Os graves atos de invasão e destruição dos espaços políticos centrais,
símbolos de nossa institucionalidade democrática e de seus três poderes, no dia
8 de janeiro, em Brasília, precisam ser vistos no que são: uma afronta à
democracia. Foi um choque que exigiu tomada de decisões firmes do Governo Lula
e das instituições do Estado, sem hesitações, mesmo contra os seus tentáculos
no próprio Estado. Afinal, o intolerável foi franqueado por inimigos da
democracia. Tem que ser enfrentado como tal: um ataque à democracia. E o poder
Judiciário precisa investigar e julgar, tanto os que agiram se autofotografando,
o seu líder declarado, hoje “fugitivo” na Florida, como os coniventes ou omissos
nas instituições do Estado e os muitos instigadores e financiadores da
destruição. A justiça precisa ser justa, célere e até exemplar para dissuadir e
desencorajar, pois democracia ameaçada se vive sempre no presente, julgando e
condenando segundo a lei, sem conciliação.
Aqui se apresenta um quadro claro do que é uma luta democrática
legítima, entre diferentes e opostos em base ao instituído, e o que sinaliza
uma ruptura e um ato destrutivo da mesma, naquilo que tem de mais emblemático:
a não aceitação da sua institucionalidade democrática.
Nunca é demais lembrar que a democracia não é um projeto de
país em si mesmo, mas o modo de disputar projetos e construí-los politicamente,
segundo princípios e valores éticos pactuados numa constituição, a qual define
as regras básicas do pertencimento, convívio e compartilhamento, em base a
direitos iguais de toda a cidadania. Neste sentido, a democracia não nega
diferenças, divergências e oposições no seio da sociedade e na esfera política,
mas busca transformá-las em forças de mudança e construção do melhor possível
historicamente, com base no exercício da igual titularidade de direitos.
Não há democracia viva sem lutas, até acirradas, mas dentro
da institucionalidade, com reconhecimento mútuo da mesma cidadania. Pode ser
tensionada e questionada, pela disputada no seio da sociedade civil e do Estado.
As disputas e os acordos que geram são provisórios, porque datados e situados,
sempre podendo ser mudados segundo as regras básicas, que incluem a decisão
final de quem tem a titularidade da democracia: a cidadania. O inadmissível é
negar a soberania do conjunto da cidadania que decide através eleições,
plebiscitos e referendos, assim como com a participação constante, tanto em
espaços politicamente conquistados e reconhecidos, como pela organização de
movimentos, redes e fóruns de cidadania em busca de mais e mais diretos para
todas e todos.
De toda forma, como modo de fazer, a democracia está sempre
em construção, com avanços e recuos, ao sabor das lutas entre forças
legitimamente constituídas, gostemos ou não. O que se torna inaceitável é a
ruptura com o modo de fazer, com a democracia enquanto tal.
Antes de continuar, aqui se faz necessário ter presente que,
como país e sociedade real, a nossa estrutura econômica, social, cultural e
política é atravessada por profundas desigualdades, violências de toda ordem,
exclusões e destruições ecossociais, que vem se reproduzindo desde séculos de
conquista e a colonização. A nossa Independência não alterou as relações, estruturas
e processos básicos, geradores de enormes periferias e precariedades de toda
ordem, em territórios urbanos e rurais. Muito recentemente, nos anos 80 do
século passado, elegemos a democracia como modo de enfrentar tudo isto depois
de 21 anos de ditadura militar, que só tinha aprofundado a desigualdade, a
exclusão e a destruição ecossocial, pela desconstrução institucional e das
frágeis garantias, pela força, repressão, tortura e morte.
No momento, a nossa ainda frágil democracia de trinta e
poucos anos está sendo ameaçada pela imposição, novamente, da força bruta como
regra, pelos que não reconhecem o resultado legítimo da última disputa
eleitoral, que derrotou seu candidato, um líder que nunca escondeu a sua visão
e vocação autoritária e excludente. A
reivindicação dos derrotados é pelo golpe de Estado pelas forças armadas,
contra as regras democráticas instituídas, pondo em dúvida a lisura do processo
eleitoral, sem fundamento. De fato, a ameaça veio num crescendo desde o golpe
de 2016 e se materializou de forma mais escancarada na eleição de 2018. O
governo passou a ser liderado por um capitão sem vergonha de se declarar
admirador de ditaduras e de sua prática de torturas. Dados os desmontes e
retrocessos que foram praticados no último período governamental, para as
eleições de 2022 se forjou uma frente de forças democráticas em torno a Lula, que
acabou vitoriosa pelo voto da cidadania, apoiando a perspectiva de renovação e
revitalização da democracia.
Esta é a questão mais estratégica a enfrentar. Alianças e
coalizões, com formação de frentes e blocos de poder, são constitutivas do modo
de ser e acontecer das democracias, limitando ou potencializando o seu poder de
transformação ecossocial, como venho apontando no meu blog “Sentidos e Rumos”.
Assim, de qualquer ponto que a gente olhe, há um nós e um eles, ou um eles
e um nós, mas como forças democráticas. O que não dá para aceitar é quem
extrapola a institucionalidade e, sobretudo, quem quer destruí-la. As forças
que fizerem isto deixam de ser eles e
se tornam inimigos da própria democracia. Não se trata mais de oposição
democrática legítima. Não podem ser legitimados como adversários democráticos,
porque são inimigos da democracia, deixando de ser oposição com quem negociar o
possível no processo político em seu acontecer. Como inimigos e destruidores da
democracia, são inimigos de nós e eles
que aceitam a institucionalidade e as regras democráticas.
Enfim, uma posição e engajamento dentro das regras da
democracia é ser defensor de direitos e, alguns, até de privilégios
conquistados confundidos com direitos – tradição de todas direitas pelo mundo.
Uma posição radical, bem diferente, é ser contra a democracia enquanto tal. Não
dá para ver e afirmar que toda a cidadania que referendou o derrotado, que
buscou a sua reeleição e não conseguiu, seja antidemocrática. Este cuidado vai
ser fundamental para distinguir a quem combater, sem trégua e pelas regras
instituídas: os líderes e operadores do núcleo duro de um câncer antidemocrático
e seu bando de asseclas, que se consideram acima das leis democráticas vigentes.
Mas isto não nos pode levar a por no mesmo balaio todos os muitos e as muitas
que foram contaminados pelo discurso de ódio e pela disseminação criminosa de
notícias falsas. Aí estamos diante de outro desafio estratégico a ser encarado
pela cidadania e pela coalizão política vitoriosa nas eleições pela renovação
democrática. Trata-se de não perder de vista o amplo trabalho cidadão e republicano
de disputa de hegemonia dos princípios e valores democráticos no seio da
sociedade civil, hoje contaminada pela propagação de um discurso
antidemocrático.
Ouso afirmar que este é um desafio mais para quem tem poder
legítimo de instituir e constituir a democracia: as cidadanias ao nível da
sociedade civil, através da ação da diversidade de movimentos e identidades
cidadãs, com suas redes, apoiando-se em instituições comunitárias, associações,
sindicatos, partidos, instituições de educação, da cultura e da informação, até religiosas. Este é um desafio de fundo e
tarefa democrática para toda a cidadania ao nível dos territórios de vida e
trabalho, mais do que das instituições políticas que devem exercer o seu papel:
operar como Estado democrático, produzindo leis e políticas, gerindo os
recursos de todas e todos, em nome do conjunto da cidadania para um país mais e
mais democrático.
Enfim, chega de busca de conciliação e legitimação de inimigos da democracia como se fosse nossos adversários legítimos. Eles estão além, são fascistas e inimigos a enfrentar como tais por todas as forças democráticas. Fazemos isto ou o câncer totalitário vai destruir o nosso futuro e de várias gerações mais. Conciliamos nos anos 80 e deu no que deu. Agora basta! Anistia a inimigos da democracia e torturadores nunca mais!
Anistia, não! Que isto seja explicado exaustivamente, por todos os meios possíveis, para que se torne uma exigência comum. Anistia, não! aos insufladores e financiadores. Para além de Bolsonaro, a esta altura reduzido à sua verdadeira dimensão de medíocre instrumento descartável. E a turba cujo vandalismo causou prejuízos gravíssimos, além dos materiais, está aos poucos sendo vista como folclórica e sem responsabilidade pelo que perpetrou. Entre as tarefas urgentes, esta deve vir primeiro: Anistia, não!
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