Poucos se dão à tarefa
de pensar sobre o que é e o que significa, afinal, o “desenvolvimento”. Ele
funciona como um poderoso senso comum, um amálgama agregador apontando sentidos
e rumos. Atravessa todos os extratos sociais, todos os meandros em que a gente
leva a vida, sejam rurais ou urbanos,
nas grandes periferias e nos centros mais aquinhoados e intensos, no interior das
famílias e comunidades, no trabalho, nos espaços de lazer e cultura, nos meios
de comunicação e redes, nas esferas do poder. Geralmente, é visto como uma verdadeira
lei econômica incontestável e está incorporado como um acordo político básico de
que precisamos do desenvolvimento. Ele é visto como bom e necessário, um
processo de sempre ter mais e mais bens e serviços, expressão de bem estar e
“civilização” a ser construída. Está subentendido que sem desenvolvimento ninguém
pode ter futuro, seja qual for. Só falta achar o caminho certo e as lideranças
adequadas que nos levem a ele e nos proporcionem o máximo. O fato é que o desenvolvimento justifica os mais variados
regimes políticos, de fascismos e ditaduras a democracias liderados por blocos
de direitas ou democracias de perfis mais progressistas e includentes, até os
regimes de socialismo histórico de inspiração marxista se vangloriaram de seu
rápido desenvolvimento econômico.
Haja engodo mais
poderoso! De cara, precisamos reconhecer que o difuso conceito de
desenvolvimento, enquadra o modo de pensar e limita a imaginação, os sonhos, a
inovação e a ousadia, algo fundamental
para o viver humano. Podemos divergir sobre como fazê-lo, mas parece que não
temos outra saída para buscar algo mais e melhor, até a justiça social, com
maior igualdade e inclusão de todas e todos. Mas, sobretudo, o desenvolvimento
tem a capacidade de esconder a falsidade e a dominação nele embutida, assim
como a destruição ecológica e social que é produzida em seu nome. Sempre de
formas, extensões e impactos ecossociais muito diversos.
Vale a pena esclarecer
o sentido que estou dando ao “desenvolvimento como mantra”. Não estou pondo em
dúvida que a busca de desenvolvimento implica em processos econômicos,
científicos e tecnológicos, sociais, culturais e políticos, diferentes e inter-relacionados.
Tudo depende onde – em que país, região – e em quais condições históricas e políticas se dá o desenvolvimento. Meu
objetivo é chamar a atenção para a dimensão ideológica que a noção de desenvolvimento esconde mais
do que aponta e revela, de sua capacidade de provocar adesão mais do que dúvidas.
Sempre medido e acompanhado pela mágica e reducionista camisa de força do
crescimento do PIB – produto interno bruto em termos de valores de mercado de
todas atividades econômicas de um lugar em um período dado. Se ele cresce e
tende a crescer é sempre bom e festejado, Mas se não cresce ou, pior, se
diminui, o PIB se torna um sinal de alerta de crise à vista. O PIB não aponta
qualidade nenhuma, pois é um termômetro e se basta a si mesmo: indicador da
“febre” da economia. Nada sobre desigualdade social ou destruição ecológica do
desenvolvimento. Enfim, nada sobre a saúde e bem estar da população. Nada sobre
o domínio e o extrativismo de recursos naturais em nome dele. Sempre é repetida
a promessa nunca cumprida do desenvolvimento: a economia precisa crescer para
distribuir. É esperar, esperar... para nunca chegar lá.
Em si mesmo, o conceito
de desenvolvimento é de múltiplo uso, para tudo que cresce. Ele vem sendo usado
desde muito tempo, seja para seres vivos, capacidades humanas, tecnologias,
culturas, sociedades inteiras. Porém, aqui estou tratando do desenvolvimento
econômico, entendido como crescimento da produção de bens e serviços. Mas como
expressão de um ideal de bem estar coletivo precisa ser situado nas relações geopolíticas
de constituição, expansão e domínio do capitalismo, com suas etapas, que não
cabe aqui aprofundar. Basta ficarmos nas heranças vivas e atuantes hoje.
Como expressão
ideológica carrega as heranças do que foi a violenta e destrutiva expansão
europeia de conquista, colonização, extrativismo, com escravidão, racismo e patriarcalismo,
em nome da modernidade, da “civilização cristã” contra a “barbárie”. Foi uma
empreitada que se gestou no seio da Europa e se consolidou às expensas do
mundo, para a acumulação primitiva do que se tornou o capitalismo
“desenvolvido”: novo modo de produção,
exploração, destruição e domínio – econômico, político, militar, imperial e
cultural para a acumulação de mais e mais capital em poucas mãos – em que estamos mergulhados até hoje, e que nos
dizem “não haver alternativas”. Será?
Bem, não é o lugar e
nem meu objetivo aprofundar isto. Basta lembrar como uma espécie de lastro
histórico. Como expressão carregada
ideologicamente, o “desenvolvimento” se tornou o mantra do capitalismo após
as destrutivas grandes guerras mundiais do século passado, aquela carnificina envolvendo
o mundo tudo, movida por disputas geopolíticas imperiais, tendo a Europa como palco
principal. Mas o objetivo era a partilha do mundo, ou seja, o acesso e
exploração das colônias, especialmente aquelas sob domínio inglês e francês.
A I Guerra Mundial, de
1914-1918, acabou com a capitulação da Alemanha, principal potência capitalista
em ascensão na época. Mas em meio à ela aconteceu a Revolução Socialista na
Rússia, em 1917, com grande impacto político, passando a ser vista como ameaça
ao mundo.
A revanche da Alemanha
se forjou com todos os horrores do nazismo de Hitler, que iniciou a II Guerra
Mundial em 1939 e conseguiu dominar militarmente a Europa Continental Ocidental.
Com sua derrota em 1945, especialmente pelas vitórias da URSS, vindo do Leste,
e aliados liderados por EUA, na frente Ocidental, deu-se o fim da II Guerra, em
1945.
Desta guerra surgiu o
mundo bipolar da Guerra Fria, com EUA de um lado e URSS do outro. Também surgiu
a ONU com promessas de evitar guerras, mas estruturalmente incapaz de gerir as
contradições do mundo até hoje, dado o poder de veto no Conselho de Segurança
das cinco potências vencedoras da guerra. Isto é um resumo, quase uma caricatura,
mas o que importa é a realidade criada e que foi dominante de 1945 a 1989,
quando se deu a implosão da URSS e do Pacto de Varsóvia dos países comunistas
do Leste Europeu. Os EUA, temporariamente vitoriosos, conquistaram hegemonia
imperial capitalista unipolar, com seus exércitos e o dólar. Só agora no século
XXI esta hegemonia está sendo ameaçada de algum modo
Mas o que isto tudo
importa para o que chamo “mantra do desenvolvimento”? Tudo se gesta naqueles
anos iniciais do pós-II Guerra Mundial. O “comunismo” representado pela URSS,
apesar de membro com poder de veto na recém nascida ONU, passou a significar o
inimigo maior à nova hegemonia. Importa destacar que, antes mesmo do fim da
guerra, em Breton Woods, no norte de Massachusetts, EUA, por acordo entre o
bloco vitorioso, foram criadas as instituições centrais da nova hegemonia do
dólar para o capitalismo: BM e FMI, que não se faz necessário qualificar aqui
pelo que significam para o mundo e o imperialismo norteamericano desde então.
O que sim importa
destacar é como surgiu a bipolaridade, sob liderança dos EUA e da URSS. A
“guerra fria” é de 1947. Derrotados o nazismo e o fascismo, o inimigo maior
passou a ser o socialismo/comunismo, representado pela URSS. Apesar da ditadura
de Stálin, a URSS mostrava um sucesso espetacular em avanços econômicos e
sociais, que seduziam muitos países pelo mundo, sobretudo as ex-colônias dos
imperialismos europeus, a partir de então submetidos ao imperialismo dos EUA e
seus aliados europeus, ex- potências coloniais.
É do Governo Truman,
dos EUA, que se impõe a noção de “desenvolvimento” – capitalista, é claro – em
contraposição ao “socialismo/comunismo”. Baseado no “american way of life” passou a ser referência de um mundo possível
de produção de bens e serviços com acesso a todo mundo, e um de viver e de
cultura baseado no consumismo, um sonho
em termos de bem estar para povos nos mais diferentes países. Como parte da
estratégia, muito além de bancar o “cão de guarda” do mundo, passou a contar
com BM para financiar o “desenvolvimento” e o FMI para regular as moedas e
evitar crises financeiras sob o domínio do dólar – então tendo o ouro como
equivalente. Mas para assegurar a sua
hegemonia concebeu o Plano Marchal[ii] de
recuperação da Europa Ocidental devastada e o “machartismo” interno[iii]
contra as esquerdas e simpatizantes, em nome do combate ao comunismo.
Foi uma estratégia de
“legitimação da hegemonia do desenvolvimento” – como prefiro definir – que
influenciou o mundo inteiro. De algum modo, afetou e submeteu as grandes
promessas das esquerdas em ascensão na Europa animada por potentes movimentos
sindicais e intencionalidade anticapitalista. Para o que, então, passou a se
chamar “Terceiro Mundo” (ex-colônias em geral) sobraram a vigilância militar
descarada e o risco de intervenção militar, para quem fosse considerado fora do
rumo certo do “desenvolvimento”... capitalista, sem dúvida. Aí começa, por
exemplo, o drama da ousadia de Cuba, com a revolução comandada por Fidel
Castro, e, na sua esteira, a implantação de ditaduras militares entre nós
latinoamericanos com apoio dos EUA, que passaram a uma estratégia de contenção de
insurgências pelo mundo, com guerras que foram se multiplicando, que não se faz
necessário relacionar aqui.
As contestações não
frontais ao “desenvolvimento”, mas concebidas mais para explicar os porquês do
não desenvolvimento, foram muitas e em si mesmas importantes como buscas e
construção de imaginários alternativos nos países pobres, em geral ex-colônias
do expansionismo eurocêntrico, na América Latina, África e Ásia. Aqui cabe
focar especialmente a vigorosa produção intelectual a respeito, com impactos
políticos em nossos países, surgida na América Latina. Trata-se, de uma forma
ou outra, em esforço crítico do “desenvolvimento”, mas sem sair da caixinha que
ele representa como concepção de bem estar coletivo a ser buscado, seja para
combater desigualdades sociais e pobreza, como para conseguir melhores padrões
de vida em termos de consumo de bens e serviços.
Na verdade, aqui só
cabe lembrar as origens e rumos de tal produção, impossível de aprofundar para
os objetivos de minha análise. A inspiração veio da CEPAL/ONU, através do argentino
Raul Prebisch, com a formulação da linha estruturalista do pensamento
econômico. Ele apontou as relações econômicas mundiais como de trocas
desiguais, onde o desenvolvimento gera e pressupõe o subdesenvolvimento. Na
mesma linha e com grande impacto no nosso seio veio Celso Furtado e sua grande
produção, referência até hoje. Daí veio toda uma ideia da necessidade de ação
do Estado para passar do subdesenvolvimento ao desenvolvimento. É de 1952 a
criação no Brasil do BNDE – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico[iv],
um dos maiores bancos do gênero no mundo, até hoje. Vieram as grandes estatais
para induzir o desenvolvimento, como a Petrobras e Eletrobrás. Também veio
depois a SUDENE, com a finalidade de promover o “desenvolvimento” no Nordeste.
É importante destacar duas
decisões políticas com enormes consequências para a história do desenvolvimento
brasileiro. Primeiro, os “50 anos em cinco do Juscelino Kubitschek”, com a
opção pela indústria automobilística e sucateamento da enorme malha ferroviária
de então, para criar mercado para caminhões de carga e ônibus para transporte
de passageiros. Até os bondes desapareceram... A outra decisão foi a majestosa
e ousada obra de Brasília para ser a
nova capital do Brasil. Claro, em nome do mesmo mantra do desenvolvimento foi
construída a capital no Planalto Central, no divisor de águas dos grandes rios
brasileiros, afluentes do Amazonas e os do Paraná. Mas Brasília, bela obra de
arquitetura, desde o nascimento produziu mais favelas – as cidades “satélites”
- do que cidade propriamente dita, para todas e todos, nossa grande chaga
social de periferias excluídas em todo que é cidade. Estes dois marcos são uma
espécie de mudança de época na história brasileira. Ambas decisões produziram
impacto econômico, social, migrações enormes, destruição ecológica ... como
resultado do desenvolvimento.
Em termos de
pensamento, na esteira do pensamento estruturalista veio a “teoria da
dependência”, com muito mais capacidade crítica do que a linha inaugurada pela
CEPAL. A motivação, porém, era o porquê que não acontecia o tal
“desenvolvimento”. Claro que muitas versões de esquerda foram se multiplicando
no sentido de mudar a estrutura de relações que impediam nosso acesso ao
desenvolvimento.
Outro destaque em
termos de desenvolvimento brasileiro, que não dá para ignorar, foi o período da
ditadura militar, de 1964 a 1985. Foi algo que ocorreu primeiro no Brasil, mas se multiplicou e em muitos outros países
da região. No nosso caso, a ditadura, com toda a sua violência, repressão, perseguição
e morte de opositores ao regime, produziu o “milagre econômico” brasileiro dos
anos 1970, então festejado pelo capitalismo do mundo inteiro, levando o Brasil
a se tornar um dos principais destinos do capital estrangeiro para... trazer o
tão sonhado desenvolvimento com suas mazelas.
Nunca é demais lembrar
os “feitos” do milagre da ditadura. Especial destaque merece a agressão direta
à integridade da Amazônia com sua proposta de “colonização” (literalmente),
abrindo a Transamazônica, via de Leste rumo ao Oeste, contra Povos Originários
e Tradicionais, ameaçando a integridade do bioma amazônico, com assentamento de
colonos e, na sua esteira, estimulando a grilagem de terras e desmatamentos
para nova fase de expansão dos grandes latifúndios. Outro destaque é construção
da gigante hidrelétrica de Itaipu com a formação de um imenso lago, expulsando
milhares de agricultores familiares e alagando as Sete Quedas do Rio Paraná, em
nome do desenvolvimento. Bem, das ruínas
da destruição ecossocial surgiu o MST, um movimento social renovador e com
bandeira da Reforma Agrária. Itaipu inspirou um modelo de grandes obras, como a
Ponte Rio-Niterói, feitas a pau e fogo. Também devemos à ditadura, em nome do
desenvolvimento, a consolidação do modelo do agronegócio e sua expansão rumo ao
Centro e Oeste do país, tornando o país um dos maiores produtores e
exportadores de grãos do mundo, em base de um capitalismo agressivo da
natureza, dos povos originários e da própria política e poder do país. Mas não
dá para falar do “milagre econômico” da ditadura deixando de lado o arrocho
salarial implacável, como política de, mais uma vez, de desenvolvimento. No seu
lastro cabe destacar, na contramão, o ressurgimento do “novo sindicalismo”,
tendo os metalúrgicos do ABC na frente e “criando” a liderança de Lula e o PT,
que marcam as lutas pela redemocratização desde os anos 1980 e o período de 14
anos de governos petistas.
Como conclusão
provisória – pois continuarei em novas postagens – sim tivemos e temos
“desenvolvimento” medido pelo PIB, desenvolvimento capitalista concentrador e
destruidor em termos ecossociais, combinando extrativismo sem limites,
exploração até com trabalho análogo à escravidão, com índices de pobreza e fome
vergonhosos. É disto que precisamos? Tem saída que não implique em concentração
de riquezas e destruição ecossocial?
[i] Esta postagem tem origem numa intervenção minha feita no Simpósio Especial “Alternativas do Desenvolvimento e Bem Viver”, como parte da programação de XIV RAM – Reunião de Antropologia do Mercosul, de 1 a 4 de agosto de 2023, na UFF, Niterói, RJ.
[ii] O Plano Marchal (general do exército dos EUA, secretário de Estado do Truman) é um grande pacote financeiro de bilhões de dólares em condições favoráveis para os países europeus, de 1948 a 1951, que veio junto com a instalação de batalhões militares americanos em seus territórios, em nome da defesa diante da ameaça “comunista”. Nisto também veio a criação da OTAN.
[iii] O machartismo lembra o Joseph McCarthy, influente senador, que de 1950 a 1957 animou uma “caça às bruchas” no meio intelectual, cultural, cinematrográfico e sindical dos EUA, em nome de combate ao comunismo interno.
[iv] O “S”, de Social, no BNDE foi acrescentado nos anos 1980.
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