quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

É POSSÍVEL COMBINAR QUESTÃO ECOLÓGICA, EXTRATIVISMO PETROLEIRO E AGRONEGÓCIO?

 

De um ponto de vista político, combinar tais questões no exercício do governo é, talvez, uma “geringonça”[i] ao estilo brasileiro. Boaventura Souza Santos definiu como geringonça um governo passado de alianças esdrúxulas no caso de Portugal, mas que bem ou mal foi uma saída política engenhosa para a democracia. É esta a armação política do Governo Lula para a governabilidade e nos tirar da ameaça autoritária e  fascistizante que emergiu no Brasil? 

O Lula, como líder democrático habilidoso, reconhecido aqui e além fronteiras, está fazendo ver o Brasil como um potência emergente no enfrentamento da mudança climática. Gostemos ou não, o fato é que isto, no fundo, ajuda a criar um clima político de que, afinal, temos um líder de origem popular que recuperou a autoestima nacional. É bom e que seja assim! Afinal, chega de sermos tratados como uma grande “república de bananas”, para lembrar o modo como o país imperial, EUA, olha para o seu grande quintal de países latinoamericanos.

Mas, objetivamente, sabemos que a combinação de combater a crise climática e, ao mesmo tempo, continuar  com o agronegócio predador e tentar ser potência petroleira é se dar uma agenda econômica que nada muda e torna a economia ainda mais ameaçadora, para “cuidar de gente e da natureza”, como enfaticamente anunciado por Lula na posse. Sei que 99.9% dos economistas vão dizer que não há outra possibilidade, pois somos um país que precisa do desenvolvimento para combater a fome, a miséria e a pobreza, criando uma sociedade mais igualitária. Será que o tal desenvolvimento gera isto ou vai repetir o “milagre” que a ditadura produziu? Ou melhor, a nossa questão é “crescer” a qualquer custo ou mudar os fundamentos de uma economia capitalista estruturalmente marcada pela colonialidade e exportação de matérias primas para os polos capitalistas dominantes,  apostando no extrativismo destruidor da generosa base natural, a mãe comum de todas e todos nós?

Sei que a questão é espinhosa e que a estrutura de classes e a correlação de forças políticas é um limitante concreto para o governo e a sociedade como um todo. Mas, afinal, se a cidadania se engajou para dar a vitória eleitoral para Lula foi porque quer mudanças e que sejam substantivas e resilientes, para que ameaças de retrocessos que vem de dentro e de fora não tenham chance de voltar e continuar sua tarefa de destruição.

Aqui cabe esclarecer o centro da questão. Para mudar estruturalmente, em termos simples e concretos, precisamos de vontade política para tal. Aqui estou me referindo a buscar mudanças inspiradas  em uma perspectiva ecossocial transformadora e includente, em busca de direitos iguais na diversidade, mais do que índices de crescimento econômico. O PIB nunca foi e nunca será indicador de qualidade democrática e de direitos. Longe de mim dizer que não precisamos de economia, pois economia é a base, é o chão de qualquer sociedade. Afinal, viver é se relacionar com a natureza, em sua diversidade de territórios e possibilidades, e daí extrair vida, mas sem destruir. Também não penso que a questão seja  fácil, como se a  mera sinalização de uma direção democrática ecossocialmente transformadora seria suficiente e possível, sem um árduo trabalho político de construção de cidadanias ativas e relações de forças que a adotem e que disputem hegemonia de tais propostas na sociedade como um todo.

Voltando ao ponto inicial, claro que algo importante se está fazendo no Brasil. Afinal, o Lula e o Brasil não teriam o reconhecimento de possível potência ecológica só pelo tamanho do território. O desmatamento caiu e existe vontade política nesta direção. Mas está num impasse, por enquanto, a questão social e ecológica estratégica do direito dos povos das “das florestas, águas e campos aos seus territórios de vida, contra agronegócio, extrativismo energético e mineral. Aqui aponto a necessidade de derrotar a tese “marco temporal”.

Na questão de parar o extrativismo energético e manter a integridade de territórios, existem   outros países maiores até do que o Brasil, mas que não vem apresentando a mesma intencionalidade de mudar. Basta ver EUA, Rússia, Canadá. A China – grande em território e população – é hoje o maior país vilão nas emissões de gazes de efeito estufa, que provocam a mudança climática. Mas, ao mesmo tempo, a China é que mais avançou até agora em investimentos em energia renovável, liderando de longe nesta questão. E tem e fato real das emissões de gazes de efeito estufa acumuladas no tempo, onde a responsabilidade do Norte Global é de longe a maior. Ou seja,  todo mundo é responsável, mas de modo diferenciado. Isto não quer dizer que se trata de uma justificativa para continuar tendo uma economia insustentável em nome do combate à miséria e à pobreza, que é, sem dúvida uma questão central. Será que não existe outra forma? Ou é falta de vontade política?

Estamos diante de uma questão que é política e econômica  ao mesmo tempo, um projeto de país democrático, de direitos ecossociais iguais na diversidade e sustentável, fazendo a sua parte para outro modo de se viver. Assim, estamos diante de uma outra questão, talvez estrategicamente ainda mais fundamental, uma direção que combine democracia com busca de transformação ecossocial, que saia do convencional. Agronegócio, extração petroleira e, de forma mais abrangente, mineral, são um “pé de barro” no financiamento da transformação necessária que o Brasil e o mundo precisam, fazendo justiça social e evitando a destruição da integridade dos sistemas ecológicos do Planeta Terra, que nos dão a vida, para nós e gerações futuras.  Mas, mesmo para algo menos ambicioso, como criar condições de garantir bem estar e igualdade de direitos  aqui e agora para as grandes maiorias das periferias, rurais e urbanas, de nosso Brasil, o agronegócio e o extrativismo não tem como gerar, dado o modelo “colonial” e subserviente que carrega para abastecer os mercados centrais ávidos por matéria prima, que  movem suas economias voltadas à acumulação capitalista sem limites. Os dados de concentração de riqueza nas maõs de 1% da população mundial são cada vez mais absurdos e vergonhosos. Como defender a continuidade de uma economia assim?

O curioso entre nós é que o agronegócio e o extrativismo são mais vistos como indispensáveis para o Brasil, ao menos pelo modo como a grande mídia e os poderes políticos os tratam. E falar de seus problemas é correr o risco de ser taxado como contrário ao povo brasileiro. Na verdade a disputa de ideias na sociedade, para promover mudanças na lógica destrutiva embutida no agronegócio e no extrativismo, tende a ser genuinamente mais comprometido com o futuro do país e seu povo do que os argumentos e interesses dos arautos das classes dominantes. Os que defendem incondicionalmente o agronegócio e o extrativismo de todo tipo são os mesmos que não querem nenhuma interferência do Estado na economia e apoiaram a destruição da “Lava Jato” e o próprio golpe contra Dilma, abrindo o caminho para a ameaça autoritária que se abateu sobre o país.

O meu interesse estratégico, como analista e ativista, é alimentar o debate entre cidadanias ativas para que assumamos mais e mais o papel único que só cabe a nós, pela participação engajada em todos os espaços possíveis, do chão da sociedade:  na vizinhança e nas comunidades, local de trabalho, organizações e movimentos sociais, redes, coalizões e fóruns. Mas participação que deve buscar incidir estrategicamente nos os espaços do poder, ministérios, conselhos, legislativo, do local ao estadual e chegando no “planalto”. É neste processo de disputa política que se define a hegemonia, influindo nas propostas e formulações políticas para gerir a economia do país – dever do Estado em democracias intensas – chegando aos espaços sociais e políticos mundiais. Fazer propostas, debater e pressionar é tarefa nossa, gostem ou não  os detentores de mandatos conseguidos pelo nosso voto ou os poderosos “donos” da economia que destrói, voltada especialmente para alimentar o mercado capitalista sem respeito à integridade natural do planeta.  

Aqui só faço o alerta sobre uma questão contraditória, tensa entre nós mesmos que apostamos nas virtudes e possibilidades de construção democrática de um país de mais igualdade de direitos com respeito a diversidade, de cuidado, convivência e compartilhamento, tanto de gente como da natureza. Há, sem dúvida, o mantra do desenvolvimento – como já refleti em postagens anteriores – que contaminou e continua bloqueando muito do pensamos sobre economia. E há o tabu de que a agenda ambiental e climática é coisa de quem não sofre as urgências do cotidiano: trabalho decente, transporte renda, comida, casa, filhos, escola e saúde. Na verdade, quem ainda pensa assim, parece que não está vendo e sentindo o drama vivido por enormes contingentes de nossa população – especialmente dos mais pobres, vivendo em periferias urbanas e rurais – com os eventos climáticos extremos que vem se tornando cotidianos em nosso país tropical. No caso do Brasil, a principal contribuição em emissões que causam mudança climática vem do agronegócio,  sem dúvida um dos maiores produtores mundiais de grãos e carnes do mundo. No entanto, temos fome e miséria  no Brasil! E apostar em nos tornarmos  potência petrolífera é assumir mais responsabilidade pela mudança climática. É isto que queremos ou precisamos?



[i] Segundo Houaiss, trata-se de algo malfeito, com estrutura frágil e funcionamento precário.

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