Governo eleito. E, ainda pior, há o Centrão fisiológico
onde quase nada se aprova sem ele. O Centrão é, em termos institucionais, uma
baliza delimitadora do que é possível negociar com sucesso em votações no
Congresso.
Não tenho dúvidas que o
desempate nessas condições de qualquer proposta que tem que passar pelo
Congresso supõe concessões por parte do Executivo ou, então, uma espécie de
paralisia. Felizmente, nem tudo precisa passar pelo Congresso, ou seja, pelo
Centrão. Mas, se alguma possibilidade existe, ela depende e muito de nós
cidadanias ativas, exercendo nosso papel político, a partir da sociedade civil,
para além do voto em eleições periódicas. A vitalidade da democracia pressupõe,
em última análise, o quanto a democracia em si é ou não uma proposta hegemônica
na sociedade. Se o Congresso pressiona por concessões, nós com debates e
ativismo, podemos definir os limites para concessões. É assim que funcionam as
democracias: nós não nos desobrigamos do ativismo contínuo por votar
periodicamente. Pelo contrário, precisamos exercer pressão cidadã para fazer
valer o voto majoritário concedido na eleição do Executivo mor, no caso o
Presidente Lula. Simples e complexo assim.[1]
Mas isto não é tudo,
enquanto limites para a democracia. Temos um sujeito político sem cara nem
voto, mas é de pessoas da classe dos 1%, que se apresenta como “mercado” e veta
tudo que pode significar algo menos para tal classe. Claro, tem um
representante como presidente do Banco Central “autônomo” (melhor dito, não
sujeito à política e à vontade da cidadania), mas com muito poder real para
produzir o impasse total num país como o Brasil. Aí o osso é duro e o ministro
Haddad não parece estar conseguindo
grande coisa nas suas muitas conversas reservadas com aqueles pouquíssimos
representantes dos que gostam de se chamar “mercado”. Que mercado é este que
impõe tais limites para a democracia no Brasil? O Lula tem falado grosso, mas o
“mercado” não tem ouvidos, só poder real de veto, sem voto para tanto. O
problema é que retomar o caminho de uma democracia um pouco mais virtuosa em
sua capacidade de promover o cuidado de gente e da natureza (como venho
enfatizando) colide com uma economia voltada essencialmente à acumulação
privada de uma fraçãozinha de gente. Este tal mercado é um fantasma, mas real. E
os lobistas do Centrão são por ele financiados. Temos que encontrar formas de
peitá-lo algum dia. Novamente, uma questão para a cidadania enfrentar gerando
força política com capacidade de levar a uma democracia ecossocial
transformadora que precisamos, que precisa passar por mudanças profundas na
economia.
Vale a pena dar uma
olhadinha na nossa volta, na América do Sul, nos governos com propostas
minimamente progressistas. Os problemas que enfrentam são semelhantes, mas do
que sei não posso afirmar que se manifestam do mesmo modo. Pela proximidade
maior, vale a pena acompanhar o caso argentino, com Fernandez Presidente,
totalmente encurralado pelo mercado, de forma particular pelo FMI/BM e os “fundos
abutres” por trás. Ele já anunciou que não vai buscar a reeleição, pois não vê
saídas para o impasse.
O caso chileno é
emblemático, que precisamos avaliar para aprender onde a cidadania errou. Não
vou entrar em detalhes, mas foi o país com a maior insurreição cidadã da região
nestes tempos recentes. Conquistou uma Constituinte Exclusiva, ganhou a maioria
na sua composição, propôs uma fantástica Constituição e... perdeu no voto
majoritário que precisava referendá-la. Isto que tinha eleito um jovem
presidente, o Bóric, vindo da militância, desde o movimento estudantil, contra
tudo o que o ditador Pinochet impôs ao Chile,
no que se tornou então o mais radical experimento neoliberal da região. Pior,
agora, numa nova eleição para redigir outra Constituição, a direita chilena
acabou de ganhar a maioria. Tudo voltou a estaca zero. Tem que ser assim? Não,
mas temos que aprender a nunca deixar de ser vigilantes e ativos como
cidadanias.
O caso da Colômbia é,
talvez, mais parecido ao da gente. A vitória de Petro foi um marco de grande
significado democrático, depois de um século sem governos de esquerda e muita
divisão, até guerrilhas por mais de 50 anos, exército paralelo, produção e
tráfico de cocaína, bases militares dos EUA. A seu modo, a eleição que deu a
vitória a Petro foi empolgante e revigorante. Mas a coalizão política em torno
a Petro não obteve maioria no Congresso. Como Lula, ele soube costurar um apoio
parlamentar, compondo um governo amplo. Mas em nove meses, o centro do programa
que o elegeu – grandes reformas, especialmente na saúde, no trabalho e na
questão agrária – submetido à aprovação no Congresso acabou perdendo. Pior,
perdeu com o votos de partidos com ministros no governo. A reforma na saúde,
financiado pelo setor público mas implementada totalmente por prestadores
privados, é a sua proposta mais ousada até agora, mas nem o partido da ministra
da saúde apoiou. Assim, Petro apostou numa remodelação total do seu governo,
demitindo os ministros de partidos infiéis. Agora está decidido a fazer o que
sabe fazer melhor: apelar para a cidadania nas ruas. Sem dúvida, algo ousado,
mas caminho possível e virtuoso em democracias para valer. Veremos em breve o
resultado.
Aponto isto tudo que se
passa na nossa região para afirmar que não existe mais espaço para governos de
“progressismo neoliberal”, como formam muitos dos governos de esquerda no
Continente, sobretudo na primeira década do século, aproveitando o boom das commodities, provocado pela
demanda da China em fantástica expansão capitalista. Hoje a situação é outra e
isto o Governo Lula já demonstrou que sabe e está jogando suas cartas, com
maestria e reconhecimento, na esfera geopolítica.
Mas para dentro, para
nossas emergências e urgências ecossociais que demandam cuidado com gente e com
a natureza, com virtuosidade transformadora, tem o Governo Lula forças políticas? Até onde
dá para ser conivente com o Centrão e com o fantasma “mercado”? Penso que nós,
cidadanias diversas, podemos não ter resposta, porque nem estamos lá de forma a
decidir. Mas, sim, podemos influir se assumirmos que um tarefa nossa e que só
nós poderemos desenvolver: a legítima pressão cidadã no chão da sociedade, com eco
lá no Planalto. Acho que, de algum modo, o Governo Lula 3 espera isto, depois
de tudo que aprontaram contra ele... com a total conivência do Centrão nos
governos petistas de 2003-2016. O Golpe contra Dilma e a própria prisão do Lula
contaram com o Centrão.
[1] Sugiro examinar com atenção a série de postagens de Jean Mar von der Weid, nestes primeiros meses do Governo Lula. Ele aponta, com muita compromisso e competência de militante histórico, as grandes questões jogadas no colo do Governo Lula, que são também questões para nós, cidadanias ativas.
Ótima reflexão!
ResponderExcluirMuito bem,o centrao nunca foi mesmo confiável, sempre atuaram como um grupo de mercenários sabemos dos riscos que eles nos oferecem, por isso temos que voltar a acreditar nas massas e reorganizar o partido para encolher essas dependência.
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