Retomo a reflexão sobre o desenvolvimento focando um período mais recente, particularmente marcado pela globalização capitalista neoliberal. Esta foi se gestando desde os anos 1970, combinando vários processos, mas se consolidando como uma espécie de dogma ou religião laica. Submeteu e subverteu os próprios Estados – com o mote de menos Estados e menos políticas sociais – pois, na estreita visão neoliberal, desenvolvimento só se alcança com o domínio absoluto do livre mercado, suas leis de mercantilização de tudo e que vença o mais competente. Tivemos o aparecimento do Fórum Econômico Mundial, em Davos, como espaço de construção de consensos para o desenvolvimento neoliberal e global do capitalismo, com participantes de CEOs de grandes empresas, bancos, fundos de desenvolvimento, as suas elites pensantes através de fundações ou de grandes meios de comunicação, além de líderes políticos dos países dominantes. O pensamento neoliberal começa a sua escalada rumo à hegemonia nas grandes universidades, tendo na liderança a Universidade de Chicago, berço dos “Chicago Boys”. Em meados dos 1980 apareceu o “Consenso de Washington” das Instituições Multilaterais (BM, FMI), que propôs o famigerado decálogo de imposição das políticas de abertura comercial e tratados de livre comércio, desestatização e privatizações, ajuste estrutural, reformas trabalhistas e dos sistemas de aposentadoria. Enfim, um capitalismo de domínio do capital financeiro e da mercantilização total da vida. Na sua esteira, depois de vários anos de negociações da “Rodada Uruguai do GATT”, foi criada na década de 1990 a OMC, que se somou ao BM e FMI.
Vendo hoje aqueles anos tumultuados dá para qualificá-los como de “radicalização do capitalismo” com uma estratégia imperial dos EUA e seus eternos aliados da Europa, para (re)controlar o mundo, já que as guerras imperiais levaram a impasses ou derrotas (Coréia, Vietnam...). Basta lembrar o significado econômico e político da “crise da dívida” no então chamado “Terceiro Mundo” e a destruição provocada, em seu nome, na forma de “ajuste estrutural” imposto, verdadeiro tsunami sobre nossas economias e, particularmente, sociedades. No processo, em 1989, acabou a bipolaridade da Guerra Fria, com a implosão da URSS e do bloco socialista do Pacto de Varsóvia. Aí começa o que vemos mais claro hoje, a expansão da OTAN, começando com a guerra na antiga Jugoslávia.
No centro do capitalismo, os governos Reagan, nos EUA, e Thatcher, na Inglaterra, foram emblemáticos no período. Aliás, a conservadora Thatcher, a “dama de ferro”, foi implacável na destruição do movimento sindical inglês. Ela cunhou a expressão de que não há alternativa ao neoliberalismo: TINA – there is no alternative. Exatamente na mesma Inglaterra, Tony Blair, trabalhista, veio com propostas de “neoliberalismo de esquerda”, uma espécie de capitulação vergonhosa que contaminou a socialdemocracia europeia em seu conjunto. Além disto, abriu espaço para o ressurgimento de propostas da direita extrema, que não escondem sua vocação fascista, nacionalista e xenofóbica.
Fora do mundo eurocêntrico, cabe destacar o que surgiu no Sudeste Asiático e, sobretudo, na China com a sua escalada para se tornar o que é hoje, o coração industrial do mundo. Enfim, o mantra do desenvolvimento capitalista neoliberal passou a penetrar em tudo e em todo mundo. Não foi exatamente uma revolução apesar de redesenhar o mundo e submetê-lo ainda mais ao capitalismo. A versão chinesa, com liderança do partido comunista, promoveu exatamente o desenvolvimento capitalista, para combater a imensa fome e pobreza no seu seio e construir uma sociedade comunista. É possível? Bem, tem semelhança com o que foi o “comunismo” na Rússia de Stalin. Mas na China, as grandes empresas capitalistas foram aceitas e transferiram as suas plataformas industriais para lá, valendo-se da “disciplina” do Estado, salários extremamente baixos e falta de movimento sindical para combatê-las. O Estado teve e tem um papel central nas transformações “capitalistas chinesas”.
O fantástico crescimento econômico tornou a China um polo central na demanda de matérias primas de toda ordem e do mundo inteiro. A reprimarização das economias “endividadas”, como a de nossos países da América Latina, foi alimentada por este “boom das commodities” com centro na China. Trata-se ainda do desenvolvimento, sem dúvida, medido pelo crescimento espetacular do PIB por longos anos, pois tornou a China. Transformador? Sem dúvida! Hoje, entre os super bilionários que manietam o mundo a seu serviço, naquela parcelinha dos 1%, os chineses tem participação destacada. Se temos um capitalismo globalizado diferente do que foi o capitalismo do pós II Guerra Mundial, a espetacular ascensão da China e seu entorno tem um grande papel.
Ocorreram mudanças geopolíticas de monta, que não é meu objetivo analisar aqui. Vale a pena, porém, destacar que neste contexto, a dívida externa se tornou sinônimo de imposição das políticas do “Consenso de Washington” sobre os países subdesenvolvidos com o pacote de ajuste estrutural. Isto num contexto de esgotamento dos regimes autoritários e de redemocratização. Ou seja, as democracias no continente ressurgem “encurraladas” pelo globalização capitalista neoliberal, onde o desenvolvimento, entendido como crescimento, dependeu de muito ajuste e um verdadeira reprimarização (agronegócio e mineração) das economias. Talvez os casos da Argentina e do Brasil são os mais emblemáticos, pelo seu tamanho e pela dependência que passaram a ter da produção de “commodities”, especialmente para China, mas também para a União Europeia. Mesmo a onda de governos progressistas não conseguiu inverter tal tendência global. Isto porque se restringiram a políticas democráticas distributivas dependentes da “exportação de commodities”, sem transformações significativas nas economias com seu “neoliberalismo progressista”,como são definidos nos círculos mais críticos.
Mas em termos de concepções e imaginários, com grandes redes, coalizões e eventos se instalou um debate sobre “alternativas de desenvolvimento”: desenvolvimento sustentável, desenvolvimento humano, desenvolvimento com face humana, desenvolvimento como direito[1], entre tantos outros. Tudo para submeter o próprio “desenvolvimento econômico capitalista neoliberal” a objetivos democráticos e sociais, apostando na possibilidade distributiva e consumista, mercantil, de mais e mais crescimento com base nas empresas e seus mercados.
Não cabe aqui lembrar isto tudo, pois não é o propósito da série de postagens. Mas gostaria de ressaltar o papel da ONU, em particular, como promotora de “alternativas de desenvolvimento”, algo que ela alimenta até hoje como fórum multilateral sem verdadeiro poder de gestão do mundo, pois não passa de sinalizador de tipo “moral” e espaço político de busca de consensos para evitar guerras... As guerras não foram e não são evitadas até hoje, pois fora do Conselho de Segurança, com o poder de veto de “cinco” potências, a ONU nada decide.
No Interior da ONU foi criado o PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Também surgiu a CNUCED – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. Em termos de debate sobre como praticar um desenvolvimento mais justo – com cara humana, ao gosto da ONU – foram e são espaços importantes e mereceram atenção e participação de muitas redes e coalizões pelo mundo. Mas merece destaque especial o ciclo das grandes Conferências Temáticas da ONU, num esforço de se contrapor e produzir alternativas, de algum modo, à globalização neoliberal ou, ao menos, mitigar seus impactos, chamando os governos nacionais e fóruns multilaterais para suas responsabilidades a respeito. No processo, ganhou destaque uma agenda ambiental e social. Só relaciono aqui as principais: Meio Ambiente (Rio, 1992), Direitos Humanos (Viena,1993), População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento Social/Pobreza (Copenhagen, 1995), Mulheres (Pequim, 1995), Assentamentos Humanos/Habitat (Istambul, 1996). Basta lembrar estas para ver a preocupação mais social, mas sempre sobre o mantra do desenvolvimento, sem pô-lo em questão enquanto tal. As conferências da ONU não são criações da época, mas ganharam intensidade e destaque provocando maior atenção e participação de organizações da sociedade civil, com organização de eventos paralelos à conferência oficial, buscando influir nos acordos oficiais.
É dos intensos anos 1990 – para nós, latinoamericanos, de redemocratização e esperanças – que surgem outras medidas de desenvolvimento além do PIB. A ONU adota o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano, criado com participação de Amartya Sen. Sua publicação anual pelo PNUD começa em 1993. Sem dúvida, mais amplo por inclui expectativa de vida (indicador de saúde), tempo médio de estudo (educação) e valor médio de renda (PIB). A gente não precisa ter muita imaginação para ver como o PIB determina os outros dois em sociedades capitalistas. É um olhar mais amplo, sem dúvida, mas não questionador do satus quo dominante.
Foram décadas de mais análises (muito importantes, até) e debates em termos de busca de alternativas de desenvolvimento. Foi uma época de profusão de publicações, conferências, encontros. Destaco, pelo seu significado, o Dicionário do Desenvolvimento, gestado no processo da Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro, em 1992[2]. Foi fundamental, também, um pequeno relatório publicado ainda em 1972 pelo Clube de Roma demonstrando, pela primeira vez, a insustentabilidade do crescimento. O impacto da publicação foi enorme, pois com ela se pôs em questão, talvez pela primeira vez, o desenvolvimento baseado no crescimento, recebendo muitas críticas, especialmente de economistas.[3]
De toda forma, no enfrentamento da globalização capitalista neoliberal, as contribuições como as da ONU podem ser vistas como uma espécie de busca de um caminho intermediário, de garantir que a humanidade e todas as formas de vida não sejam inviabilizados pelo capitalismo. Uma mitigação dos seus efeitos mais perversos. A consciência da crise climática ganhou relevo. Não chega ser uma visão integrada da destruição ecossocial em curso e de busca de transformações inadiáveis. São acordos, mais acordos... e tudo continua mais ou menos como antes. Talvez isto adie o desastre provocado pelo desenvolvimento do capitalismo e sua acumulação, pois algo acontece em termos de transição energética, por exemplo. O problema é que estamos diante da necessidade de mudar tudo, economia, poder e estilos de vida para ficarmos nos limites planetários e sermos justos com toda a humanidade e todas as formas de vida, de que dependemos.
Este caminho intermediário não passa de um sinalizador de perigos imediatos e boas intenções diante deles. Com as Conferências da ONU surgiram as COPs, como as do Clima e da Biodiversidade, realizadas com regularidade. A ONU, ainda em 2000, adotou a Declaração dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Depois, em 2015, os ODS – Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. São sinalizações de tipo consensual... sobre como praticar um desenvolvimento sustentável e bom – mais explícito seria declarar “crescimento capitalista” verde e humano, se isto fosse possível, pois não foi, não é e nunca será.
Termino destacando a contribuição de tais propostas para a requalificação do próprio debate de “alternativas de desenvolvimento”. Começou naqueles tumultuados anos o debate muito mais promissor sobre alternativas ao desenvolvimento enquanto tal. Isto redundou na busca de mudanças de paradigmas transformadores mais complexos, debate que ocupa certa centralidade até os dias de hoje, no bojo do qual foram postas em evidência propostas como as de “bem viver” de inspiração dos indígenas latinoamericanos. Tal tema deixo para uma próxima postagem, com a declarada intencionalidade de abandonar de vez a caixinha do desenvolvimento como perspectiva. Mas, no imediato, temos o risco de algo muito pior: as direitas e sua opção fascista de um mundo para poucos, os ‘bons’, com exclusões das maiorias indesejáveis. Uma opção pelo desenvolvimento capitalismo autoritário, sem vergonha de pregá-lo abertamente.
[1] Foi nos tumultuados anos 80 da década passada que tudo isto ganhou força e deu origem a muitas redes mundiais de ativismo de sociedades civis, para além do sindicalismo que existe há muito tempo. O “direito humano ao desenvolvimento” foi aprovado na Assembleia da ONU de 1986.
[2] A versão publicada no Brasil, em português, é de 2000. Ver Wolfgang Sachs. Dicionário do Desenvolvimento: guia para o conhecimento como poder. Petrópolis: Vozes, 2000
[3] Clube de Roma. Os Limites do Crescimento. 1972. O relatório foi produzido, sob encomenda, pelo MIT, de Boston, pela equipe liderada por Dona Meadows.
Didático teu artigo Cândido.
ResponderExcluirA luta segue.
Abraço
Nao e uma analise de observador. E de um ativista que esteve no centro das contestacoes, no Forum Social Mundial. Parabens!
ResponderExcluirOlá Cândido,
ResponderExcluirLi sua análise de 20 de agosto ainda no domingo de noite. Rascunhei em seguida o comentário que se segue somente hoje..
Como sempre as outras, esta análise é muito importante. Uma narrativa de uma análise crítica muito consistentes d categoria "desenvolvimento" nas conjunturas da história dos tempos do capitalismo neoliberal, um desenvolvimento sempre sob as ordens da hegemonias das classes dominantes. Eu já te falei e acho que escrevi que os professores e os estudantes universitários deveriam ler, examinar, interpretar, discutir, compreender e debater em profundidade estes escritos analíticos, críticos da nossa história real. Além das universidades, os partidos políticos de esquerda deveriam ler, estudar e apropriar-se dessas
lições para as proposições próprias no campo das lutas de classes sociais.. Fico me perguntando o que poderia ser feito para essa gente e outros tantos ter acesso a esses escritos. Eu indiquei o blog para alguns amigos. Acho que vou indicar para mais gente.
Um abraço.