Inauguramos uma nova conjuntura e um novo processo no Brasil
que, na apoteótica posse, o Presidente Lula definiu como de renovação
democrática. Mas pelo que aconteceu no curto espaço de tempo desde a posse dá
para ter a dimensão do desafio de ordem política institucional que temos pela
frente. O Estado está contaminado por dentro por um câncer de ataque à
democracia instituída e constituída. Muita coisa precisará ser cirurgicamente
buscada, desvendada e enfrentada, em particular nos aparatos de segurança, mas
não só. Esta é uma tarefa para as estruturas de poder constituído: executivo,
legislativo e judiciário. Como cidadanias em ação, nós podemos pressionar e
cobrar, mas dependemos dos poderes, suas competências legais e suas composições
políticas. Lula como presidente legitimamente eleito demonstrou determinação e
capacidade de articulação dos poderes de um líder que se fez na luta por
justiça social na e pela democracia. Contar com ele é muito, mas ainda
insuficiente.
Para um renovação que vá à raiz dos problemas, já antes da
posse apareceu o veto das “forças do mercado” a qualquer regulação da sua
pretensa “total liberdade” de impor a agenda das políticas econômicas. Afinal,
temos democracia e elegemos Lula para, com base no Estado, exatamente regular a
economia e fazê-la servir à sociedade como um todo: cuidar de gente, em
primeiro lugar. Precisamos de economia que seja democrática ela mesma, que crie
empregos e produza bens e serviços para atender necessidades coletivas, antes
de servir à acumulação de riquezas de um punhado dos super ricos. Aqui o mal é
de origem histórica e estrutural no modo como que o país se fez uma nação – o Brasil
–, conquistador interno, violento e assassino de gente e destruidor da natureza,
colonial, sobre povos e territórios indígenas originários, com escravidão e
racismo. Aí a parada é dura, mas sempre a democracia sobre o mercado pode avançar,
desde que haja muita vontade e determinação, especialmente na esfera do Estado.
A equipe ministerial de Lula tem personalidades que anunciaram virtuosos
programas e entusiasmantes intenções. Mas, como cidadania, não podemos cruzar
os braços e esperar. Esta também é uma parada que nos cabe, apontando caminhos
e resistindo às investidas, como, aliás, estamos fazendo desde sempre.
O que mais me preocupa neste momento é a tarefa que cabe
essencialmente a nós, cidadania em ação, já que o câncer antidemocrático atinge
severamente a esfera social, está no seio da sociedade civil. A renovação
democrática para valer, se ela não acontecer com força dentro da sociedade
civil, pode simplesmente fracassar.
No governo que acabou, com sua pregação fascista e de ódio, o
tecido social foi esgarçado. Particularmente importante foi a deslegitimação
das identidades e vozes por direitos da diversidade de sujeitos cidadãos. As perdas
em termos de valores e imaginários são enormes. Mas também em práticas e
atitudes, com intolerância e ódio a todos que sejam considerados diferentes e,
por isto, inaceitáveis. Legitimou-se e se estimulou o rearmamento individual.
Milicianos e grandes setores das polícias passaram a se sentir empoderados para
agir com violência e até matar, sem medo de contenção. As invasões e
destruições sobre territórios de povos originários e de conservação, assim como os territórios de sofridas
periferias urbanas, foram toleradas quando não estimuladas sistematicamente.
A isto tudo se soma o universo paralelo das redes sociais e
das notícias falsas, contaminando corações e mentes, com apoio até dos
“mercadores da fé” em áreas populares. Claro, não dá para deixar de fora o
papel de desconstrução praticado pelas grandes mídias proprietárias contra tudo
o que foi visto como do PT e das esquerdas. Mas o seu papel foi decisivo
sobretudo no tirar do armário a direita autoritária e legitimá-la, criando o
ambiente para o enorme retrocesso democrático acontecido, que viabilizou a
ascensão do fascismo como movimento antidemocrático e de ódio. Enfim, o ataque
ao universo político e cultural foi devastador. Este universo é o verdadeiro
berço das democracias, pois funciona
como fermento de imaginários, de valores e da cultura democrática da iguais
direitos na diversidade, como motivação e engajamento prático.
Estou me referindo à urgente tarefa da reconstrução de um
irresistível movimento inspirada em
princípios, valores, direitos, concepções e visões estratégicas do fazer
democrático. Isto pode e deve contar com o apoio de um governo que aposta na
renovação democrática. Afinal, cabe a ele investir em políticas de cuidado democrático:
direitos humanos, educação, cultura, comunicação, indígenas, igualdade racial,
mulheres, tudo com a maior inclusão, sem fronteiras entre nós. Mas o
protagonismo deve ser da ação cidadã a partir dos territórios em que vivemos.
Ou as políticas olham, se inspiram e se
deixam fecundar pelas práticas virtuosas nos territórios ou serão fadadas ao
fracasso. Os governos passados das esquerdas, especialmente do PT, podem
inspirar em muitos campos. No entanto, nesta esfera da sociedade civil, o
Estado não pode substituir o protagonismo cidadão. Subsidiar e potencializar,
sim!
Aqui se abre uma enorme canteiro de insubstituível ação da
cidadania. Todas e todos sabemos que qualquer ação deste tipo precisa de raízes
nos territórios, que são, por definição, territórios de cidadania porque de
vida em nossa diversidade. Até nossas
identidades coletivas tem a ver com territórios concretos, com seus estilos de
viver, sua cultura, seus lugares de lazer, suas matas, rios e praias. Os
empreendimentos empresariais ou infraestruturas que não respeitam isto são
voltados para interesses de fora dos territórios e, por isto mesmo, invasores
de algo vivido como comum.
Por exemplo, as experiências de “educação emancipadora e
libertadora”, com base nas resistências territoriais, são uma grande fonte de
renovação democrática, como exemplarmente elaborado e sistematizado nos
escritos do grande Paulo Freire. São incontáveis os grupos existentes, mas
ameaçados pelo avanço da intolerância aos diferentes e aos que lutam por
direitos iguais. Os núcleos de comunicação e expressão cultural popular tem um
papel insubstituível para dentro dos territórios porque são de dentro. No
entanto, precisam ganhar potencialidade como redes de construção de imaginários
coletivos compartilhados, potentes fomentadores da valorização e empoderamento
da diversidade essencial para a democracia viva.
Para enfrentar problemas comuns, nada como tratá-los como
comuns e valorizar o protagonismo cidadão em tais empreendimentos. Os exemplos
de economia solidária, agroecologia e produção de alimentos saudáveis, coleta de lixo e reciclagem, gestão de água e
territórios, são exemplos contundentes de modos de viver e produzir, cuidando e
compartilhando comuns, experiências eminentemente democráticas transformadoras.
Mas isto tudo é só uma entrada. Tem muito mais. Como isto
está no centro do que defini para o meu blog – Sentidos e Rumos – buscando
contribuir ao debate coletivo em torno a ideias de cidadania e democracia
transformadora ecossocial, o desafio para a ação cidadã vai ocupar de modo
central as minhas próximas postagens.
Sempre muito lúcido Cândido. A tarefa é diária, recorrente e de todos nós. Não está e não será nada fácil. Mas estaremos embutidos de esperanças , e principalmente força !
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