Mais uma vez, o MST
marcou com ações a data do Massacre de Eldorado de Carajás, em 17 de abril de
1996, quando 19 sem terra foram assassinados pela polícia do Pará, a mando do
governador. Os assassinados faziam parte do MST e estavam ocupando uma estrada
da região como forma de luta para serem ouvidos e atendidos em suas legítimas demandas.
Anualmente, o MST celebra o Abril
Vermelho com grandes atos, especialmente ocupações de latifúndios e ou espaços
públicos pelo país. As ocupações são um modo de fazer a sociedade brasileira
lembrar o criminoso massacre de sem terra e seu significado. Ao mesmo tempo, as
ocupações reafirmam a identidade e a voz coletiva, assim como o modo de ser e
agir do MST na luta por Reforma Agrária (RA).
Trata-se de um dos maiores e mais importantes movimentos sociais do
Brasil, reconhecido mundialmente e integrante ativo da Via Campesina, desde a
sua origem.
Assinalo ainda a
coincidência do Abril Vermelho do MST com o Acampamento Terra Livre (APL), dos
Povos Indígenas, organizado pela APIB, em Brasília. Trata-se de outra frente de
luta estratégica na questão da terra, no
caso, tanto no enfrentamento radical dos invasores e destruidores, como no reconhecimento
e demarcação de territórios indígenas, definido como seu direito na
Constituição de 1988.
Como sempre, as ocupações
do MST despertam reações as mais contraditórias possíveis. As avaliações mais consistentes
são poucas e chegam a círculos muito restritos no interior de organizações e
movimentos sociais, sem conseguir pautar de algum modo significativo os grandes
espaços de debate público. As notícias
sobre ações do MST, quando conformadas e difundidas pelos grandes veículos de
comunicação, ficam incompletas e,
sobretudo, com um viés que não consegue esconder de que lado tais meios estão
no bloco de relações de classes e de forças políticas dominantes no Brasil. O
núcleo duro desse bloco se conforma ao redor das forças do atraso de bancadas
lobistas no Congresso Nacional, como a do agronegócio e da mineração. São
bancadas que, se necessário for para defesa de seus interesses, não duvidam em
dar suporte a agendas antidemocráticas – como vimos com o bolsonarismo - para
manter seus privilégios de classe, defendidos como “direitos adquiridos”.
Enfim, a RA, que é o
centro da questão, como necessidade incontornável para enfrentar
democraticamente as históricas e estruturais injustiças e destruições, em nome
de direitos iguais, nunca merece consideração enquanto tal. Ocupam um
privilegiado espaço as poderosas vozes de defesa incondicional dos latifundiários, desmatadores e extrativistas de todos os
tipos. Tanto assim que, mais uma vez, se ameaça o MST com uma CPI no Congresso.
Meu objetivo aqui é qualificar
a questão da RA e a importância das lutas do MST e outras lutas territoriais para
mantê-la viva como uma questão central da democracia para as maiorias,
democracia que valha a pena ser praticada e vivida.
Estamos apenas saindo
da verdadeira devastação democrática, iniciada com o Golpe de 2016 e
consolidada pelo governo seguinte de extrema direita. Com sua visão de direita fascista, contando
com as cumplicidades das Forças Armadas e apontando com a possibilidade de
volta da ditadura militar, a própria institucionalidade democrática,
conquistada com a Constituição de 1988, esteve seriamente ameaçada. Do meu
ponto de vista, considero especialmente grave a conquista obtida pelo
bolsonarismo no seio da sociedade civil,
com seu discurso de ódio militante e exclusão dos “descartáveis e indesejáveis”,
pela cartilha de “Deus, Pátria e Família”, do fascismo. Aí entram as grandes
maiorias das periferias urbanas e rurais. Os povos indígenas, os quilombolas e
os sem terra, todos foram vistos como indesejáveis a eliminar.
Felizmente, Lula venceu
legitimamente as eleições e agora lidera o governo. A esperança voltou e dá
para respirar! Mas como ir mais longe, para que a ameaça da extrema direita não
volte amanhã? Basta lembrar o papel das fakenews,
as orquestradas ações de bolsonaristas e o que fizeram no dia 8 de janeiro
passado.
O Lula 3 parece mais
determinado e vem reassumindo o seu papel de estadista mundialmente reconhecido
e que precisamos no governo do Brasil, no momento. Ele se propôs a ser um
governo de reconstrução democrática e apontou como prioridade o cuidado de
gente e da natureza, que nos cabe gerir democraticamente para o nosso bem e o
bem do Planeta Terra.
Mas, nunca é demais
lembrar, Lula ocupa um lugar central nas
relações de forças do poder estatal. Importante e estratégico, mas ao seu modo
limitado. Em democracias, o governo é mandatado pelo voto para agir em nome da
cidadania. Em democracias, instituinte e constituinte sempre é e será a
cidadania em sua diversidade. Nosso poder de cidadania, porém, não acaba no
votar regularmente, expressando que Estado queremos. A nossa legitimidade de
agir como cidadania, em nossa diversidade, tem um papel central indispensável e
permanente, com intensa participação política desde os territórios em que
vivemos. É isto que pode criar as
condições políticas para que a democracia seja a mais viva e intensa, podendo
avançar em termos de transformações democráticas conduzidas pelo Estado, em
nome da cidadania.
É neste quadro que
penso a legitimidade da questão da RA como demanda ao Estado que vem da cidadania,
do seio da sociedade civil, de seus grandes movimentos sociais. O esforço de
desqualificar a demanda e as lutas por RA, dada a composição das relações de
forças na conformação do Estado, especialmente no Congresso Nacional, é até
compreensível analiticamente, mas inaceitável e devemos combater todos. É de
legalidade e legitimidade que se trata ao levantar a bandeira da RA. A
estrutura agrária que temos nega direitos fundamentais e, por isto, é um dos
maiores limitantes estruturais da própria democracia para cuidar
prioritariamente de gente e da natureza.
Será que poderemos ter
democracia sustentável sem enfrentar esta chaga estrutural que vem lá de longe? O Brasil, do pau Brasil e dos desmatadores,
começou com a conquista e colonização da Pindorama, com usurpação de
territórios e morte aos povos indígenas originários, formando enormes latifúndios,
em base ao tráfico negreiro e escravidão, com produção voltada para fora. A
lógica de fundo continua até hoje. Como cuidar de gente e da natureza sem
enfrentar tal estrutura agrária que nega qualquer cuidado com gente e com a
natureza? Sua única motivação é a acumulação privada sem limites, conquistando
mais e mais terras, desmatando, queimando e implantando sistemas de produção
altamente dependentes de químicos, agrotóxicos, contribuindo com a maior parte
das emissões que estão levando à destruição do clima e da integridade dos
sistemas ecológicos da natureza. O Brasil, pelo tamanho da população e
território é fundamental geopoliticamente para qualquer mudança virtuosa neste
domínio em busca de outro modo de viver e conviver, que tenha o cuidado no
centro.
Numa curta postagem não
dá para enfrentar as questões todas que as lutas por RA, assim como as
resistências de indígenas, catadores e quilombolas, vem levantando para a sociedade desde muito tempo.
Sem terra e lutas por reforma agrária precederam o próprio MST (que foi fundado
como tal em 1984). O que, sim, quero destacar é a potência da identidade e da
voz, assim como o impacto político do MST como movimento de cidadania na
redemocratização do Brasil e até hoje.
Indo direto ao ponto, penso que para
reconstruir e, sobretudo, para avançar com democracia transformadora de
estruturas, precisamos construir e conquistar hegemonia democrática ecossocial
transformadora. Hegemonia se constrói na batalha das ideias e propostas no seio
da sociedade civil e se expressa como conquista hegemônica quando vira direção
política do Estado democrático. A vitória de Lula tem sabor de conquista
democrática, mas ainda não é hegemonia plena. Para isto, precisamos de muita
ação cidadã, de muitas identidades e vozes ativas se expressando e
reivindicando, com impacto no debate
público, para que a proposta democrática ecossocial se constitua como força
irresistível desde o chão da sociedade civil, legitimando tal agenda. Aí a
criatividade de todos os movimentos e sua capacidade de ação e influência na
agenda é fundamental.
Democracia tem poder
sim de transformar, mas não é um projeto em si, pois se trata de aplicar
radicalmente um método de fazer política e implementar leis e políticas que
atendam às demandas da cidadania. Tal método ganha legitimidade quanto mais
impacto e expressão ganharem as cidadanias ativas, configurando um bloco de
forças democráticas irresistível da diversidade, lutando por direitos iguais
para todas e todos, desde a sociedade civil. Em minhas análises e engajamento
político, sempre aponto esta questão de fundo para as democracias intensas. E
isto, em democracias, se faz passo a passo, onde o maior número de diversidades
em luta por direitos democráticos iguais cabem, como um bloco democrático em
construção permanente. Defino os múltiplos movimentos e organizações sociais,
com suas identidades e vozes, como múltiplas cidadanias em ação ou cidadanias
ativas. O seu entrelaçamento é sinal de força política. Por isto, para
construir e conquistar hegemonia, todas as cidadanias são necessárias, quanto
mais vozes e maior número, mais potente será a democracia real.
Movimentos como o MST,
com sua identidade sem terra e seu modo de agir, estão contribuindo de forma
praticamente insubstituível para a democracia poder avançar. E precisamos de
potente democracia transformadora da estrutura agrária e sua lógica de acumulação
de terras como base de produção não sustentável e excludente ecossocialmente.[1]Como
vimos no recente período devastador que vivemos, os latifundiários foram um dos
grandes suportes declarados ao projeto fascista e foram os grandes
beneficiários com o mote governamental de “abrir a porteira e soltar a boiada”.
A porteira aberta se revelou em números
da conquista de territórios protegidos e de povos originários, com violência e
mortes, destruição de florestas,
grilagem de terras, desmatamento, queimadas e garimpo ilegal e contaminante dos
rios, até trabalho escravo. Enfim, nenhum “cuidado com gente e natureza”. Pode
haver maior agressão à democracia?
O cuidado de gente e da
natureza pode ser o grande mote para construir hegemonia democrática ecossocial
transformadora. Afinal, toda a mídia dominante e o que a tal bancada ruralista
ignora é que o MST, nas terras já conquistadas pela tímida Reforma Agrária até
aqui, pratica uma agricultura viável de cuidado, de produção de comida boa, saudável, para gente, em
bases agroecológicas. Basta ir aos armazéns do MST para ver o que isto
significa. Mas para quem duvida, lembro aqui que o IRGA – Instituto do Arroz do
Rio Grande do Sul – atesta: o MST é o
maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
A bandeira da RA tem o
potencial de congregar os sem terra com os camponeses de subsistência da
agricultura familiar, as redes agroecológicas, os povos indígenas, quilombolas, coletores de produtos das
florestas, pescadores ribeirinhos. E junto com eles todos os amplos setores
engajados nas lutas por direitos iguais na sociedade como um todo. É uma
complexa e orgânica agenda no enfrentamento da fome, da miséria, do racismo e
patriarcalismo, das injustiças e destruições ecossociais e da mudança
climática.
Para concluir, quando
falamos em cuidar de gente e da natureza parece que só estamos tocando no
emergencial. “Fome tem pressa”, dizia Betinho 30 anos atrás. Por isto, queremos,
sim, que as emergências sejam imediatamente enfrentadas em nome do cuidado com
gente e a natureza. Elas são politicamente as feridas abertas e sangrando na
própria democracia, que precisam ser estancadas o quanto antes. Mas, como
cidadanias ativas por democracia
transformadora queremos, pela voz e ação do MST e de todas as frentes de luta
dos povos das florestas, campos e águas, que as ações emergenciais sejam
sementes de transformações democráticas ecossociais sustentáveis nas estruturas
causadoras da miséria e fome, das injustiças
de todo tipo e das ameaças à integridade dos territórios em que vivemos. A ação
desencadeada junto ao povo e território Yanomami é um exemplo do que precisamos
em todo o país.
Está é a potente
mensagem do MST com seu Abril Vermelho. Sem RA ampla a sociedade vai continuar
sangrando e sofrendo. Já é tempo de dar um basta!, pois assim não dá mais. O
bem viver de todas e todos precisa ser a regra da democracia e não a exceção.
[1] Só lembrando: em artigo de 2020, Ricardo Westin aponta que as propriedades de 2 mil ou mais hectares eram somente 0,70% do total, mas controlavam 50% das terras. Na outra ponta, as propriedades de menos de 25 hectares eram 60% do total e juntas controlavam em torno de 5% das terras. Westin, R. “Há 170 anos , Lei de Terras oficializou a opção do Brasil pelos latifúndios”. Senado Federal – Arquivos. Publicado em 20/09/2020.
Excelente, texto, Cândido! O bloco democrático não pode baixar guarda. Mesmo havendo divergências internas, como em relação ao Projeto 2630, os tempos pedem debates e construções permanentes "às cidadanias ativas". Já sabíamos disso, durante a campanha, mas as exigências superaram nossas expectativas, são muito mais radicais. Mas vamos aprendendo com Betinho e com outros que nos antecederam, pois a democracia também tem pressa. E...nossa solidariedade ao MST.
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